Manual do fabricante aponta risco de ATR perder sustentação e girar sob condição de gelo severo


Procedimento de voar sob gelo severo é considerado uma emergência para aeronaves como o ATR-72-500 que caiu na sexta-feira em Vinhedo, no interior de São Paulo, segundo a fabricante. Meteorologistas e pilotos relataram gelo na região onde avião caiu. ATR não comentou. Causas estão sob investigação do Cenipa, da Aeronáutica. Destroços de avião em Vinhedo
Miguel Schincariol/AFP
O manual do ATR 72, como o que caiu no interior de São Paulo, aponta o risco de a aeronave perder sustentação (“estolar”, no jargão aeronáutico) e girar se entrar em uma área de gelo severo. A ATR classifica essa condição como “de emergência”.
O ATR da Voepass sobrevoava a cidade de Vinhedo a uma altitude de 5.100 metros, em que havia relatos de pilotos sobre formação de gelo severo. Meteorologistas estimaram ainda em 35% as chances de haver gelo na região.
Vídeo mostra queda de avião em Vinhedo
A aeronave caiu sem controle e girando no ar, mostram vídeos gravados do momento do acidente, num aparente estol. A queda matou 62 pessoas —58 passageiros, dois comissários, copiloto e comandante do avião.
O Cenipa, órgão da Aeronáutica, investiga as causas do acidente. Os gravadores de dados de voo e de voz foram encontrados e serão analisados. O relatório sobre a tragédia ainda não tem prazo para ser divulgado.
Manual alerta sobre gelo severo
Pela característica das asas, na parte superior do avião, e da altitude em que voa (mais baixo que um jato), o ATR, um turboélice, está mais sujeito a ser impactado pelas formações de gelo. A aeronave tem um sistema antigelo e dispositivos no painel que apontam impacto às condições de voo resultantes do gelo.
Ainda assim, a fabricante alerta que o gelo severo acumulado nas superfícies de voo, como as asas e o estabilizador horizontal, pode não ser removido pelo sistema antigelo e “degradar seriamente a performance e controlabilidade da aeronave”, diz um manual da aeronave obtido pelo g1.
Manual do ATR 72
Reprodução
Em outro manual, “Operações em tempo frio – prepare-se para o gelo”, de 2011, a ATR alerta que o “gelo severo indica que a taxa de acúmulo é tão rápida que os sistemas de proteção contra gelo falham em remover o acúmulo”. Orienta ainda: “A tripulação precisa sair dessa condição imediatamente”. O manual foi distribuído para as companhias aéreas que operam o avião –usado principalmente em rotas regionais e, no Brasil, adotado pela Voepass e pela Azul.
Radares não detectam formação de gelo severo nos aviões, mas a previsão meteorológica aponta quando há esse tipo de situação em rota.
O piloto e engenheiro Jorge Leal Medeiros, professor de transportes aéreos da Poli-USP, explicou na sexta-feira (9) ao g1 que o acúmulo de gelo é um risco.
“O ar bate na frente da asa, uma parte vai por cima a outra vai por baixo. A que vai por cima vai mais veloz, cria uma pressão negativa, faz com que o avião voe. Agora, se forma gelo, a aerodinâmica da aeronave muda e perde a sustentabilidade da asa.”
Orientação para escapar do gelo
A orientação da ATR para os pilotos saírem de uma condição de gelo severo está na parte de “emergency procedures” do manual, ou procedimentos de emergência. A manobra é treinada em simuladores frequentemente, disse ao g1, sob condição de anonimato, um instrutor de voo de ATR.
Entre os procedimentos estão:
Aplicar a potência máxima nos motores;
Desligar o piloto automático
Segurar “firmemente” o manche “para evitar movimentos não esperados da aeronave” quando o piloto automático for desligado.
Abaixar o nariz do avião
Escapar da área de gelo severo
Informar o controle de tráfego aéreo sobre a redução de altitude
Em outro trecho, o manual orienta a adotar o procedimento contra estol “em caso de comportamento anormal de rolagem [giro] do avião”. Significa, na prática, também abaixar o nariz do avião, aplicar máxima potência.
Há um alarme no avião que indica estol ao tremer o manche –é o chamado “stick shaker”.
“O perigo do gelo severo é que o alarme de estol pode não ser disparado antes da asa estar tão contaminada com gelo a ponto de entrar em estol antes”, diz o comandante norueguês Magnal Nordal, piloto há 24 anos de aeronaves ATR, em um vídeo em seu canal no Youtube.
Ele aponta que o ATR é equipado com um sistema que alerta antes se as condições aerodinâmicas do avião estão prejudicadas por um eventual excesso de gelo não detectado. Isso torna o avião mais pesado, em razão do “arrasto”, a resistência do ar.
“Isso pode resultar em descida forçada, mas é uma emergência. Então você não tem que esperar o aval do controle de tráfego aéreo para descer. Só assegure que tenha velocidade, depois você declara emergência. Quando se trata de gelo, velocidade é vida”, diz.
Manual do ATR com instrução para comportamento anormal do avião
Reprodução
Nordal diz que as aeronaves ATR tem fama de inseguras sob gelo. Isso se deve a um acidente com um ATR da American Eagle, em 1994, nos Estados Unidos, sob más condições climáticas. Apesar disso, a ATR está certificado com capacidade de voar em segurança, graças aos sistemas de proteção contra o gelo, e é usado em todo o mundo.
“Houve três outros acidentes relacionados a gelo severo. Os últimos dois aconteceram porque a tripulação ficou esperando a liberação do controle de tráfego aéreo para descer e enquanto eles estavam esperando, perderam velocidade, a aeronave estolou e perderam controle”. No caso do ATR da Voepass que caiu em Vinhedo, o Cenipa informou que não houve contato com o controle de tráfego aéreo.
O g1 procurou a ATR e indicou à fabricante os manuais e as informações descritos nesta reportagem. A empresa não quis se manifestar.
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