Veja a íntegra da entrevista de Fernanda Torres e Walter Salles à CNN

A âncora da CNN Christiane Amanpour entrevistou, com exclusividade, a atriz Fernanda Torres e o diretor Walter Salles. Na entrevista, que dura 17 minutos, eles falam sobre como foi fazer “Ainda Estou Aqui” e os paralelos da ditadura militar com a atual realidade política do país.

O filme brasileiro concorre ao Oscar em três categorias: Melhor Filme Internacional, Melhor Atriz, com Fernanda Torres, e Melhor Filme. A cerimônia do Oscar ocorre no próximo dia 02 de março.

Leia a íntegra da entrevista abaixo:

Christiane Amanpour: Fernanda Torres e Walter Salles, bem-vindos ao programa. Que bom ter vocês aqui. É um filme incrível, principalmente para os nossos tempos. Então, vamos à base disso. Fernanda, você interpreta a heroína Eunice Paiva. É a história verídica do marido dela, do seu marido, do marido dela, que é preso e depois descobrimos o que aconteceu de fato com ele. Você é mãe de cinco filhos e o filme se passa durante a ditadura do Brasil, uma ditadura apoiada pelos Estados Unidos, aliás. Então, me dê uma ideia do que você estava tentando retratar, Fernanda.

Fernanda Torres: Primeiro, tentei ser fiel a essa grande mulher chamada Eunice Paiva, que foi criada para ser a dona de casa perfeita dos anos 50. Ela era a grande mulher por trás do grande homem e então essa tragédia aconteceu na vida deles, e ela ficou viúva com cinco filhos, e depois voltou para a faculdade de direito.

Ela se reinventa, acho que ela descobre quem ela realmente é depois dessa tragédia, vira advogada de direitos humanos, defensora dos direitos indígenas, das reservas indígenas, e se torna essa mulher incrível que ninguém conhecia, na verdade.


Fernanda Torres

E, então, eu estava tentando ser fiel a ela, não fazendo da vida dela um melodrama. Isso é algo que eu e Walter dissemos, que tínhamos que ser fiéis à dignidade dela.

Christiane Amanpour: Sim, sim. Foi uma performance muito, altamente digna que você fez, como você disse, não melodramática. Mas estou realmente interessada, Walter, porque, você sabe, à medida que vemos o que está acontecendo no mundo agora, neste momento, e vemos repressão em muitos, muitos países, mesmo em países democráticos, o que aconteceu com Rubens Paiva, o marido da heroína, foi puramente um movimento anticomunista de “caça às bruxas”. O que fez você querer contar essa história?

Walter Salles: Bem, havia muitas camadas nisso, mas acho que a ideia comum era oferecer uma reconstrução da memória daquela família, da história daquela mãe e pai e dos cinco filhos deles, que por acaso são meus amigos íntimos na vida real. E também reconstruir a memória coletiva, a memória do Brasil daquela época, sabe? E o filme é baseado em um livro escrito pelo filho mais novo da família Paiva.

E é um livro extraordinário que nos permitiu produzir esta reconstrução, desta história que pensávamos ser um reflexo do nosso passado e, aos poucos, compreendemos que era também um filme sobre o nosso presente. À medida que o clima da época começou a mudar, acho que foi isso que realmente uniu toda a equipe e os atores. Tivemos a impressão de que estávamos fazendo um filme para os dias atuais e não apenas um filme voltado para o passado da ditadura brasileira.

Christiane Amanpour: Ok, isso é super interessante, e eu só quero ir um pouco mais a fundo antes de assistirmos a uma cena. Fernanda, o que isso significa para você, em termos da atmosfera da época em questão? O Brasil é uma democracia agora, embora tenha tido aqueles 26 anos de ditadura militar [na verdade, a ditadura no Brasil durou 21 anos, de 1964 a 1985]. E os seus pais não eram apenas artistas, mas estavam sujeitos à censura, ao medo e a todo o resto. Diga-me, o que você lembra sobre isso?

Fernanda Torres: Bem, acho que aprendi a palavra “censura” ao mesmo tempo em que aprendi “mamãe”, “papai”. Porque eles tinham muito medo. Não medo. Eles eram produtores de teatro e antes da abertura, por exemplo, de uma peça, tinham que fazer uma sessão para a censura, e a censura podia proibir a peça inteira, podia cortar páginas da peça… Então, isso era um problema constante para eles.

Meu pai tinha uma peça, um musical do Chico Buarque, totalmente proibido. Então isso era algo comum. Mas também tínhamos amigos que eram levados de casa, assim como o Rubens Paiva. Então, eu me lembro bastante disso. E agora o que vimos foi novamente esse tipo de “caça às bruxas” contra os comunistas. Todo mundo era um comunista.

De repente, voltou a ser uma época estranha e por isso Marcelo Rubens Paiva escreveu o livro. Porque a mãe dele estava com Alzheimer e começando a esquecer, e ele achava que o país também estava começando a esquecer o que significa viver em uma ditadura. Portanto, é uma ponte entre aquela época e agora. Entende?

Christiane Amanpour: Exatamente, e acho que você fez isso de propósito. Você pegou a memória olhando fotos, lembranças, conversando etc. Então, eu quero passar a primeira cena que separamos, que é essencial, a ditadura está ali, mas está bem no começo, e vocês estão tendo um belo dia em família na praia. E, então, há uma espécie de cenário sinistro. Vamos assistir. [trecho do filme é exibido]


Elenco de Ainda Estou Aqui
“Ainda Estou Aqui” recebeu três indicações ao Oscar 2025, inclusive a Melhor Filme, principal categoria da premiação • Reprodução

Christiane Amanpour:  Então, Fernanda, essa cena termina com você olhando e focando nos veículos militares. Quero perguntar a você, porém, Walter, por que você optou por retratar essa família de uma forma que os pais, principalmente a Eunice, que é interpretada pela Fernanda, tentassem proteger ao máximo essas crianças? Eles faziam perguntas. Eles queriam saber onde estava o pai, mas ela nunca contou, exceto ao mais velho. E eu fiquei pensando: quando isso vai parar? Quero dizer, você sabe, porque eu senti que as crianças estavam ficando ansiosas porque não estavam ouvindo a verdade. Isso era a realidade da época ou apenas uma mãe muito protetora?

Walter Salles: Eu acho que os dois. A cena que você acabou de mostrar é como um presságio grego para mim, porque Eunice é a única, a única pessoa daquele grupo que percebe que algo está errado, que os militares, os caminhões militares estão passando e, portanto, anunciando algo que não é confortável. E, para mim, aquela família foi uma família que viveu com intensidade, com essa intensidade como forma de resistência durante a ditadura militar.

Então, o filme era realmente sobre como aquela luz, aquela vida foi roubada quando o pai foi tirado deles, e a mãe teve que encarar a tragédia de lidar com uma perda. Como você lida com uma perda? Ou você se sujeita a ela, ou você tenta superá-la. E ela realmente tentou superá-la.

Mas ela, em última instância, abraçou a possibilidade da vida. É uma decisão afirmativa de vida a que ela [Eunice] tomou. E é muito complexo, porque ela tinha segredos que ela não compartilhou com aquelas crianças. Eles tiveram que lidar com a morte do pai deles separadamente em diferentes épocas da vida deles.

Christiane Amanpour:  E é interessante como cada um, e você retrata isso no filme, descobre quando o pai está morto, porque ela [Eunice] nunca diz isso a eles. Mas a sua aparência, sua performance controlada, estoica e digna se quebra em um momento. E isso acontece quando alguém do regime, eu não sei, mata o cachorro da família. E nesta cena que vamos mostrar, há um carro que está estacionado em frente à sua casa o tempo inteiro, e essas pessoas desconhecidas do regime, da ditadura, estão basicamente te vigiando. E aqui está o que aconteceu nessa ocasião [trecho do filme é exibido].

Christiane Amanpour: É tão poderoso e em um momento só você entende toda a história de seus sentimentos, de suas emoções reprimidas. Você não sabe ainda, ninguém te contou oficialmente que seu marido está morto. Como você se preparou para esta cena, como você a internalizou?

Fernanda Torres: Há muitas cenas que são maravilhosas, porque Eunice tem 5 filhos. Então, ela não pode sentar e chorar, ela não pode… Ela não tem permissão para isso. É como se fosse uma figura grega, uma mãe grega. Ela encara a tragédia e a única maneira para que ela siga em frente, crie aqueles filhos e salve a inocência deles é simplesmente dizer “sorriam e sigam em frente”. E eu nunca tinha trabalhado assim, porque normalmente, como atriz, você quer demonstrar emoções, e no caso da Eunice, você tem que contê-las. E o poder disso é que o público fica sentado na beirada da cadeira tipo, “Por favor, faça alguma coisa”. Então há algo que o público sente com você que você não está sentindo e mostrando a eles, eles estão sentindo por você. E acho que isso é muito próximo da tragédia grega. E sobre não contar às crianças: como você pode dizer a uma criança que seu pai foi torturado e morto pelo Estado? É algo insuportável. Por isso essa história é tão poderosa. É uma família normal, mas enfrentando algo como Antígona, algo do tamanho de um destino grego, uma tragédia grega. E é isso que é tão poderoso para mim.

Christiane Amanpour:  Você mencionou Antígona, exatamente. Walter Salles, há uma cena maravilhosa, e é obviamente verdadeira porque você a retratou. Quando a família Paiva, Eunice e as crianças, estão tentando divulgar a história. Até aquele momento, todos tinham medo de falar publicamente sobre isso. Então eles conseguem que uma revista faça uma matéria, a revista quer mostrá-los sorrindo e como uma família feliz. Me conte sobre essa cena e o que, de fato, Eunice decidiu fazer para essa sessão de fotos.

Walter Salles: Eunice era alguém na vida real e no filme que arquitetou formas de resistência inéditas, e uma delas que é bastante única é que sempre que pediam à família, sabe, para chorar ou serem retratados como uma família triste, ela articulava e oferecia exatamente o oposto, de serem retratados como uma família sorridente. Ou seja, ela nunca permitiu ser retratada como parte de um melodrama. Ela se recusou a isso. E a cena toda é sobre isso. Aquela cena a que você está se referindo, ela percebe que uma das crianças está sorrindo, e então a segunda também está sorrindo. E inspirada por isso, ela realmente articula essa ideia no momento. E a beleza disso é que não é algo que foi, sabe, completamente racionalizado. É algo que vem da própria vida da família, sabe. E isso diz muito sobre uma mulher que lutou, sabe, não apenas de acordo com suas crenças, mas também de acordo com sua intuição do momento.

Veja fotos de “Ainda Estou Aqui”

Christiane Amanpour:  E me deixe perguntar essas duas coisas. Deixe-me perguntar sobre, sabe, o ciclo completo e a reação aos dias de hoje. É uma democracia agora, seu país, mas você disse, eu li que provavelmente não conseguiria fazer este filme se fosse durante os anos Bolsonaro, e que mesmo depois que este filme foi lançado, surgiram evidências de tramas contra seu atual presidente, Lula, tentando trazer Bolsonaro de volta. Isso é muito atual. Essas coisas, não é?

Walter Salles: Sim, sim. Sabe, levou sete anos para fazer o filme, sete anos para estar no seu programa, e estamos tão orgulhosos disso.

Fernanda Torres: É o ápice.

Walter Salles: É o ápice da nossa jornada. Mas também levou sete anos porque fizemos três anos de pesquisa, para fazer justiça à família, fazer justiça à cultura, à autenticidade do que estávamos retratando, mas também levou sete anos porque durante quatro anos, o país virou para a extrema direita, e nunca teríamos tido a possibilidade de filmar durante esse período. Portanto, o filme é produto do retorno da democracia ao Brasil. É realmente interessante o presidente Lula, e é realmente seu retorno à Presidência e o retorno da democracia que permitiu que o filme existisse. Filmamos em 2023 sem ter a menor ideia de que tinha havido uma tentativa fracassada de golpe de estado,

Fernanda Torres:  Um golpe militar.

Walter Salles: Um golpe no final de 2022, sabe, e conforme o filme estava sendo lançado no Brasil e abraçado pelo público, as notícias foram reveladas pela Polícia Federal que aquele golpe de estado que incluía o assassinato do presidente Lula, do vice-presidente Alckmin, tinha quase sido a realidade do país, tinha quase dado certo. Isso para nós foi agora. Então no meio do lançamento do filme, percebemos que mais do que nunca era um filme sobre hoje, sabe, sobre o que estava acontecendo no país neste exato momento. E claramente, esse ato de antecipação, claramente não estava em nossos planos. Simplesmente aconteceu. É uma consonância extraordinária.

Fernanda Torres: Todo tipo de pessoa foi aos cinemas. Então você tem direita, esquerda, centro, progressistas. E foi como se em torno desta família, a família Paiva, todos pudéssemos chegar a um consenso de que um regime ditatorial não é aceitável. E esse foi o milagre deste filme, ficamos todos surpresos, porque todo tipo de pessoa estava indo ao cinema e se emocionando com esta família e dizendo ‘isso não é bom’. Quer dizer, autoritarismo não é aceitável.

 

Christiane Amanpour:  Bem, eu te digo, é muito poderoso. Obviamente, sabe, o ápice é que vocês foram indicados ao Oscar, Bafta, e todo o resto. Então parabéns, mesmo que os militares nunca tenham sido responsabilizados pelo assassinato de Rubens Paiva. Muito obrigada, de verdade. Obrigada. Obrigada.

Walter Salles: Muito obrigado. Sim, uma honra enorme. Obrigado.

Conheça Walter Salles, diretor de “Ainda Estou Aqui”

 

Este conteúdo foi originalmente publicado em Veja a íntegra da entrevista de Fernanda Torres e Walter Salles à CNN no site CNN Brasil.

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