Dentes humanos podem ter origem em estruturas sensoriais de peixes antigos

O interior sensível dos dentes humanos pode ter se originado de um lugar aparentemente improvável: tecido sensorial em peixes que nadavam nos oceanos da Terra há 465 milhões de anos. Os cientistas relataram as descobertas na quarta-feira (21) na revista Nature.

Embora nossos dentes sejam cobertos por esmalte duro, é a dentina — a camada interna do dente responsável por transportar informações sensoriais para os nervos — que reage à pressão de uma mordida forte, à dor ou a mudanças como frio extremo ou doçura.

Ao tentar determinar as origens dos dentes, uma das muitas possibilidades consideradas por pesquisadores ao longo dos anos era que os dentes poderiam ter evoluído a partir de protuberâncias nos exoesqueletos blindados de peixes antigos. Mas a verdadeira finalidade dessas estruturas, chamadas odontódeos, era incerta.

Agora, um novo estudo e varreduras em 3D de fósseis forneceram evidências de que essas protuberâncias externas continham dentina, o que provavelmente ajudava os peixes a perceberem seu entorno.

“Cobertos por esses tecidos sensíveis, talvez, quando esbarrassem em algo, pudessem sentir essa pressão, ou talvez pudessem perceber quando a água ficava muito fria e precisavam nadar para outro lugar”, afirma a autora principal do estudo, Yara Haridy, pesquisadora de pós-doutorado no departamento de biologia e anatomia de organismos da Universidade de Chicago, em um e-mail.

Durante sua análise, a equipe também descobriu semelhanças entre os odontódeos e estruturas chamadas sensilas, que existem como órgãos sensoriais nas carapaças de animais modernos como caranguejos e camarões, e podem ser encontradas em artrópodes invertebrados fossilizados. O desenvolvimento dos odontódeos em peixes, que são vertebrados, e das sensilas em artrópodes, que são invertebrados, é um exemplo clássico de convergência evolutiva — quando características semelhantes evoluem de forma independente em diferentes grupos animais, segundo Haridy.

“Esses peixes sem mandíbula e artrópodes aglaspídeos (artrópodes marinhos extintos) possuem um ancestral comum extremamente distante que provavelmente não tinha nenhuma parte dura”, diz Haridy. “Sabemos que vertebrados e artrópodes evoluíram partes duras de forma independente e, surpreendentemente, eles desenvolveram mecanismos sensoriais semelhantes integrados aos seus esqueletos duros de maneira independente.”

Enquanto os artrópodes mantiveram suas sensilas, os odontódeos parecem ser os precursores diretos dos dentes nos animais.

Ao comparar sensilas e odontódeos, os pesquisadores também chegaram a outra descoberta: uma espécie, antes considerada um peixe antigo, na verdade era um artrópode.

A busca pelos vertebrados mais antigos

O objetivo inicial de Haridy era resolver o mistério do vertebrado mais antigo que existe no registro fóssil. Ela procurou museus de todo o país e perguntou se poderia escanear quaisquer espécimes fósseis que eles tivessem do Período Cambriano, que ocorreu entre 540 milhões e 485 milhões de anos atrás.

Em seguida, ela se preparou para uma noite inteira no Laboratório Nacional de Argonne, onde usou a Advanced Photon Source para capturar tomografias computadorizadas (TC) de alta resolução.

“Foi uma noite no acelerador de partículas; foi divertido”, conta Haridy.


Uma varredura da estrutura de um odontódio semelhante a um dente do peixe-gato com boca de ventosa mostra nervos (em verde) que permitem a transmissão de informações sensoriais do odontódio para o sistema nervoso • Yara Haridy/Universidade de Chicago

À primeira vista, um fóssil de uma criatura chamada Anatolepis parecia ser um peixe vertebrado — e, de fato, pesquisas anteriores de 1996 o haviam identificado como tal. Haridy e seus colegas notaram que havia uma série de poros preenchidos com um material que parecia ser dentina.

“Estávamos nos cumprimentando, tipo ‘meu Deus, finalmente conseguimos’”, diz Haridy. “Aquilo teria sido a primeira estrutura semelhante a um dente em tecidos de vertebrados do Cambriano. Então, ficamos muito empolgados quando vimos os sinais característicos do que parecia ser dentina.”

Para confirmar a descoberta, a equipe comparou os escaneamentos com os de outros fósseis antigos, bem como com caranguejos modernos, caramujos, besouros, tubarões, cracas e até pequenos cascudos que a própria Haridy havia criado.

Essas comparações mostraram que Anatolepis se assemelhava mais a fósseis de artrópodes, incluindo um do Museu Público de Milwaukee. E o que a equipe pensava serem túbulos revestidos de dentina eram, na verdade, mais semelhantes a sensilas.

Mas eles de fato encontraram odontódeos contendo dentina em peixes antigos como Eriptychius e Astraspis durante os escaneamentos.


Uma tomografia computadorizada mostra dentículos em um tubarão-gato. Essas estruturas semelhantes a dentes estão conectadas ao sistema nervoso • Yara Haridy/Universidade de Chicago

A confusão sobre a verdadeira natureza de Anatolepis surgiu da natureza fragmentária dos fósseis. As peças mais completas têm apenas cerca de 3 milímetros (0,1 polegada) de tamanho, segundo Haridy, o que se mostrou um desafio para pesquisas comparativas baseadas em imagens externas.

Mas os novos escaneamentos que ela realizou permitiram uma visualização em 3D dos fósseis, revelando sua anatomia interna.

“Isso nos mostra que ‘dentes’ também podem ser sensoriais, mesmo quando não estão na boca”, diz Haridy. “Portanto, há uma armadura sensível nesses peixes. Há uma armadura sensível nesses artrópodes. Isso explica a confusão com esses animais do Cambriano inicial. As pessoas achavam que isso era o vertebrado mais antigo, mas na verdade era um artrópode.”

A tecnologia de imagem moderna de ponta usada no estudo está resolvendo o debate sobre Anatolepis, segundo Richard Dearden, pesquisador de pós-doutorado no Centro de Biodiversidade Naturalis, em Leiden, na Holanda. Dearden não participou da nova pesquisa.

“Os autores usam abordagens modernas de imagem de ponta para tentar resolver essa questão, reunindo um impressionante conjunto de dados comparativos para estabelecer de forma convincente que Anatolepis realmente não é um vertebrado”, diz Dearden em um e-mail.

Armadura contra os elementos

Peixes blindados sem mandíbula como Astraspis e Eriptychius e artrópodes antigos como Anatolepis coexistiam nos mares rasos e lamacentos do período Ordoviciano, que ocorreu entre 485,4 milhões e 443,8 milhões de anos atrás.

Outros contemporâneos desses animais incluíam grandes cefalópodes, como lulas gigantes, bem como enormes escorpiões marinhos. Características como odontódeos e sensilas ajudariam peixes e artrópodes a distinguir predadores de presas.

“Quando você pensa em um animal primitivo como esse, nadando por aí com uma armadura, ele precisa perceber o mundo. Era um ambiente bastante intenso em termos de predadores, e ser capaz de perceber as propriedades da água ao seu redor teria sido muito importante”, diz o autor sênior do estudo, Neil Shubin, professor Robert R. Bensley de Biologia e Anatomia de Organismos na Universidade de Chicago, em um comunicado. “Então, aqui vemos que invertebrados com armadura, como os caranguejos-ferradura, também precisam perceber o mundo, e, por acaso, chegaram à mesma solução.”

Vários peixes modernos possuem odontódeos, enquanto tubarões, raias e alguns bagres são cobertos por pequenos dentículos, que fazem com que sua pele pareça lixa, segundo Haridy.

Haridy estudou os tecidos dos cascudos que criou e percebeu que seus dentículos estavam conectados a nervos da mesma forma que os dentes nos animais. Ao comparar dentes, odontódeos e sensilas, todos eram incrivelmente semelhantes.

“Acreditamos que os primeiros vertebrados, esses grandes peixes blindados, tinham estruturas muito semelhantes, pelo menos morfologicamente. Eles parecem iguais em artrópodes antigos e modernos, porque todos estão formando essa camada mineralizada que cobre seus tecidos moles e os ajuda a perceber o ambiente”, diz Haridy.

É provável que os genes necessários para formar odontódeos também tenham produzido dentes sensíveis nos animais — incluindo os humanos — mais tarde, de acordo com os autores do estudo.

As descobertas apoiam a ideia de que estruturas sensoriais surgiram primeiro nos exoesqueletos, que então forneceram as informações genéticas que poderiam ser usadas posteriormente para criar dentes, à medida que eles se tornaram uma parte necessária da vida, observaram os autores do estudo.

“Com o tempo, os peixes evoluíram mandíbulas, e passou a ser vantajoso ter estruturas pontiagudas ao redor e dentro da boca”, diz Haridy. “Pouco a pouco, alguns peixes com mandíbulas tinham odontódeos pontiagudos na borda da boca e, eventualmente, alguns ficaram diretamente dentro da boca e desapareceram do restante do corpo. A relação entre odontódeos e dentes está sendo continuamente esclarecida por novos fósseis e pela genética moderna.”


Uma tomografia computadorizada da parte frontal de uma raia mostra os dentículos duros, semelhantes a dentes, em sua pele (mostrados em laranja) • Yara Haridy/Universidade de Chicago

A nova pesquisa refina a linha do tempo para o primeiro aparecimento de tecidos duros e dos ancestrais mais antigos dos peixes com mandíbula, ao remover Anatolepis da árvore da vida dos peixes, segundo Lauren Sallan, professora assistente e chefe da unidade de macroevolução no Instituto de Ciência e Tecnologia de Okinawa, no Japão. Sallan, que não participou do novo estudo, afirma que isso também levanta uma nova hipótese intrigante: que os precursores em forma de escamas dos dentes evoluíram para detectar presas, parceiros ou predadores na água.

“Isso é um verdadeiro desafio para suposições aparentemente óbvias de que tecidos duros como dentina e estruturas como escamas e dentes evoluíram (principalmente) para proteção do corpo ou alimentação na boca”, diz Sallan. “Em vez disso, eles podem ter sido ‘exaptados’ (posteriormente modificados) para esses usos, assim como os membros evoluíram antes de serem usados para andar em terra. Também é interessante ver o grau de convergência entre os primeiros artrópodes blindados e os peixes, e levanta questões sobre quanto sobreposição ecológica existia entre esses dois grupos.”

Haridy quer continuar a busca por fósseis que possam levar ao vertebrado mais antigo, dado que os pesquisadores acreditam que existam vertebrados anteriores a Astraspis e Eriptychius. E, embora eles não tenham descoberto isso nesta pesquisa, fizeram descobertas valiosas, diz Shubin em um e-mail.

“Ficamos desapontados por Anatolepis não ser um vertebrado, mas ficamos maravilhados com as novas ideias que surgiram”, afirma Shubin. “E isso nos levou a uma direção totalmente nova. Isso é ciência.”

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Este conteúdo foi originalmente publicado em Dentes humanos podem ter origem em estruturas sensoriais de peixes antigos no site CNN Brasil.

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