Países ricos querem impor transição energética às custas da nossa exploração

A crise climática global está no centro dos debates públicos, agendas políticas e acordos econômicos. A pressão social para que estratégias de enfrentamento sejam lançadas se intensifica, sobretudo, em função dos acordos globais pelo clima, da força das corporações e do discurso “verde”, que é incorporado inclusive pelo Estado. 

Nesse sentido, o Acordo de Paris transformou-se em parâmetro internacional. O documento, assinado em 2015 pelos 195 países que fazem parte da UNFCCC, a Convenção-Quadro da ONU sobre a mudança do clima, elenca compromissos para limitar o aumento da temperatura global a 2°C acima dos níveis pré-industriais. 

Neste cenário, uma das grandes apostas de corporações, governos organismos multilaterais tem sido na política do que vem sendo denominada de transição energética, que visa estabelecer uma matriz energética que não seja dependente de combustíveis fósseis, firmando um alto investimento em formas de “energia renovável”, “energia verde”, “de baixo carbono” e/ou de “energia limpa” – em especial solar, eólica e veículos elétricos.

Para frear o desastre climático seria necessário um corte sem precedentes nas emissões de gás carbônico provenientes da queima de combustíveis fósseis, ou seja, petróleo, gás natural e carvão, bem como a redução significativa dos demais gases de efeito estufa. Estes são emitidos pelos setores produtivos mais poluentes como siderurgia e mineração, indústria química, transporte aéreo, marítimo e rodoviário (especialmente o de cargas pesadas), geração de eletricidade, produção de fertilizantes para a agricultura e o próprio setor agropecuário. Vale lembrar que no Brasil, as mudanças no uso da terra, que incluem o desmatamento, são a principal fonte de emissões de gases de efeito estufa no país, respondendo por 61% do total. 

Com isso, ganha força a perspectiva da “descarbonização”. Nos últimos anos, são intensificadas diversas estratégias do capital “em nome do clima”, conforme afirmou em sua tese a pesquisadora Fabrina Furtado. Esse cenário engendrou uma espécie de “aceleração de tendências” dos agentes dominantes do capitalismo de inserir justificativas ditas ambientais para abrir novas fronteiras de acumulação e legitimar práticas institucionais, políticas, científicas, e, assim, tentar incorporar a pauta ambiental com mais consistência ao seu discurso.

 no dia 25 de janeiro de 2019, o Brasil e o mundo presenciariam a maior tragedia ambiental do país. Às 12h28min20s, a barragem do Corrego do Feijao, da mineiradora Vale S.A, em Brumadinho, se rompeu e carregou tudo que estava a sua frente. Inclusive 272 vidas,. A foto e do 2019 e mostra o rastro de destruicao que a lama de rejeito causou por onde passou. (Foto: Rodney Costa/Zimel Press/Folhapress)
Rastro da lama de Brumadinho (Foto: Rodney Costa/Zimel Press/Folhapress)

O quadro, que vem sendo ilustrado por corporações e governos, se dá a partir de novas tecnologias e estratégias de mercado. Assim, aumenta-se a produção e a projeção de veículos elétricos, usinas de energia solar, eólica, hidrelétrica, nuclear, de agrocombustíveis, produzidos a partir de monoculturas de produtos primários, ao mesmo tempo em que se desenvolvem mecanismos de comercialização e compensação das emissões de gases de efeito estufa como o mercado de carbono. Temos ainda a expansão da mineração associada aos chamados “minerais críticos”, importantes bens naturais utilizados na produção das novas tecnologias ditas renováveis ou verdes, como o lítio, utilizado em baterias, a bauxita, demandada pela sua importância, por meio do alumínio, na estrutura das instalações eólicas, solares e dos veículos elétricos.

Nesse contexto, a Agência Internacional de Energia, IEA, prevê que a capacidade instalada de painéis fotovoltaicos deve triplicar entre 2020 e 2040; já a geração de energia eólica deve mais do que dobrar e a venda anual de carros elétricos deve aumentar mais de 20 vezes. O último relatório do Banco Mundial indica que a produção de minerais como grafite, lítio e cobalto pode aumentar em até 500% até 2050, em função do aumento constante da demanda por tecnologias de energia renovável.

Apenas para se ter uma ideia do que isso significa em termos de demanda mineral, e portanto, territorial, uma usina eólica onshore (em terra firme) requer nove vezes mais recursos minerais do que uma termelétrica a gás, enquanto um carro elétrico requer seis vezes mais minérios do que um carro convencional, como mostrou a pesquisa de Andrea Fisher e Alejandra Cuéllar sobre como a transição energética transfere a dependência do petróleo para os minerais. 

Exploração de países periféricos

Essa transição energética tem sido pensada e articulada por países centrais no capitalismo internacional e se insere no Green Deal proposto pela União Europeia, que objetiva descarbonizar a economia do bloco até 2050. O discurso europeu, segundo artigo da pesquisadora Kristina Dietz, se traduz assim: a transição energética torna-se central na modernização ecológica do sistema capitalista, a partir de soluções tecnológicas e inovação científica para fazer frente à crise energética e climática. Este processo ocorre e ocorrerá em detrimento da exploração de terras e bens naturais de países periféricos, especialmente em África e América Latina.

Mesmo após o fim do colonialismo, enquanto relação política e econômica de dominação de um estado sobre um território, o Sul global continua a ser visto de forma colonial pelos atores hegemônicos do Norte, que o entendem como fronteira a ser explorada, mas agora em torno de um novo consenso: a “salvação” da humanidade, legitimando projetos de energias renováveis e mineração voltada para a demanda da transição energética. 

Nesse cenário, tem-se observado no Brasil um aumento significativo na instalação desses projetos – principalmente usinas eólicas e operações minero-extrativas. 

As buscas por minerais críticos no contexto da transição energética vêm causando conflitos nas novas fronteiras extrativistas, seja pelo aumento da pesquisa e prospecção, seja pelos impactos sociais e ambientais decorrentes de operações, de acordo com estudos sobre conflitos causados pela extração de minerais críticos no Brasil, publicado pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Lançando mão de um discurso sustentável e utilizando estratégias construídas como “verdes” pelo mercado e pelos governos, as empresas mineradoras avançam na busca por minerais críticos. 

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Vale ressaltar que, no Brasil, o setor tem passado por uma renovação, no que se refere à busca por legitimidade social em função da “conjuntura cumulativa de desastres”, segundo artigo do pesquisador Luiz Jardim Wanderley, com variados crimes ou “desastres” ambientais sequenciais, como os de Mariana (2015) e Brumadinho (2019). 

‘Mesmo com a roupa ‘verde’ do desenvolvimento sustentável, as populações do campo têm sofrido com os impactos negativos de uma transição energética com cada vez mais cara de transação econômica’

Essa crise de legitimidade e de reputação do setor mineral vem ocorrendo no mundo inteiro, de acordo com artigo de Bruno Milanez.  Isso se dá por conta dos riscos de rompimentos de barragens e desastres socioambientais, além da própria contribuição das mineradoras para a crise climática. Uma análise de tendências da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE, estimou que, entre 2011 e 2060, a extração mineral deverá crescer 2,6 vezes no mundo, e que, no final desse período, a mineração e o processamento de minerais totalizarão 21% das emissões globais de gases de efeito estufa. 

Ao mesmo tempo, o que se percebe é uma apropriação da crise do clima que incide na construção de um discurso da crise climática pelo setor mineral. Esse discurso, de um lado, legitima a expansão da mineração para os chamados minerais críticos e, por outro, proporciona uma nova estratégia empresarial de convencimento, associadas às ideias de preocupação ambiental e sustentabilidade. 

Com isso, se mantém a lógica extrativa, que causa conflitos por terra, água e trabalho, e gera impactos na saúde das pessoas e no meio ambiente, ao mesmo tempo em que cria novas tecnologias de tratamento de rejeitos, cursos de educação ambiental e outras “boas práticas corporativas”. São medidas que incorporam, inclusive, uma apropriação do debate de gênero com programas de responsabilidade social e ambiental para e com mulheres nas comunidades atingidas e contratação de mulheres para liderar tais projetos e as relações com os moradores. 

Nesse sentido, a construção dessa narrativa sustentável faz com que as mineradoras deixem de ser vilãs climáticas, uma vez que se mostrariam como aliadas de todos aqueles que combatem o aquecimento global.

Por outro lado, o crescimento das energias renováveis no país tem ocorrido a partir de incentivos fiscais e investimentos que auxiliam no desenvolvimento desse setor. No Brasil, 49,1% da matriz energética é composta de fontes renováveis, sendo as hidrelétricas a principal delas. Todavia, o papel das energias renováveis, como eólicas e solares, vem aumentando. O Brasil está em sexto lugar no ranking de capacidade instalada de energia eólica no mundo. Em outubro de 2023, a capacidade instalada ultrapassou 27 GW, sendo a segunda fonte de participação na matriz elétrica. (Boleta, et al, 2024).  No nordeste, há 3746 empreendimentos de energia solar e eólica, sendo que 2222 estão em fase de construção não iniciada. Ou seja, a pressão sobre os territórios apenas começou.

Consequências devastadoras

Os projetos que vêm sendo implementados “em nome da transição energética” carregam em sua esteira diversos impactos socioambientais negativos, com consequências devastadoras. É o que vem denunciando, nos últimos anos, as comunidades atingidas, os estudos, relatórios de impactos e os movimentos sociais. São exemplos: insegurança; intimidações; degradação dos campos de dunas, dos reservatórios de sedimentos, das águas, das paisagens e dos ecossistemas; a privatização de áreas comuns, majoritariamente ocupadas por comunidades tradicionais de pesca; ausência de consulta efetiva, com direito ao veto; poluição sonora, que vem causando problemas de audição, pressão alta, dor de cabeça, estresse e falta de sono; e exploração sexual de crianças e adolescentes no período de construção das usinas eólicas. 

Ainda, os casos de grilagem de terras por empresas de energia eólica vem aumentando, como mostrou a reportagem do Intercept Brasil sobre  denúncias contra a Enel e empresas ligadas à multinacional. De acordo com o texto, essas companhias incorporam as terras de pequenos agricultores e, depois, arrendam essas áreas para a Enel construir seus parques eólicos ou de energia solar. Com isso, se estaria investindo em “energia verde”. A equipe de reportagem ainda destaca as táticas muitas vezes agressivas utilizadas por representantes dos interesses do setor eólico no processo que vem sendo chamado de “grilagem verde”.

Nos últimos anos, tamanho tem sido o impacto socioambiental negativo do processo ampliado de expansão das energias renováveis, que começaram a despontar novos movimentos sociais com capilaridade interestadual, como o Movimento dos Atingidos por Renováveis, cujo lema “renovável sim, mas não assim” conta com inspiração na luta dos povos da Catalunha, na península ibérica da Europa, contra o avanço devastador das empresas de energia eólica. 

Ainda, em que pese a participação recorde das fontes renováveis na matriz elétrica nacional, a sua incorporação tem acontecido de forma complementar às não renováveis, e não de modo substitutivo. Ou seja, não tem ocorrido a substituição direta de uma fonte por outra. Uma vez que a matriz energética brasileira já é, em certa medida, “renovável”, o que temos visto é uma diversificação mais do que uma transição energética. Isso fica evidente nos dados sobre as produções anuais médias de petróleo e gás natural no país em 2024, com produção média anual de 4,322 milhões de barris de óleo equivalente por dia (boe/d). No ano passado, pela primeira vez na história, o Petróleo foi o produto mais exportado do Brasil, desbancando inclusive a soja. 

Além disso, o país segue acenando ao desenvolvimento tecnológico do agronegócio, do avanço da mineração e da lógica dos grandes projetos. Mesmo com a roupa “verde” do desenvolvimento sustentável, os territórios tradicionais, as áreas protegidas e as populações do campo têm sofrido com os impactos negativos de uma transição energética com cada vez mais cara de transação econômica, conforme feliz expressão que surge no calor das lutas sociais no Brasil contemporâneo, sendo disseminada entre movimentos sociais, como o Movimento pela Soberania Popular na Mineração, e organizações da sociedade civil, como o Instituto Terramar do Ceará.

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