Instituto Letras Que Flutuam: Belém ganha o primeiro instituto do Brasil dedicado à cultura ribeirinha

Programação de lançamento do ILQF será de 15 a 17 de agosto, com exibição de filmes e debates abertos ao público, e o inédito encontro de abridores de letras do Pará. Região das águas, a Amazônia tem forte tradição fluvial. Milhares de embarcações cortam rios, igarapés e furos floresta adentro. Cada uma delas é marcada por belas e singulares caligrafias coloridas, criadas pelos abridores de letras. Imbuído do propósito de fortalecer os saberes desses artistas populares, nasce o Instituto Letras que Flutuam – um marco histórico por ser o primeiro instituto voltado à cultura ribeirinha no Brasil.
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A programação de lançamento será realizada de 15 a 17 de agosto, em Belém, com exibição do filme “Marajó das Letras” e debates abertos ao público, além de oficinas voltadas a alunos de escolas das ilhas da capital, e o inédito encontro estadual de abridores de letras, quando os artistas irão criar um painel coletivo com as caligrafias amazônicas.
O Instituto é resultado de 15 anos de pesquisa, documentação, divulgação e geração de renda, junto aos abridores de letras no Pará. Fernanda Martins, idealizadora e diretora do Instituto, destaca que a cultura visual, e dentro dela a representação gráfica, tem tanta importância para a Amazônia quanto a música, a dança, a comida, pois reflete saberes que são exclusivamente locais. É a linguagem comum aos ribeirinhos, comunidades amazônicas que traduzem nos seus modos de fazer a verdade do povo amazônico.
“O homem amazônico que vive na beira, vive um mundo que a natureza impõe o verde, marrom e azul, e para se sobrepor a este regime, ao fazer cultura ele traz o colorido, o caqueado, seja nas suas casas, que têm paredes multicoloridas, seja nas roupas e nos barcos”, diz Fernanda, pesquisadora nas áreas de Tipografia e História do Design, em especial na Amazônia, com formação acadêmica na Universidade do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Pará, Universidade de São Paulo e Escola de Design de Basel, na Suíça.
De acordo com Michelle Miranda, analista de Responsabilidade Social da Equatorial Pará, o projeto é uma iniciativa que protege, cuida e amplifica os saberes populares da Amazônia através da arte.
“O Instituto Letras que Flutuam nasce para ser um marco dentro de nossa região. A Equatorial Pará, que é a empresa que mais patrocina cultura no estado, está muito feliz de estar junto a esse trabalho de resgate e valorização de tradições do povo paraense. Temos certeza que muitas ações e parcerias serão realizadas para que possamos democratizar e levar a arte do estado para cada vez mais pessoas”, comenta Michelle.
A ILQF é uma realização do Mapinguari Design e Letras Que Flutuam, com patrocínio da Equatorial Pará, por meio da Lei Semear, e parceria com o Centro Cultural Bienal das Amazônias, Instituto Peabiru e Fundação Escola Bosque (Funbosque).
Mapeando os abridores
A tradição, que surge na região por volta de 1930 e se estabelece em 1960 com a obrigatoriedade de identificação dos barcos, diz respeito a todo um universo que se capilariza por rios, furos e igarapés. Segundo o pesquisador e ativista socioambiental João Meirelles Filho, autor do Livro de Ouro da Amazônia, navegam na Amazônia cerca de cem mil barcos, em sua maioria embarcações acanhadas, de pequeno porte, construídas artesanalmente para o uso familiar. São estes os que mais se utilizam desta tradição de pintura popular.
Em busca de lançar luz sobre este fenômeno, o projeto Letras que Flutuam surge em 2004. Desde então, mapeou mais de 100 abridores de letras em Belém, Icoaraci, Abaetetuba, Igarapé Miri, Barcarena, Soure, Salvaterra, Ponta de Pedras, Curralinho, São Sebastião da Boa Vista e Breves.
Nestas incursões, o projeto promoveu ações de geração de renda, oficinas, workshops, capacitação para o mercado, lançou livro e dois documentários sobre o fazer tradicional – registros valiosos para a memória deste saber popular e a circulação da cultura por diversas regiões do país, que passaram a conhecer os mestres abridores.
Direitos autorais contra o plágio
A difusão desse vocabulário imagético ribeirinho o fez reconhecido em todo o Brasil. Isso se comprova pela enorme quantidade de produtos que estão utilizando as letras decorativas da Amazônia, sem contar produtos publicitários e marcas de empresas. Porém, alerta Fernanda, isso não se refletiu na ampliação do mercado de trabalho aos abridores de letras, que são, originalmente, os autores dessa obra singular, mas permanecem invisíveis.
“Vemos com frequência designers e publicitários copiando o trabalho destes artistas, então o debate sobre direitos autorais é fundamental. Esta é a grande urgência do Instituto Letras que Flutuam: torna-se necessário não apenas divulgar este saber, como anteriormente foi feito, mas buscar novas formas de reconhecimento e geração de renda para os verdadeiros detentores do saber de abrir letras em barcos na Amazônia”, destaca Fernanda.
O nascimento do Instituto solidifica e garante a continuidade dos esforços de promoção, preservação e proteção legal em prol dos artistas populares. “O Letras deixa de ser um conjunto de ações informais e se torna uma entidade, uma personalidade jurídica, pode atuar de acordo e autorizada pelos artistas abridores parceiros em seu benefício. O Instituto formalizado tem validado seu lugar de fala e atuação”, resume Fernanda.
Neste sentido, o ILQF conta com um Conselho de Associados que discute e decide os planos de ação. São profissionais de diversas frentes, como Maria Dorotéia de Lima, ex-superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Pará; a jornalista Adelaide Oliveira; e Samia Batista, designer, pesquisadora e produtora cultural.
O Instituto pretende ampliar o mapeamento de mestres abridores de letras da Amazônia, para criar oportunidades de geração de renda para estes artistas, e desenvolver ações que colaborem para o melhor entendimento, legalização e inclusão do saber dos artistas amazônidas no mercado.
“Entre as metas, por exemplo, atuar junto ao Iphan para que se inicie um processo de reconhecimento da importância do saber dos Abridores de Letras. Mas também na tentativa de garantir seus direitos autorais. Também realizaremos exposições, oficinas para jovens ribeirinhos, e demais atividades de difusão”, antecipa Fernanda.
Encontro inédito dos artistas
A programação de lançamento do ILQF promove o encontro inédito dos abridores de letras do Pará, que desde 2018 passaram a se conectar virtualmente por meio de grupo de rede social do Letras que Flutuam. Agora, finalmente, os mestres irão se conhecer pessoalmente, um fortalecimento de vínculo fundamental para a resistência da comunidade de artistas populares.
“É um grande marco, estas pessoas compartilham um conhecimento que é transmitido de pai para filho mas que também se consolidou através do rio. Os artistas de um município não conhecem os dos demais municípios. Hoje eles se sentem um grupo que compartilha um saber é fundamental que se conheçam para que se fortaleçam na luta pelos seus direitos”, destaca Fernanda.
Oficinas e exibição de filme
Para perpetuar esse saber, a programação promove ainda oficinas de abertura de letras ministradas pelos mestre a alunos da escola pública de Caratateua e Cotijuba, da região das Ilhas de Belém.
A programação conta ainda com a exibição do documentário “Marajó das Letras”, fruto da segunda etapa do projeto Letras que Flutuam, que mapeia os mestres pintores de barcos da ilha do Marajó, cuja pesquisa abrangeu os municípios de Curralinho, Breves, São Sebastião da Boa Vista, Ponta de Pedras, Salvaterra e Soure.
O filme conta histórias de artistas da região, como do Rosemiro, mais conhecido como Miro Graffit, que intercala o trabalho tradicional da pintura com pincel e a técnica mais “moderna” da pistola. Tem ainda a história de Paulinho, antigo mestre reconhecido em Curralinho, que chegou a fazer curso por correspondência nos anos 70. Já o pedagogo Rossini é proprietário de um estaleiro, onde constrói os barcos, e inspirou vários sobrinhos a seguirem a profissão de abridores de letras. José Augusto desenvolve trabalho voluntário ensinando crianças de seu bairro, em Ponta de Pedras. Conhecido como o Rei do Pincel, Messias é referência em Salvaterra, e nas horas vagas toca banjo. Seu Castro é um dos mestres mais antigos de Soure, e é proprietário de um comércio cheio de referências com suas pinturas.
Estas são algumas das histórias que nortearam o documentário, dirigido por Fernanda Martins e coordenado por Sâmia Batista, com direção de fotografia de Marcelo Rodrigues, som por André Mardock e produção de Tainah Fagundes.
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