Visita de Lula ao Mercado Livre ignora nova face da exploração dos trabalhadores

Cajamar (SP), 07/04/2025-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, visita o setor de distribuição do Mercado Livre. 
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Foi com entusiasmo que o presidente Lula visitou o centro de distribuição do Mercado Livre em Cajamar, na Grande São Paulo, no começo de abril. Os investimentos da empresa são, segundo ele, símbolo da vitalidade econômica do país. 

Mas, naquele mesmo espaço, pouco mais de um ano antes, Luiz Felipe — jovem trabalhador terceirizado — tirou a própria vida minutos após ser demitido. O corpo, segundo colegas, permaneceu ali, encoberto por uma lona enquanto os demais eram forçados a continuar a jornada como se nada houvesse acontecido. A empresa negou. Os relatos dizem o contrário. O trabalho não parou. O lucro, tampouco.

Enquanto o governo comemora os R$ 34 bilhões em investimentos da plataforma, trabalhadores denunciam metas desumanas — até 120 entregas por hora —, calor sufocante, assédio moral e o esgotamento físico e psíquico como rotina. 

O Mercado Livre, segunda empresa mais valiosa da América Latina, dobra seu lucro enquanto impõe metas insanas a seus funcionários. Ex-empregados relatam vigilância constante dos supervisores, com monitoramento até das idas ao banheiro e ao bebedouro. No caso dos terceirizados, há ainda o agravante das falsas promessas de contratação. Muitos passam horas seguidas em pé, realizando movimentos repetitivos e levantando caixas pesadas. 

Lula disse ter visto “alegria” nos rostos. Mas o que ali se vê é a face limpa da máquina suja da exploração: a estética da eficiência encobrindo o suor, o medo e o luto.

A visita presidencial ao centro logístico do Mercado Livre não é apenas um evento midiático — é um símbolo revelador da naturalização da precarização e da estetização da exploração. Aproveitando esse episódio emblemático, lançamos luz sobre aquilo que costuma permanecer nas sombras: as condições concretas de trabalho nos galpões logísticos das plataformas de e-commerce. 

Vivemos a era da mercadoria veloz. Um clique no aplicativo, e uma cadeia invisível de armazenagem, triagem, deslocamento e entrega se colocam em movimento. Tudo parece simples. Tudo parece leve. Mas essa leveza é enganosa

A estética da instantaneidade — do rastreamento em tempo real, da entrega no mesmo dia, da vitrine virtual permanentemente abastecida — exige uma infraestrutura oculta. Essa infraestrutura não é feita apenas de inteligência artificial, robôs e softwares. É feita, sobretudo, de braços, pernas e espinhas tensionadas: trabalhadores e trabalhadoras que movem, embalam, separam e etiquetam, dia e noite, em jornadas marcadas pela vigilância e pela aceleração.

O processo logístico dentro desses galpões segue etapas rigorosas e interligadas: recebimento, triagem, armazenagem, separação (picking), embalagem (packing) e expedição. Quando as mercadorias chegam ao centro de distribuição, passam por conferência e triagem — onde são checadas, escaneadas e redirecionadas para o armazenamento. 

No momento do pedido, o sistema automatizado aciona um trabalhador para localizar o produto no galpão. A tarefa é guiada por um coletor de dados portátil que indica, em tempo real, onde está o item, qual o trajeto mais curto e em quanto tempo ele deve ser apanhado. 

O operário não apenas executa tarefas repetitivas: ele é rastreado em tempo real.

Após a coleta, o produto é levado para a área de embalagem, onde outro trabalhador o acondiciona segundo padrões rígidos de proteção e eficiência. Por fim, a mercadoria é separada por rota e destino e enviada à expedição, onde veículos aguardam para cumprir as entregas em ritmos cada vez mais estreitos. Todo esse processo é cronometrado, metrificado e constantemente recalibrado por algoritmos.

Nos bastidores das grandes plataformas de e-commerce, como Mercado Livre, Shopee, Magalu, Aliexpress, Amazon e tantas outras, opera-se uma reinvenção das formas de exploração do trabalho. 

Galpões logísticos funcionam como fábricas sem chão de fábrica — espaços onde o tempo do capital se sobrepõe a qualquer noção de tempo humano. A cada nova encomenda, o trabalhador é convocado a correr mais rápido, render mais, falhar menos. Não há linha de montagem, mas há sensores, metas, escâneres e algoritmos. O corpo se curva à lógica da precisão.

A logística, nesse contexto, não é um detalhe técnico: é um dos aspectos indispensáveis do capitalismo contemporâneo. É por ela que o capital se move, se realiza, se valoriza. A rotação contínua de mercadorias, comandada por softwares e plataformas, acelera a circulação e comprime o tempo entre produção e consumo. 

Como afirmaria Marx: a lógica da acumulação exige que o capital jamais repouse – ele precisa circular sem cessar, como o sangue de um corpo hiperativo, incapaz de dormir.

Essa aceleração da circulação impõe, como contrapartida, a aceleração da vida. Nossa experiência cotidiana é moldada por essa exigência de prontidão permanente. 

Queremos tudo agora, em tempo real, com rastreamento em segundos — e, com isso, reconfiguramos também nossa forma de existir. A espera vira defeito. O cansaço, uma falha moral. A lógica logística penetra nossas subjetividades, transformando nossa própria vida em operação contínua.

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A promessa de fluidez exterior exige um corpo interior permanentemente mobilizado. A logística, ao reorganizar o espaço e o tempo em função da entrega, também reorganiza o desejo: nos tornamos sujeitos da urgência, da impaciência, da performance. A “subjetividade logística” não é apenas aquela que consome rápido; é aquela que se consome no ritmo do capital.

O que se convencionou chamar de “taylorismo digital” ou “novo toyotismo” é a oportunidade de leitura para compreender essa fusão do arcaico com o hiperconectado. Trata-se da reatualização do velho projeto de Frederick Taylor, que via o trabalhador como um apêndice da máquina, a ser controlado, ritmado, cronometrado. Mas, agora, essa lógica se vê potencializada por sensores, algoritmos, inteligência artificial e big data. O operário não apenas executa tarefas repetitivas: ele é rastreado em tempo real, com cada movimento traduzido em métricas de desempenho.

O velho cronômetro da fábrica foi substituído por painéis digitais e dashboards gerenciais. A linha de montagem, por corredores de prateleiras onde o corpo caminha quilômetros por dia sob ordens silenciosas transmitidas por aplicativos. A vigilância direta do supervisor foi deslocada para a vigilância automatizada da nuvem. O resultado, no entanto, é o mesmo: extração máxima de energia humana, compressão do tempo, esvaziamento da subjetividade.

O taylorismo digital não é ruptura — é atualização. Uma atualização que leva adiante o princípio fundamental da racionalidade capitalista: controlar o tempo do trabalhador para maximizar a produção de valor. Se antes o corpo era disciplinado pela repetição mecânica, hoje é pela adaptabilidade contínua a metas variáveis, ajustadas segundo cálculos em tempo real. A figura do trabalhador multitarefa e “resiliente” não é mais uma virtude — é uma imposição estrutural.

Se Marx atravessasse o século 21, veria nestes galpões a continuidade ampliada da alienação do trabalho. Veria que, longe de termos superado as contradições do capital, as aprofundamos sob novos disfarces. 

A mercadoria continua encantada, mas agora com sensores e QR codes; o trabalhador segue expropriado de seu tempo e de sua subjetividade, mas agora algoritmicamente compelido à autoexploração. O que antes era o relógio fabril, hoje é o sistema de rastreamento de performance; o que era o capataz, hoje é o software de produtividade em tempo real.

Para Marx, o capitalismo não apenas explora: ele oculta as relações sociais sob a forma-coisa. No e-commerce, essa ocultação é radical. A mercadoria chega “sozinha” ao consumidor, como se não passasse pelas mãos de ninguém. A tecnologia aqui não liberta: vela. O que vemos é o ápice da reificação — o apagamento do trabalho vivo por trás da aparência objetiva de eficiência tecnológica.

República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante visita e cerimônia de anúncios de investimentos e contratações por parte do Mercado Livre. Centro de Distribuição do Mercado Livre – SP04 em Cajamar - SP Foto: Ricardo Stuckert / PR
Foto: Ricardo Stuckert / PR

Esses galpões não são apenas locais de trabalho: são espaços de disciplinamento. A tecnologia, longe de emancipar o trabalho, funciona como sua coleira. Ela torna visível cada movimento do corpo, convertendo gestos em dados, corpos em gráficos, fadiga em falha de desempenho. A produção não termina com a embalagem da mercadoria: ela se estende até o último nervo do trabalhador, até sua capacidade de seguir funcionando sem descanso.

Mas esse cenário não é novo. O que há de novo é sua velocidade, sua escala, sua aparência de normalidade. A exploração se atualiza, mas não se transforma em outra coisa. 

O velho capital, agora de tênis e nuvem, ainda suga trabalho vivo para animar a mercadoria morta. A lógica do mais-valor permanece intacta, apenas mais veloz, mais conectada, mais automatizada.

No Brasil, o avanço desse modelo se acentuou após a pandemia de covid-19. Sob o pretexto da eficiência e da retomada econômica, expandiram-se os centros logísticos, multiplicaram-se os contratos temporários e se naturalizou o ritmo insustentável da entrega expressa. 

Não é contra a tecnologia que devemos lutar. É contra sua colonização pelo capital. Contra seu uso como instrumento de extração, vigilância e esvaziamento da vida.

A crítica marxista nos ensina que a mercadoria oculta a relação social que a produziu. No caso do e-commerce, essa ocultação atinge o ápice: a experiência de consumo se apresenta como mágica, enquanto o sofrimento do trabalho é apagado do imaginário social. 

O desafio está em romper esse feitiço. Mostrar que o clique não é leve, que o rastreamento tem cheiro de suor, que a entrega tem um custo que não está na etiqueta do produto — mas na carne de quem o movimenta.

Não é contra a tecnologia que devemos lutar. É contra sua colonização pelo capital. Contra seu uso como instrumento de extração, vigilância e esvaziamento da vida. 

O que está em disputa não é apenas o controle dos meios de produção, mas o controle do tempo, do espaço, da experiência sensível. O que está em disputa é o que pode um corpo — um corpo que não seja apenas vetor de produtividade, mas de imaginação, de pausa, de recusa.

O taylorismo digital  mostra que o capital não esquece. Ele reaproveita suas engrenagens mais brutais sob as tintas brilhantes da inovação. Mas também revela sua fragilidade: depende da disciplina dos corpos, da cooperação forçada, da ausência de alternativas visíveis. Por isso, resistir é antes de tudo tornar visível. Tornar legível o cansaço. Reivindicar o tempo. Devolver ao gesto humano a densidade que o algoritmo tenta suprimir. 

A luta começa quando os trabalhadores dizem não ao ritmo que os esgota. Porque entre o clique e o cansaço existe um campo de conflito — e nele, trabalhadores seguem inventando formas de resistência. Seja na recusa ao ritmo imposto, na construção de solidariedades ou na denúncia das violências cotidianas, pulsa a possibilidade de outra organização do trabalho. Uma em que a técnica não sirva ao capital, mas à liberdade. Em que o tempo não seja capturado pela mercadoria, mas devolvido à vida.

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