Acima da média de SP, radiação em água de Itu não é provocada por material radioativo armazenado em sítio, diz especialista


Em Itu (SP), estão estocadas 3,5 mil toneladas do material, também chamado de Torta II – ou ‘lixão atômico’, segundo os moradores; processo de guarda do material no local começou em 1975 e, agora, o resíduo vai a leilão. Imagem antiga mostra placa indicando local de estocagem de lixo atômico em Itu (SP)
Acervo Família Piunti
A antiga fotografia de uma placa com a inscrição “Estrada de Botuxim – Caminho de Hiroshima”, em alusão à cidade japonesa bombardeada em 1945, representa, de forma literal, o temor da população que vive próximo ao “lixo atômico” de Itu (SP) Mas será que existe razão para tanto medo assim?
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Construído de forma clandestina na década de 1970, o depósito do Torta II fica localizado a menos de 30 quilômetros do Centro de Itu. Hoje, o local, que está em processo de regularização, armazena 3,5 mil toneladas de um resíduo radioativo proveniente do tratamento químico da monazita.
Recentemente, moradores comentaram sobre o receio do material contaminar o solo, o lençol freático e, consequentemente, ir parar nas torneiras da população. “Perto do ‘lixo’ tem córrego, rios, represa, mas é ruim por causa da água, contaminação e pelos animais”, relatou o morador Francisco José da Silva.
De fato, existe radioatividade na água que consumimos, assim como outras substâncias. E isto é complemente normal e seguro, desde que esteja dentro do Valor Máximo Permitido (VMP), estabelecido pelo Ministério da Saúde (MS).
Material radioativa está estocado em Itu (SP) desde a década de 1970
Reprodução/ TV TEM
Para saber se a água de Itu está, de certa forma, “alterada”, o g1 analisou dados divulgados pelo Sistema de Informação da Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), instrumento do MS que avalia compostos e condição da água em todo o país.
Na base de dados, foram encontradas 296 análises de radioatividade realizadas em diferentes locais de Itu, que incluem ponto de consumo, captação, sistema de distribuição e saída de tratamento. No entanto, os resultados são referentes apenas ao ano de 2022 e não constam informações dos anos seguintes.
Das 296 análises, 34 apresentaram atividade radioativa;
Duas delas estavam no limite da concentração máxima considerada segura no Brasil;
Essas amostras que atingiram o limite considerado seguro foram coletadas no ponto de consumo de uma indústria metalúrgica da cidade.
Conforme o levantamento, a radiação aferida no município está acima da média do estado de São Paulo.
Em Itu, a média da atividade alfa total detectada foi de 0,29 Bq/L (número de desintegrações radioativas por segundo) e média de 0,47 Bq/L de atividade beta.
Em todo o estado de SP, ainda em 2022, a média das análises é de 0,21 Bq/L e 0,31 Bq/L para atividades alfa e beta, respectivamente. Veja no mapa abaixo a situação por cidade:

Conforme um relatório publicado pela INB, as análises realizadas nas águas superficiais da região e da represa, que abastece a Estação de Tratamento de Água Rancho Grande (Águas de Itu), mostram que a concentração de urânio está dentro do limite estipulado por órgãos federais para consumo humano. Os resultados, segundo a INB, demonstram que o depósito não altera os níveis de urânio nos mananciais.
Para o professor da Universidade de Sorocaba (Uniso) José Martins de Oliveira Junior, pós-doutorado em física nuclear, dificilmente a água do local está contaminada.
A INB afirma que os níveis de urânio ao longo do percurso são naturais – muito abaixo do limite do Ministério da Saúde (0,03 mg/L) para água de consumo e do limite do Conselho Nacional de Meio Ambiente – Conama (0,02 mg/L) para águas doces.
“O depósito que está ali onde o material está armazenado é seguro, provavelmente não tem vazamento de material, porque essa radiação beta ou alfa só iria aparecer se tivesse vazando o material: a areia monazítica que está armazenada, porque a radiação alfa e beta vem do decaimento do urânio e do tório, então precisaria estar material escapando para que essa radiação fosse detectada”, tranquiliza.
De acordo com a Prefeitura de Itu, não há indicativos de contaminação de áreas nos arredores do depósito, conforme relatórios oferecidos pelas Indústrias Nucleares do Brasil (INB) até julho deste ano.
Além disso, a Companhia Ituana de Saneamento também faz duas análises por ano em todos os mananciais, inclusive onde fica o depósito do Botuxim, e garantiu que ele não demonstra alterações ou irregularidades.
Ausência de dados
O Ministério da Saúde informou ao g1 que a ausência dos dados de Itu é de competência do próprio município.
Questionada, a CSI negou que não tenha enviado dados para alimentar o sistema Siságua. “Mensalmente, os dados sobre a qualidade da água são enviados ao Siságua, e podem ser acessados no site do Siságua por meio de cadastro”, garante.
A autarquia disse ainda que realiza análises de hora em hora nas captações de água bruta e em cerca de 200 pontos de água tratada espalhados pela cidade.
A instituição lembrou ainda que no bairro Botixim não há coletas, já que não atua na região e não é responsável pelo abastecimento de água no local.
A monazita é segura?
De acordo com Oliveira Junior, doutor em física nuclear, a monazita possui elementos pesados como urânio e tório “que se desintegram e vão gerando outros materiais ao longo do caminho até, depois de muitos milhões de anos, se tornar um material estável que seria o chumbo.”
O material, segundo as Indústrias Nucleares do Brasil (INB), é considerado de baixa radioatividade e precisa ser estocado seguindo normas de segurança.
Armazenado no Sítio São Bento, entre 1975 e 1981, o material fica dentro de sete silos, que são grandes depósitos em forma de piscinas retangulares, construídas em concreto, com paredes de 20 centímetros de espessura e superfícies internas impermeabilizadas.
Material conhecido como ‘lixo atômico’ está estocado em três locais, sendo dois em São Paulo e um em Minais Gerais
Paulo Gaspar
Desta forma, segundo o especialista, é praticamente impossível que a monazita tenha, em algum momento, “vazado” e contaminado o solo.
“Elas emitem radiação, um pouco de radiação gama, a radiação principal emitida pelo urânio e tório, que está presente também na areia monazítica, são partículas mais pesadas, então elas penetram muito pouco, a distância percorrida por elas é pequena, são pequenas, basta uma coluna de ar que é suficiente para barrá-las”, explica.
Praia radioativa?
Você sabia que existe no Brasil uma praia “radioativa”? Fica em Guarapari, no Espírito Santo. A areia de lá é escura, quase preta. Isto, porque trata-se de areia monazítica, o mesmo minério armazenado em Botuxim, Itu.
Ainda conforme o físico José Oliveira Junior, a radiação presente na praia de Guarapari é, pelo menos, 10 vezes maior do que a atividade radioativa encontrada em outros lugares. “Isso, segundo muitos estudos que existem de Guarapari, não tem trazido resultados [maléficos], como aumento do número de casos de câncer por causa da presença da areia monazítica.
Praia da Areia Preta, em Guarapari
Reprodução/Redes sociais
‘Lixo atômico’ em Itu
Sítio no interior de SP armazena ‘lixo atômico’ há quase 50 anos
O g1 foi até Botuxim, bairro que fica a cerca de 30 quilômetros do Centro de Itu, para verificar a atual situação do “lixo” e como os moradores do bairro se sentem com a presença do material, que também está depositado em outras duas unidades da empresa, na capital paulista e em Caldas (MG).
Conforme a INB, o material foi depositado a granel, sem o uso de galões, como é feito com o material estocado em Minas Gerais.
Estes silos, em Itu, ocupam aproximadamente 800 m² e uma área isolada de 20 mil m², que fica dentro de um sítio que tem área total de aproximadamente 300 mil m².
Em 2021, houve movimentações do município para impedir que o material depositado no bairro Interlagos, na capital, fosse transferido para Itu.
Conforme a INB, material está estocado a granel em sítio de Itu (SP)
Reprodução/TV TEM
Clandestino
De acordo com a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), hoje o local passa por um processo de regularização.
“A Cnen, na forma da lei, exerce o controle regulatório sobre a Unidade de Estocagem de Botuxim, para garantir a segurança nuclear e proteção radiológica dos trabalhadores, do público e do meio ambiente. Importante salientar que, embora seja uma instalação fiscalizada pela Cnen, a unidade foi construída em época anterior às etapas de licenciamento atualmente existentes, portanto, um licenciamento corretivo vem sendo implementado ao longo dos anos.”
Muro protege material radiativo estocado em sítio de Itu (SP)
Marcel Scinocca/g1
Quem monitora o material?
O monitoramento do material é de responsabilidade da INB, pelo Programa de Monitoração Radiológica Ambiental, que “prevê a monitoração de exposição à radiação ionizante, coleta de água de chuva, coleta de água de superfície, água subterrânea, água potável e sedimento”.
Conforme a INB, as medições da radiação ionizante são feitas com um instrumento chamado dosímetro. Esses equipamentos estão instalados em 15 pontos distribuídos pela área.
Além disso, a INB informou que também realiza o controle pluviométrico para monitorar o volume de chuva sobre a unidade e, com base nesse dado, faz uma avaliação para saber se alguma medida preventiva será necessária.
Os dados são compilados em um relatório anual, que também contempla a série histórica de resultados dos mesmos parâmetros para permitir a avaliação de tendência, que são enviados para cinco órgãos fiscalizadores. São eles:
Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen);
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama);
Secretaria de Meio Ambiente do Município de Itu (SMA-Itu);
Defesa Civil do Município de Itu;
Companhia Ituana de Saneamento (CIS).
Imagem atual do local onde material conhecido como ‘lixo atômico’ está estocado em Itu (SP)
Marcel Scinocca/g1
Vida longa
Contudo, o físico com pós-doutorado em energia nuclear no ambiente Paulo Massoni, do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), adverte: “Se algum dos compartimentos estiver danificado, pode, sim, ‘vazar’ radiação”.
“O urânio tem uma meia vida tão longa que, se fossem 100 anos de depósito dessas amostras, a atividade praticamente não mudaria. Mas depende do isótopo do urânio”, explica.
Ainda conforme ele, o ponto de maior atenção, a partir de agora, está no transporte do material, em eventual venda. “Existe uma distância segura. Mas seria bom tomar cuidado com as colocações, já que irá a público”, diz.
Em caso de explosão ou vazamento no local, Massoni diz que “danificaria a contenção de radiação e isso iria para o ambiente. Mas explosão seria por algo externo, não devido ao material radioativo.”
Em caso de vazamento, numa eventual ruptura dos “containers”, por exemplo, o problema seria maior.
“Se vazar, poderá contaminar solo, plantas e atmosfera. A blindagem é antiga e eu não sei o estado delas. Se for somente concreto, dentro de todos esses anos, qual a qualidade do concreto para contenção e etc. Tem que saber de todos os detalhes. O ideal seria se, além do concreto, tivesse chumbo na blindagem.”
O especialista também explica o que pode ocorrer na eventualidade dessas duas situações se concretizassem. “Com relação à radiação, existe uma grandeza física chamada atividade… Se essa atividade for elevada, o tempo exposto a ela poderá causar quebra da molécula de DNA humana, ou mutação, levando a vários tipos de câncer, leucemia principalmente”.
O g1 questionou se o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que responde pelo licenciamento ambiental, já realizou alguma fiscalização no terreno e se acompanha a situação. O instituto afirmou monitorar os cenários de risco previstos para os impactos ambientais associados à comercialização da Torta 2.
Conforme o órgão, esses impactos são mais evidentes nas seguintes áreas:
Meio físico: incluem as vias de acesso aos depósitos, o canteiro de obras necessário para a mobilização de maquinário e a produção de resíduos e rejeitos convencionais;
Meio biológico: abrangem a perturbação da fauna, supressão vegetal, compactação e processos erosivos do solo, além da qualidade da água da malha hidrográfica devido ao eventual aporte de material particulado e assoreamento;
Aspectos socioeconômicos: referem-se à percepção de risco associado ao empreendimento nuclear pela população local.
“Essas áreas são monitoradas para mitigar os impactos ambientais e garantir a segurança do meio ambiente e das comunidades envolvidas”, explicou.
O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), que, nos anos de 1990, abriu um inquérito para investigar a situação, tendo arquivado posteriormente o procedimento, foi questionado sobre como acompanha a situação de Itu, mas também não se manifestou.
Por que o material ainda está lá?
Unidade da INB, em São Paulo, onde parte da Torta II está estocada
Reprodução/Google Street View
A INB afirma que não realiza mais o processamento de monazita e que o material não tem mais utilidade para eles, mas que é um insumo estratégico para outros segmentos.
A monazita, segundo a INB, é um mineral natural encontrado ao longo da costa brasileira, principalmente entre a região norte do estado do RJ e o sul da Bahia. Os produtos desse mineral eram utilizados para produzir catalisadores, vidros especiais e ligas metálicas especiais, como, por exemplo, o cristal de neodímio, que gera o laser utilizado em cirurgias oftálmicas.
Leilões milionários
Em 2013, a INB tentou vender o material e fez um contrato com uma empresa chinesa. Uma audiência pública realizada em Itu debateu sobre a segurança do material no local e também sobre a transferência dos resíduos para a China, que teria comprado todo o material (das três unidades) por R$ 65 milhões, mas isso nunca aconteceu, pois a empresa não obteve as licenças ambientais para receber esse material na China.
Em junho deste ano, no entanto, a INB publicou um novo edital de oferta pública para vender todo o material armazenado em Itu, São Paulo e Caldas (MG).
INB coloca à venda mais de 15 mil toneladas de ‘Torta 2’ armazenadas em unidade desativada em MG
Reprodução EPTV
O material que está em Itu foi avaliado em R$ 14,3 milhões, em 2013. A INB afirma que, atualmente, não há uma estimativa para o valor dele e que, agora, a empresa aguarda a apresentação de propostas de eventuais interessados na compra que “irão refletir a avaliação do mercado atual”.
Unidade da INB, em Caldas (MG), onde a maior parte da Torta II está estocada
Reprodução/Google Street View
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