
Movimento é impulsionado por jovens, redes sociais e estética ‘descolada’ de igrejas como a Lagoinha. Para especialistas, estratégia tem como objetivo a acomodação cultural. Entre 2010 e 2022, evangélicos passaram de 21,6% para 26,9% da população, segundo o Censo. Balada Sky toca eletrônica, trap, sertanejo, funk gospel.
Reprodução/Balada Sky/Redes sociais
Baladas, festivais, expedições, carnaval e a expansão da música gospel para gêneros como trap e funk: nos últimos anos, vem crescendo a adesão de evangélicos a espaços culturais historicamente considerados “mundanos” e “profanos” por igrejas mais tradicionais.
De cultos na D-Edge, casa noturna tradicional de música eletrônica em São Paulo, ao bloco de carnaval gospel e ao Legendários (expedições religiosas com linguagem motivacional), a ocupação de ambientes seculares por grupos cristãos vem ganhando cada vez mais visibilidade — especialmente com o uso das redes sociais e o crescimento da comunidade evangélica no Brasil.
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De acordo com o Censo 2022 divulgado na sexta-feira (6) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2010 e 2022 a quantidade de evangélicos cresceu 5,2 pontos percentuais, passando de 21,6% para 26,9% da população (veja mais abaixo).
Para Nina Rosas, especialista em Estudos da Religião e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), este movimento não é recente e ocorre, pelo menos, desde os anos 90. Mas, com o crescimento dos evangélicos no país e o uso das redes sociais, ele tem ficado mais visível.
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Segundo o g1 apurou, a ocupação progressiva desses ambientes seculares se dá por alguns fatores, como:
Descentralização da autoridade religiosa;
Sacralização de ambientes considerados profanos;
Adoção da lógica de mercado;
Teologia da Prosperidade;
Liberação de usos e costumes (leia mais abaixo).
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Esta presença já é vista na cultura e, principalmente no mundo digital. Nas redes sociais, influenciadores evangélicos acumulam milhares de seguidores e mostram suas rotinas. São vídeos de “Get Ready With Me” (trend “arrume-se comigo”), de lazer e, principalmente, apresentando as igrejas.
As próprias igrejas também têm presença forte nas redes sociais. Fundada pela família Valadão, a Igreja Batista da Lagoinha em Alphaville já acumula mais de 700 mil seguidores somente no Instagram, enquanto a Hillsong São Paulo tem mais de 170 mil.
No culto realizado na D-Edge e que foi acompanhado pelo g1, por exemplo, a quantidade de celulares e câmeras profissionais gravando o evento para ser postado nas redes sociais era quase equivalente à de pessoas presentes.
As baladas gospel já viraram até trend no TikTok, com vídeos que ultrapassam milhares de visualizações. Um deles foi gravado por Karen Santos, de 25 anos, em janeiro deste ano. Ele alcançou mais de 68 mil curtidas. No vídeo, ela mostra um DJ no evento Vira Brasil, o festival de Réveillon de música gospel da Lagoinha com ingressos que custaram até R$ 3.500 na área VIP.
“O vídeo foi no Vira Brasil, primeiro evento de virada de ano de uma igreja em um estádio, que levou várias figuras do mundo gospel. Quem aparece no vídeo é o DJ PV, que tem as batidas de música como qualquer outro DJ, porém ele usa louvores”, conta ela.
“Ele usa batidas ‘do mundo’ e músicas evangélicas justamente para trazer o jovem para dentro da igreja. A batida não tem nada a ver com a música. O que a gente leva em consideração é a letra que estamos cantando”, afirmou Karen ao g1.
“Eletrônico gospel, pagode gospel, sertanejo gospel fazem com que mais pessoas interajam com a religião e adorem a Deus”, completa.
Karen se tornou converteu em 2021, após se casar com um evangélico. Há dois anos, ela começou a frequentar a Lagoinha Alphaville. “Aqui é um pouco diferente da igreja tradicional. O pessoal pode vestir o que quiser, ouvir o tipo de música que quiser, não é uma coisa muito fechada. É uma igreja mais desconstruída”, conta.
Vida noturna gospel
A Balada Sky, voltada totalmente para o público evangélico, chega à 14ª edição neste ano em Guarulhos, na Grande São Paulo, e Jundiaí, no interior. Segundo João Batista Ribeiro, promotor do evento e DJ, ela é considerada “a maior white party cristã do Brasil”.
Geralmente, a festa começa por volta de 22h e vai até 6h. O público é embalado, principalmente, pelos DJs que fazem remixes de músicas gospel, tocando eletrônica, funk e trap. Bandas convidadas também fazem parte da programação.
“Durante um bom tempo a igreja evangélica no geral resumia suas atividades apenas a encontros litúrgicos. Porém, acreditamos que a igreja deve se posicionar como um agente influenciador na sociedade e promover não apenas cultos e reuniões, mas também atividades que possam gerar relações interpessoais em sua comunidade”, afirma João Batista.
“A igreja não é só templo, mas sim a reunião de pessoas para fazer atividades que estreitam essas relações. Isso inclui festas e baladas seguindo os valores e princípios da comunidade”, completa.
Balada Sky chega a 14ª edição neste ano
Reprodução/Balada Sky/Redes sociais
Há oito anos, a Balada Colors — que se autointitula a maior festa gospel neon de São Paulo — também transforma igrejas em pistas de dança com iluminação de luz negra e tintas fluorescentes à disposição do público.
Em maio, a festa chega à 9ª edição. Será realizada na Igreja da Lagoinha Campus 2, em Santo André, no ABC Paulista. A maioria do público é formada por jovens cristãos entre 18 a 26 anos que se divertem ao som de diversos ritmos, que vão de eletrônica e trap até reggae e pagode — e sem bebida alcoólica.
Para Paulo Flávio Ferreira, um dos líderes jovens da Lagoinha e coordenador da festa, esse tipo de evento é uma forma de “falar de Deus para as pessoas” e um exemplo de que “é possível unir Deus e a alegria sem os dogmas da religião que só trazem culpa”.
“A igreja, como comunidade cristã que tem seus princípios e valores, precisa entender que o seu compromisso não é apenas em promover cultos aos domingos. Mas poder gerar uma programação que seja sadia aos seus frequentadores: encontros de orientação, comunhão, festas para diversão, ações sociais para ajudar necessitados”, exemplifica Paulo.
Balada Colors é frequentada em especial por jovens cristãos entre 18 a 26 anos
Reprodução/VRIMAGE/Vinicius Rodrigues
O uso do entretenimento como porta de entrada para a igreja não é um fenômeno recente, como apontaram os especialistas ouvidos pelo g1. Caso do estudante Kayke Macoy, de 21 anos, que frequentou matinês organizadas em igrejas evangélicas durante a adolescência em São Paulo.
Kayke conta que as festas — que ele classificou como “balada do bem” — eram regadas a muita música e comida, além da adoração a Deus. “É como qualquer outra balada, porém sem exagero, sem nenhuma bebida alcoólica, sem nenhum tipo de droga. A vibe das pessoas é superpositiva. Todo mundo muito alegre, animado. Um ambiente seguro.”
‘Coisas de Deus’ e ‘coisas do mundo’
Público em culto na D-edge.
Deslange Paiva/ g1
No universo evangélico, a fronteira entre o sagrado e o profano sempre foi bem definida. Essa distinção rígida entre “coisas de Deus” e “coisas do mundo” impulsionou a criação de versões religiosas para práticas culturais populares.
Segundo o teólogo e pastor André Anéas, doutor pela PUC-SP, essa dinâmica tem levado ao movimento de “sacralização” de espaços classificados como profanos e incompatíveis com a fé cristã.
“O ser humano quer se divertir, quer lidar bem com o seu corpo, quer ter corporeidade, quer ter lazer, quer ter show, quer ter cultura. […] Só que, na cabeça do evangélico, ele só pode fazer aquilo que é sagrado. Daquilo que é profano, ele está fora”, diz Anéas.
É dessa forma que surgem fenômenos como os blocos de carnaval gospel, baladas evangélicas e a bateria de samba Batucada Abençoada, da Igreja Bola de Neve. “Tenho que sacralizar as coisas para embalar numa embalagem evangélica ou gospel para se tornar mais atrativo — e esse pessoal sabe fazer isso muito bem”, observa o pastor.
A expansão do número de evangélicos no Brasil também ampliou a demanda por produtos culturais e espaços de lazer que dialoguem com esse público. Para Anéas, a ocupação de espaços antes considerados “do mundo” responde a uma pressão geracional, com jovens buscando expressar sua fé de forma mais plural — ainda que dentro dos limites impostos pelas igrejas.
“As igrejas estão absorvendo essas estratégias [de mercado] porque dá dinheiro. Então elas usam realmente estratégias de marketing e de comunicação para as pessoas poderem ter o melhor tipo de experiência dentro do ambiente eclesiástico. E os jovens, obviamente, têm também estratégias voltadas para eles.”
Apesar da roupagem moderna e jovem, Anéas pontua que, do ponto de vista teológico, essas igrejas seguem sendo “bem fundamentalistas, bem radicais no pensamento, na maneira de pensar a fé.”
Ele também reitera que há uma perda dos valores primordiais do protestantismo. “O mundo evangélico é cada dia menos, senão nada, protestante. Porque no protestantismo, a rigor, você não tem sagrado e profano. Tudo é sacralizado”, conclui.
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Igrejas de parede preta
Para Nina, essa adesão em ambientes antes considerados “do mundo” é vista, principalmente, nas chamadas “igrejas de parede preta”, como a Igreja Batista da Lagoinha.
“A Lagoinha vem nessa toada de renovação das igrejas protestantes — que foram muito influenciadas por vertentes pentecostais. A Lagoinha surge na década de 60, uma igreja mais antiga, e vai adotando uma série de práticas que hoje a gente chama de ‘parede preta’. Temos inúmeras igrejas que podem ser caracterizadas dentro desse novo movimento. A Lagoinha é uma delas — não todas as suas filiais ou unidades, mas boa parte, como a de Alphaville, de Niterói, algumas Lagoinhas bem expressivas e grandes, e como a do próprio André Valadão em Orlando”, afirma a especialista em Estudos da Religião e professora da UFMG.
A Lagoinha assume uma pegada mais “jovial”, principalmente influenciada pela igreja australiana Hillsong. Segundo Nina, as igrejas com esse tom incorporaram práticas da Hillsong, sobretudo de louvor e adoração com apresentações musicais nos palcos, organização de eventos, shows, gravações de CDs, DVDs, corpos de bailarinos.
Para chegar ao presente
A especialista cita Christina Rocha, que estuda a Hillsong e deu o nome de “cristianismo descolado” às práticas da igreja, que se manifesta na estética, a presença nas redes sociais – principalmente dos pastores – e uma nova forma de lidar com doutrinas.
O cristão perde as suas caricaturas e se mostram indistintos da cultura local, com uma forma mais livre de se vestir, se posicionar, pregando um igualitarismo, indistinção e, principalmente, a casualidade.
“É uma maneira de se distinguir dentro do próprio grupo evangélico e religioso, o que marca uma aproximação com o estilo que Cristina chama de ‘cosmopolitismo’, essas tendências de se entender como cidadão do mundo. Isso não significa que se é menos religioso do que antes — e esse é um ponto importante a se marcar. Em vez de vermos uma resistência, uma forma de fugir ou negar o mundo, vemos um passo em direção à acomodação”, afirma Nina.
E esse passo em direção as práticas do mundo, além de ser vista como uma maneira de atrair o público jovem é também “permitir que esses jovens permaneçam, construam suas identidades, busquem grupos de apoio e vivam a experiência da juventude no contexto contemporâneo”, segundo Nina.
A busca pela juventude está funcionando. Segundo o IBGE, quando se olha por faixa etária, o percentual de evangélicos sobe entre os mais jovens. Entre os brasileiros de 10 a 14 anos, 31,6% se declaram evangélicos. Entre os adolescentes de 15 a 19 anos, são 28,9%.
Infográfico – Religiões por faixa etária, segundo o Censo 2022.
Arte/g1
Projeções anteriores realizadas pelo próprio IBGE apontavam que a quantidade de evangélicos poderia ultrapassar católicos a partir de 2032. No entanto, de acordo com o Censo 2022, o crescimento da religião ocorre de forma lenta.
Em 12 anos, houve um crescimento de menos de seis pontos percentuais. No último Censo, em 2010, 21,6% dos brasileiros se declaravam evangélicos – o que mostra um aumento de 5,2 pontos percentuais. Em 1890, quando se começou a ter estatística sobre este grupo, apenas 1% da população se declarava evangélica.
Descentralização religiosa
Para Nina Rosas, esse movimento rumo ao “mundano” se dá principalmente pela descentralização da autoridade religiosa — diferentemente do que acontece no catolicismo.
“A religião evangélica é extremamente heterogênea, não dá para levar em conta um determinado conjunto de igrejas e dizer que elas nos informam sobre o todo evangélico. Isso é impossível, claro que para todas as religiões a gente vai incorrer nisso, porque existe uma diversidade considerável.”
Ainda segundo a professora, é importante fazer um apanhado sobre a chegada dos grupos evangélicos para entender como a igreja se comporta atualmente.
No século 19, foi a chegada dos protestantes – considerando o termo guarda-chuva – os primeiros evangélicos no país, que são oriundos Reforma Protestante, como presbiterianos, batistas, metodistas, episcopais, luteranos. Já no século 20, chega o pentecostalismo, que segundo a pesquisadora, representa pelo menos 60% dos evangélicos no Brasil.
Quando se trata do pentecostalismo, segundo a especialista, o movimento teve três “ondas” no Brasil:
Na primeira, chegaram as igrejas Assembleia de Deus e a Congregação Cristã do Brasil — que se mantêm conservadoras até os dias atuais.
Na segunda, veio a “Igreja Quadrancular, por exemplo, com aquelas grandes tendas de circos de cura e os televangelistas na metade do século 20”, afirma Nina.
Já a terceira onda tem como uma das principais representantes a Igreja Universal do Reino de Deus.
“No final dos anos 80 e começo dos 90 surgem igrejas como Universal, Renascer em Cristo e Internacional da Graça de Deus. Elas surgem com uma mudança radical doutrinal e de costumes. Então nos anos 90 tivemos o episódio do chute na santa, a maneira como a Universal ficou conhecida por fazer apelos aos fiéis para que fizessem grandes doações monetárias, e o modo que isso foi copiado por inúmeras outras igrejas”, avalia Nina.
Foi nessa terceira onda que ocorreram três fases importantes para a história do evangelho no Brasil: A Guerra Contra o Diabo, a Teologia da Prosperidade e a Liberação de Usos e Costumes. As duas últimas influenciaram mais as igrejas atuais.
Na Teologia da Prosperidade, os fiéis foram incitados sobre buscar benefícios materiais ainda em vida, como uma espécie de “herança” por ser filho de Deus. O que contrasta com doutrinas anteriores, que prometiam recompensas no Céu. Os fiéis são ensinados que têm direito de usufruir dessas bênçãos aqui e agora, e essa herança pode ser o bem-estar físico, emocional, espiritual e financeiro no presente;
A Liberação dos Usos e Costumes fala sobre a mudança estética entre os evangélicos de terceira onda. Eles abandonaram estereótipos religiosos anteriores, como levar a Bíblia debaixo do braço, não cortar o cabelo, não usar maquiagem ou usar saias longas e roupas recatadas.
Com essas mudanças, começa a ocorrer uma indistinção estética entre evangélicos e pessoas de fora da religião. Essa mudança acompanha a Teologia da Prosperidade e representa a ruptura com o recato dos pentecostais anteriores.