Extrema direita quer eliminar mulheres ‘fora do padrão’ das Olimpíadas

A extrema direita e seus colegas fascistas de gênero costumam mirar nas pessoas trans em seus ataques. Quando se trata dos esportes femininos, um dos territórios favoritos das cruzadas transfóbicas, a exclusão das mulheres trans vem sendo uma prioridade legislativa dos conservadores nos EUA, levando inclusive a propostas de avaliação genital abusiva para meninas cujo sexo atribuído no nascimento seja questionado. Mas não deveria ser surpreendente que o mais recente caso de grande repercussão esteja direcionado contra atletas que, na realidade, tiveram o sexo feminino atribuído a elas no nascimento.

Extremistas de direita, como Donald Trump, J.D. Vance e Elon Musk, em uníssono com fanáticos do binarismo de gênero, como J.K. Rowling, estão neste momento proferindo insultos contra uma boxeadora que é mulher cis, a argelina Imane Khelif, após a derrota rápida imposta à sua adversária italiana em uma luta durante as Olimpíadas de Paris, na semana passada. Khelif é uma atleta mulher, que foi considerada apta a competir pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Mas ela é só o caso mais recente nos esportes de uma mulher racializada que os comentaristas de direita não consideram suficientemente feminina, obcecados por inventar um binarismo de gênero rígido que contraria a realidade social, médica e biológica.

“Os ataques contra Khelif (…) revelam a ideologia de gênero da direita pelo que realmente é: intelectualmente indefensável e racista.”

Os ataques contra Khelif, como o tratamento discriminatório que já foi dado anteriormente a atletas mulheres como a corredora sul-africana Caster Semenya, revelam a ideologia de gênero da direita pelo que realmente é: intelectualmente indefensável e racista. Apontar isso não vai impedir que o lamentável policiamento de gênero continue; mas deveria ser motivo de reflexão para qualquer pessoa que considere que os posicionamentos conservadores e excludentes de pessoas trans sobre gênero poderiam sequer ser dignos de debate.

Na página inicial do jornal New York Post esta semana, um artigo de Douglas Murray considerava a vitória justa de Khelif como o “resultado trágico de deixar homens biológicos competirem em esportes femininos”. (O tabloide publicou pelo menos cinco matérias sobre a controvérsia na semana passada, mostrando a disposição da imprensa de extrema direita para explorar o sentimento transfóbico.) Nas redes sociais, milhares de posts repercutiram o argumento, chamando Khelif de “homem” ou “biologicamente homem”, e dizendo que ela teria uma vantagem injusta. Os conservadores logo se apegaram ao fato de que Khelif e outra competidora olímpica de Taiwan, que agora também está sofrendo ataques, já haviam sido consideradas inaptas a competir pela Associação Internacional de Boxe (AIBA) – uma organização que vem sendo amplamente desacreditada e que deixou oficialmente de ser reconhecida pelo COI.

O sexo feminino foi atribuído a Khelif no nascimento. A controvérsia surgiu a partir de testes bioquímicos realizados pela AIBA que resultaram em sua retirada das competições da entidade, provavelmente porque foram encontrados níveis elevados de testosterona ou alguma variação cromossômica. Não se conhecem detalhes sobre os exames da AIBA, e Khelif está plenamente apta a competir nos Jogos Olímpicos pelas regras da competição. Mais especificamente, níveis elevados de testosterona ou a presença de cromossomos XY ou XXY não tornam uma pessoa homem, ou biologicamente homem. Essa é uma fantasia dos conservadores, nesse caso alimentada pela prática dos chamados testes de gênero nos esportes. Digo “chamados” porque esses testes não conseguem de forma alguma testar algo que depende de tantas características e determinações como o gênero de uma pessoa. 

Vale a pena esclarecer isso apenas para enfatizar a incoerência das ideologias de sexo/gênero da direita, supostamente baseadas em aspectos biológicos, que foi exposta nos ataques contra atletas como Khelif. Em primeiro lugar, para um posicionamento político tão apegado à sua capacidade de “definir uma mulher” e distinguir rapidamente, no cotidiano, quem é ou não é mulher, deveria ser incômodo para os ditadores de gênero que apenas os caprichos da testagem esportiva tenham revelado variações hormonais ou cromossômicas em pessoas adultas que até então viviam sem contestação de suas categorias determinadas de sexo/gênero. “Em muitos casos, essas atletas não faziam ideia de que tinham variações cromossômicas até que as autoridades olímpicas da verificação de gênero lhes mostraram os resultados, logo antes dos eventos, e as consideraram inaptas para competir”, observou Christina Cauterucci, do site Slate.

Caso esses “testes de gênero” fossem mais disseminados, os conservadores e seu séquito transfóbico talvez ficassem incomodados por descobrir que a biologia não está ao seu lado: pessoas com variações cromossômicas fora do binário XX e XY não são extremamente raras. A incidência é de 1 em 100 pessoas, mais comum do que gêmeos idênticos.

Como apontou Ruth Padawer, redatora da New York Times Magazine, em um extenso artigo sobre “testes de gênero” nos esportes, há décadas os endocrinologistas e geneticistas questionam os limites e exclusões que essas práticas pretendem estabelecer: “confiar na ciência para arbitrar a divisão entre homens e mulheres nos esportes é infrutífero, dizem, porque a ciência não conseguiu traçar uma linha que a própria natureza se recusa a traçar”.

Não que isso importe para inúmeros órgãos reguladores e fanáticos da conformidade de gênero. Também não importa que a aplicação dessa metodologia falha tenha um legado execrável de excluir atletas racializadas.

Os órgãos reguladores dos esportes selecionam com esmagadora frequência atletas negras bem-sucedidas para realizar testes cromossômicos, hormonais e genitais, com o objetivo de excluí-las das competições, o que a Human Rights Watch considera “práticas que violam direitos fundamentais à privacidade e a dignidade”. A organização também relata que as atletas encaminhadas para os testes de gênero são “predominantemente mulheres racializadas do Sul Global”. 

“O fato de que mulheres cis são vítimas dessa discriminação não é motivo de reflexão para quem se compromete com a eliminação das pessoas trans.”

O fato de que mulheres cis são vítimas dessa discriminação não é motivo de reflexão para quem se compromete com a eliminação das pessoas trans. Na mesma linha, mulheres cis e trans já foram atacadas nas ruas por extremistas obcecados em identificar e erradicar qualquer pessoa que, a seu ver, não possa ser considerada mulher. A estrita conformidade de gênero exige uma aplicação autoritária ampla, que vai muito além do policiamento de comunidades e indivíduos trans ou queer. E para a extrema direita racista, não é apenas uma feliz coincidência que sejam consistentemente as mulheres negras e outras mulheres racializadas as vítimas do policiamento violento de gênero, excluídas há muito tempo das proteções concedidas à feminilidade branca. As exclusões por sexo/gênero não podem ser desvinculadas do projeto historicamente colonialista e de supremacia branca que é a categorização rígida por sexo e a imposição de gênero. 

Seria tolice imaginar que a extrema direita já tenha se interessado em algum momento pelas ciências biológicas, ou, obviamente, pela proteção às mulheres e à categoria feminina nos esportes. Se a questão da concorrência desleal estivesse realmente em jogo, o fato de que Khelif perdeu nove lutas anteriores de seu cartel contra outras mulheres, inclusive a irlandesa Kellie Harrington, que ganhou a medalha de ouro nas Olimpíadas de Tóquio, certamente desmentiria a alegação de sua suposta vantagem inevitável. A gritaria só expõe as falhas intelectuais e de lógica da ideologia fascista de gênero. Isso não significa, porém, que essas campanhas reacionárias possam ser derrotadas com argumentos mais fortes embasados na ciência e na razoabilidade, sob a forma de debate político. O policiamento racista e misógino de nossos corpos merece apenas o nosso desprezo e a nossa oposição ferrenha. 

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