Um ano da guerra de Israel contra as crianças

Israel continua a bombardear escolas.

Na quarta-feira, um ataque israelense contra uma escola para órfãos na Cidade de Gaza matou várias pessoas, a maioria delas mulheres e crianças, que buscavam abrigo ali após terem sido deslocadas por ataques anteriores.

No final do mês passado, um ataque israelense contra uma escola repleta de milhares de palestinos desabrigados, no norte de Gaza, matou pelo menos quinze pessoas.

Dias antes, um ataque contra outra escola usada como abrigo na Cidade de Gaza matou 22 pessoas, principalmente mulheres e crianças, que se refugiavam ali. As forças israelenses atacaram repetidamente as escolas, alegando que seriam usadas pelo Hamas como “centros de comando“. O Hamas nega as acusações.

Israel está cometendo “escolasticídio”, a destruição deliberada e sistemática do sistema de educação palestino em Gaza, segundo um relatório recente do Centro de Direitos Humanos Al Mezan, uma organização palestina de defesa de direitos. Gaza se tornou o lugar mais perigoso do mundo para ser uma criança, segundo o Unicef. Ao longo do último ano, os ataques israelenses mataram ou feriram dezenas de milhares de crianças em idade escolar, estudantes universitários e professores, e Israel bombardeou reiteradamente escolas que serviam como supostas zonas de segurança para pessoas obrigadas a deixar suas casas.

A guerra em Gaza produzirá um atraso de até cinco anos na educação da crianças, sob o risco de criar uma geração perdida de juventude palestina permanentemente traumatizada, segundo um novo relatório de pesquisadores da Universidade de Cambridge, do Centro de Estudos Libaneses, e da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos no Oriente Médio, UNRWA.

“A atual guerra em Gaza não é como nenhuma outra dos últimos tempos. A compreensão atual das crises prolongadas e guerras não enfrentou nenhum contexto de múltiplos deslocamentos, perda de vidas e ferimentos, nem escala de destruição e danos à infraestrutura civil, incluindo espaços educacionais e oportunidades de aprendizado, como o que vem sendo visto em Gaza”, diz o estudo, que foi publicado no mês passado.

Os ataques israelenses já mataram pelo menos 10.490 estudantes do ensino básico e universitário, e feriram mais 16.700, enquanto mais de 500 professores e educadores de escolas e universidades também foram mortos, segundo o Centro Al Mezan. As crianças de Gaza não puderam frequentar a escola por praticamente um ano inteiro. Todas as instalações educacionais em Gaza permaneceram fechadas, e centenas de edifícios escolares foram danificados ou destruídos.

“A abordagem adotada por Israel desde a primeira semana desta guerra ignora a humanidade dos palestinos.”

Josh Paul, que foi diretor de relações públicas e institucionais do gabinete do Departamento de Estado dos EUA que supervisiona as transferências de armas para países estrangeiros, até pedir exoneração em 2023 em razão da assistência militar dos EUA a Israel, diz que os ataques fizeram parte de uma campanha israelense que não teve o objetivo de derrotar o Hamas, mas de quebrar a resistência do povo palestino. “O governo dos EUA tem plena consciência de que a abordagem adotada por Israel desde a primeira semana desta guerra ignora a humanidade dos palestinos e não tem qualquer respeito pelos padrões básicos do direito humanitário internacional, muito menos pela decência humana básica, e ainda assim continuamos a fornecer as armas que permitem isso”, disse ele ao Intercept dos EUA.

Israel vem usando reiteradamente munições dos EUA em ataques contra escolas na Faixa de Gaza. A venda de armas continua.

No final do mês passado, Israel anunciou que havia chegado a um acordo com os EUA para receber um pacote auxílio de US$8,7 bilhões (R$48 bilhões) para apoiar os esforços militares em curso. Em agosto, o governo Biden aprovou cinco grandes vendas de armas para Israel, incluindo 50 caças F-15, munição de tanque, veículos táticos, mísseis ar-ar, e 50.000 projéteis de morteiro, entre outros equipamentos, em um total de mais de US$20 bilhões (R$110 bilhões). Embora tecnicamente sejam chamadas de “vendas”, o custo dessas armas é pago principalmente pelos próprios Estados Unidos, uma vez que Israel usa boa parte da ajuda militar aprovada pelo Congresso para comprar as armas de fabricação estadunidense. O governo Biden já reconheceu a possibilidade de que Israel venha usando armas dos EUA em Gaza em violação do direito internacional, mas ainda assim continuou com os envios de armas.

Os Estados Unidos ainda apoiaram Israel sem alarde na escalada da guerra no Líbano, embora publicamente convocassem a uma desescalada. As forças militares dos EUA também ajudaram Israel a repelir o recente ataque de mísseis balísticos iranianos. “Não se enganem, os Estados Unidos apoiam Israel plenamente”, disse o presidente Joe Biden.

A maior parte dos edifícios escolares em Gaza foi transformada em abrigo para pessoas deslocadas internamente. Os ataques contra eles têm sido incessantes.

Em uma semana de agosto, uma escola sofreu bombardeios diários. “Nos últimos sete dias, Israel atacou pelo menos sete escolas em Gaza, uma por dia, incluindo a Escola Al-Zahra , a Escola Abdel Fattah Hammoud, as escolas Al-Nasr e Hassan Salama, e a Escola Al-Huda”, anunciou em um comunicado à imprensa a ONG Action For Humanity, do Reino Unido, que atua em Gaza. “Todas essas escolas estavam lotadas de civis desalojados.”

Os ataques contra a escolas são uma das seis graves violações contra as crianças que foram identificadas e repudiadas pelo Conselho de Segurança da ONU. 

Em um número cada vez maior de ataques contra escolas, vestígios de uso de munições dos EUA foram encontrados nos locais. Em maio, por exemplo, uma bomba GBU-39 de pequeno diâmetro, de fabricação americana, guiada por precisão, foi encontrada não detonada em uma escola em Jabalia, no norte da Faixa de Gaza. Naquele mesmo mês, um ataque usando munição dos EUA, contra uma residência familiar e uma escola em Nuseirat, matou cerca de 30 pessoas. Em junho, uma GBU-39 foi usada em um ataque contra uma escola da ONU que abrigava palestinos desalojados. Pelo menos 40 pessoas foram mortas no ataque, segundo a equipe médica do Hospital de Mártires Al-Aqsa, nas proximidades. 

Em agosto, mais de 90 palestinos foram mortos em um ataque israelense contra uma escola e mesquita na Cidade de Gaza, que abrigava pessoas desalojadas. Pelo menos uma bomba fabricada nos Estados Unidos foi usada no ataque.

O ataque de 4 de agosto contra a escola Hassan Salama, na Cidade de Gaza, que também estava funcionando como abrigo para desalojados, matou pelo menos 30 pessoas, deixou pelo menos 14 soterradas nos escombros, e feriu dezenas de outras, segundo as equipes de resgate e a imprensa local. Após o ataque inicial, mais de três mísseis atingiram a área em um ataque duplo, relatou Mahmoud Basal, porta-voz da Defesa Civil de Gaza. Um caça F-16 de fabricação estadunidense estava envolvido no ataque, que também danificou a vizinha escola Al-Nasr, segundo ele.

“O primeiro bombardeio foi inesperado e resultou em um grande número de mártires e feridos”, disse Basal. “Enquanto os mártires e os feridos estavam sendo resgatados, as forças de ocupação emitiram um alerta da iminência de outro ataque.” A maioria das vítimas, segundo ele, eram mulheres e crianças. Os militares israelenses afirmam terem tomado “inúmeras medidas para mitigar o risco de causar danos a civis” antes do ataque, sem dar detalhes, e alegaram que o ataque estava direcionado contra “terroristas” em “centros de comando e controle do Hamas” localizados em duas escolas.

“O exército israelense destruiu deliberadamente os centros de abrigo restantes para negar aos palestinos os poucos lugares remanescentes para se refugiarem após a destruição sistemática de casas e abrigos, incluindo escolas.”

Após a onda de bombardeios em escolas em agosto, a organização suíça Euro-Med Human Rights Monitor questionou as tentativas de Israel de justificar os ataques e contestou os argumentos de necessidade militar. “As investigações iniciais da equipe de campo da Euro-Med Human Rights Monitor indicam que o exército israelense destruiu deliberadamente os centros de abrigo restantes para negar aos palestinos os poucos lugares remanescentes para se refugiarem após a destruição sistemática de casas e abrigos, incluindo escolas”, acusou a organização.

O Escritório de Direitos Humanos da ONU também manifestou horror diante do “padrão crescente de ataques das Forças de Defesa Israelenses contra as escolas em Gaza, matando palestinos deslocados internamente que buscavam abrigo nos locais”. Em um comunicado à imprensa, o escritório falou da tensão entre a alegação de Israel de que o Hamas estaria presente nas escolas que serviam de abrigo para os civis desalojados e as proteções asseguradas aos não combatentes pelo direito internacional.

“Embora a inserção de grupos armados com objetivos militares entre civis ou o uso da presença de civis com o propósito de proteger um objetivo militar de ataque constituam violações ao Direito Internacional Humanitário, isso não anula a obrigação de Israel de cumprir estritamente o Direito Internacional Humanitário, incluindo os princípios de proporcionalidade, distinção e precaução durante a realização de operações militares”, anunciou o Escritório de Direitos Humanos da ONU. “Israel, como poder ocupante, também está obrigado a fornecer às populações desalojadas as necessidades humanitárias básicas, incluindo abrigo seguro.”

Ao todo, a maioria dos edifícios escolares na Faixa de Gaza — pelo menos 477 de 564, ou 85% — foram danificados ou destruídos desde outubro do ano passado. Reabilitá-los ou reconstruí-los será um processo caro e demorado, o que significa que pode demorar anos até que seja possível usá-los novamente. O valor das estruturas educacionais danificadas, sozinho, está estimado em mais de US$340 milhões (R$1,8 bilhão). Mas tornar Gaza habitável novamente, para crianças e famílias, pode custar muito mais de US$80 bilhões (R$440 bilhões), segundo Daniel Egel, economista sênior da RAND Corporation, um centro de pesquisas dos EUA de origem militar, com sede na Califórnia, que também mencionou os custos incalculáveis. “É possível reconstruir um edifício, mas como reconstruir as vidas de milhões de crianças?”, disse ele à Bloomberg.

Desde o começo de outubro de 2023, 625 mil crianças matriculadas nas escolas de Gaza não têm acesso à educação.

“A guerra afetou gravemente as crianças em Gaza, onde uma em cada duas pessoas é uma criança”, disse Phillippe Lazzarini, comissário-geral a UNRWA, em agosto. “Quase 70% das escolas da UNRWA foram atingidas, demonstrando o flagrante desrespeito pelo direito internacional humanitário. 95% dessas escolas estavam sendo usadas como abrigos para pessoas desalojadas quando foram atingidas.”

O Unicef relatou que pelo menos 19 mil crianças foram separadas de seus pais desde outubro de 2023, uma vez que 9 em cada 10 habitantes de Gaza foram deslocados internamente, e alguns foram obrigados a se mudar dez ou mais vezes durante o último ano. Mas mesmo as crianças que ainda estão com suas famílias tiveram as vidas lançadas no caos.

“Faz parte da minha rotina diária ficar na fila por muitas horas para buscar água para a minha família, e carregar de volta para nossa barraca”, contou ao Centro Al Mezan um estudante do quinto ano, que frequentava uma escola da UNRWA. “Eu costumava levar meus livros comigo, na esperança de voltar para a escola um dia. No entanto, eu os perdi durante as constantes mudanças de um lugar para outro.”

Interrupções educacionais prolongadas podem levar a problemas no desenvolvimento cognitivo, social e emocional. Farid Abu Athra, chefe do programa educacional da UNRWA em Gaza, alertou o Centro Al Mezan sobre o aumento dos índices de evasão escolar, trabalho infantil e casamento precoce em decorrência da falta de frequência às escolas.

Mesmo antes do começo da guerra atual, estima-se que 800 mil crianças em Gaza — cerca de 75% do total da população infantil — já precisassem de suporte psicossocial e de saúde mental. O conflito expôs as crianças em Gaza a um grave sofrimento psicossocial e, em razão disso, o Unicef estima que mais de 1 milhão de crianças, praticamente todas as crianças de Gaza, agora precisem de tais serviços. Para as crianças, o estresse intenso e o trauma da guerra — exposição a mortes, ferimentos, violência, separação familiar, deslocamento, e dificuldades econômicas — podem promover alterações cerebrais, contribuindo para transtornos de ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático, depressão, e outras questões psicológicas. As crianças que vivenciaram o conflito ou o deslocamento relatam ansiedade, insônia, pesadelos, e ataques de pânico.

O Departamento de Estado dos EUA confirmou o recebimento das perguntas enviadas pelo Intercept sobre a alegação do Centro Al Mezan de que Israel está cometendo “escolasticídio” em Gaza, e sobre o uso de munições dos EUA em ataques contra as escolas no começo de setembro, mas não apresentou nenhuma resposta antes da publicação. O departamento também recusou um pedido de entrevista para discutir o mesmo assunto.

“Desde o começo da guerra, organizações de direitos humanos vêm documentando ataques terríveis de Israel, que despertaram com credibilidade alegações de violação ao direito internacional humanitário”, disse Seth Binder, do Centro de Democracia do Oriente Médio, com sede em Washington.

“Até os Estados Unidos já reconheceram que houve violações” ao direito internacional humanitário, diz Binder, inclusive com armas dos EUA. “No entanto, e apesar disso, o governo vem mantendo o apoio praticamente incondicional a Israel, gastando bilhões em transferências de armas, e ignorando as normais internacionais e as normas e políticas dos próprios EUA, que deveriam desencadear a suspensão dessas transferências. Em última análise, o sofrimento imensurável do povo palestino em Gaza ao longo dos últimos doze meses terá consequências vastas e duradouras, não apenas para os palestinos em Gaza, mas para Israel, a região, e o mundo.”

O post Um ano da guerra de Israel contra as crianças apareceu primeiro em Intercept Brasil.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.