Não teremos vacinas de covid-19 para todos por falta de planejamento do governo federal, diz Monica de Bolle 

Em dezembro de 2023, o Ministério da Saúde divulgou uma nova estratégia de vacinação contra a covid-19, sob a qual o imunizante foi incluído no Calendário Nacional de Vacinação para crianças de seis meses a quatro anos e 11 meses. Para grupos prioritários, a pasta recomenda uma dose anual ou semestral. Mas não há previsão de reforço vacinal para a população em geral. 

A decisão gerou críticas da comunidade científica. Em abril, pesquisadores lançaram uma carta aberta cobrando o governo federal sobre a falta de vacinas atualizadas, que protejam contra variantes mais recentes do vírus, e pela sua disponibilização para a população geral. A carta fala em “total abandono” em um “país reconhecido mundialmente por nossas campanhas de vacinação e por um governo eleito com esta pauta”. 

O argumento é o de que reforçar a cobertura vacinal da população aumenta a proteção contra casos novos, contra reinfecções e também ajuda a prevenir sequelas ligadas ao vírus, abarcadas sob o termo de “covid longa”. Ainda não existem números que confirmem a incidência de casos de covid longa, mas dados sugerem que entre 20% e 30% dos infectados possam vir a desenvolver sintomas graves, alguns dos quais são debilitantes e incapacitantes.

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Apesar da evolução no entendimento sobre o vírus e as possíveis consequências da infecção e da reinfecção, o planejamento e as ações do Ministério da Saúde no governo de Luiz Inácio Lula da Silva não refletem isso, nem na campanha vacinal e tampouco numa política de enfrentamento à covid longa, disse ao Intercept Brasil Monica de Bolle, pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics. 

De Bolle se especializou em imunologia, genética e bioquímica na Harvard Medical School durante a pandemia da covid-19 e, em 2022, obteve pós-graduação em doenças infecciosas e imunologia humana na Georgetown University.  

Para de Bolle, não há outra razão para a falta de vacinas senão a falta de planejamento por parte do governo federal. Para além do impacto individual, ela alerta sobre o custo que casos de covid longa podem ter sobre o Sistema Único de Saúde, o SUS, e para as contas públicas no que diz respeito à previdência social. 

Leia a entrevista na íntegra:

Intercept Brasil – Por que nós não teremos vacinas para todos no Brasil? Qual é a política ou diretriz guiando essa decisão?

Monica de Bolle – Eu acho, infelizmente, que nem política teve, nem diretrizes, nem pensamento estratégico sobre as vacinas de covid-19. Então, não teremos vacina para todos por falta de planejamento, não tem nenhuma outra razão. 

De repente se viram na situação em que estão e aí acabaram tendo que, na falta de um planejamento, usar o que tinham lá de recurso, que não era suficiente para comprar vacina para todo mundo, decidiram fazer essa campanha de grupos prioritários, que é uma besteira, como a gente sabe. O vírus pega a todos. Se você não vacinar todo mundo, você não está protegendo ninguém. 

Qual é o possível impacto de vacinarmos somente os grupos prioritários?

É importante reforçar que em nenhum caso a gente volta para a situação de antes. Mesmo se o Brasil hoje não tivesse vacina nenhuma para covid-19 a gente não voltaria para a situação de 2020 e isso tem uma explicação muito simples: todo mundo já foi exposto ao vírus. 

Algumas pessoas desenvolveram a doença, outras podem não ter desenvolvido, e outras pessoas, talvez muito poucas, só tenham sido expostas por meio da vacina. Mas a verdade é que, a essa altura, todos já foram expostos de uma forma ou outra ao vírus. 

Ainda assim, o Sars COV-2 é um vírus novo, e se a gente pensar no que são os vírus antigos que são patológicos para nós, são vírus que estão aí há milhares de anos. O vírus que causa varíola, por exemplo, já circula há milhares de anos, já tivemos muitas pandemias e epidemias de varíola, até chegar na vacina. Então, o Sars COV-2 é, em comparação a outros, um vírus de ontem, tem quatro anos que surgiu entre nós seres humanos. 

E ainda sabemos pouco sobre esse vírus. 

Tem muita coisa que a gente já sabe sobre ele, mas ainda tem muita coisa que a gente não sabe. O Sars COV-2 é um vírus sistêmico. Ele ficou caracterizado pela doença respiratória, então a população leiga entende ele como um vírus respiratório, só que o Sars COV-2 não é um vírus respiratório puro e simples, ele se aloja em qualquer lugar do nosso organismo. 

O vírus pode causar estragos em diversas partes do corpo, em órgãos diversos e, por isso, temos tantas histórias de pessoas que tiveram covid com doenças crônicas, que desenvolveram doenças auto-imunes, ou problemas cardiovasculares. Então esse lado do vírus, da gama de problemas que ele pode causar, mesmo em pessoas vacinadas e depois contraem a doença, é uma realidade com a qual temos que conviver. 

Como a vacina reduz e muito o risco de desenvolver covid-19 se for exposto ao vírus, o que ela faz também é impedir que pessoas que, sem a vacina, poderiam desenvolver covid longa, desenvolvam. 

O que me espanta na discussão sobre covid-19 no Ministério da Saúde hoje é a falta de planejamento e perspectiva desses problemas todos de saúde pública. Porque o vírus não deixou de ser perigoso, ele continua sendo perigoso, continua tendo essas consequências imprevisíveis. Você não tem como saber quem vai desenvolver um quadro de covid longa, você não tem como saber quem vai desenvolver uma sequela.  

E é por isso que vacinar o maior número de pessoas possível continua sendo importante. Os problemas vão mudando, não é que agora nós precisamos temer o que temíamos em 2020. Aquilo ficou para trás, mas precisamos temer sim, por um quadro de saúde pública que fica prejudicado por um excesso de doenças que poderiam ter sido evitadas se você tivesse tido um planejamento vacinal condizente com o que é esse vírus. 

Ou seja, o planejamento do Ministério da Saúde não evoluiu junto com o entendimento sobre o vírus?

Exato. Isso é o que é mais surpreendente, porque a gente hoje tem muito bem estabelecido – não se sabe de antemão quem vai ter covid longa, não sabemos quais são os biomarcadores que possivelmente ajudam a prever quem vai ter ou não, não sabemos nada disso. O que sabemos é que isso é um problema em um número nada desprezível de pessoas: entre 20% e 30% dos infectados vão desenvolver covid longa, essa estatística não mudou. 

O Ministério da Saúde pensou uma política para esses pacientes de covid longa, que demandam um tipo de atendimento especial? 

Não, também falta muito. Esse é um planejamento difícil, mas algumas coisas a gente poderia ter. A covid longa é uma síndrome que abarca uma montanha de sintomas, que vão se manifestar de formas completamente distintas em diferentes pessoas. Mas alguns sintomas são clássicos: fadiga crônica, aquela fadiga debilitante mesmo. É um sintoma muito comum e que debilita, as pessoas precisam tirar dias para ficar em casa, e algumas sofrem disso de forma que acabam, sim, indo parar no SUS para procurar algum tipo de tratamento, então isso onera o SUS. 

Nem sabendo que alguns sintomas vão aparecer com mais frequência do que outros e que, para isso, deveria haver um desenho de atendimento adequado, nem isso o Ministério da Saúde fez. Não existe nada no Brasil, nada que o MS tenha feito, para atender essas pessoas adequadamente. Inclusive, falta treinamento porque os médicos do SUS não vão necessariamente saber identificar covid longa. 

A covid longa é um monte de coisa. E há uma diferença entre um paciente que tem, por exemplo, uma tireoidite de Hashimoto porque é hereditário e um paciente que tem isso porque teve covid. Esses pacientes são completamente distintos, esse segundo paciente pode vir a apresentar outros sintomas e tipicamente é isso que acontece. Então tudo isso deveria estar num plano de enfrentamento à covid longa no Brasil, e nós não temos nada disso.

Nós vemos alguns casos de pessoas jovens, saudáveis, que tiveram de parar a vida por essas manifestações de sintomas que enquadramos como covid longa. Pensando no longo prazo, isso pode ter também um impacto na Previdência, pensando em auxílio-doença, aposentadorias por invalidez?

Lógico, claro. E nós não temos nem ideia de que custo é esse. Mas ele provavelmente é elevado, porque se você colocar na conta que entre 20% e 30% vão desenvolver algum tipo de complicação que cai dentro desse guarda-chuva de covid longa. O ônus em potencial para o SUS e para as contas públicas é enorme. E a gente não tem ideia.

É verdade que ninguém tem, no que diz respeito à covid longa, acho que só o National Health Service, o NHS, da Inglaterra tem uma noção aproximada de quantas pessoas no Reino Unido no momento têm covid longa. Mas nos Estados Unidos também não se tem ideia. Então, colocando em contexto, o Ministério da Saúde brasileiro deveria estar fazendo melhor? Sim, mas não é que outros estejam fazendo. É que no nosso caso brasileiro, isso se torna uma obrigação ainda maior, porque o nosso sistema de saúde é público. E isso não está sendo atendido ou cumprido.

Como esse cenário de falta de vacinas se liga à hesitação vacinal? Porque quando nós tivemos a troca de governo, houve uma sinalização muito forte de que a vacinação é prioridade para o governo, e agora esse discurso fica prejudicado porque faltam vacinas. 

Exatamente. A questão da duplicidade de mensagem é terrível, porque inclusive no caso atual, ela envolve atores que foram extremamente ativos durante os anos Bolsonaro em apontar os erros do governo na área de saúde em relação à covid, às vacinas e tal, e que agora estão agindo como se o vírus fosse menos importante quando isso não é verdade. 

Então, em sendo as mesmas pessoas, essa duplicidade de mensagens, essa ambiguidade é ainda pior e sim, ela contribui para que a hesitação vacinal permaneça em processo de elevação contaminada por desinformação e por essa politização das vacinas que ocorreu no mundo todo e no Brasil também. 

Então é muito ruim você não ter essa comunicação clara a respeito da importância das vacinas e da continuidade desse tipo de comunicação que foi tão importante no começo da pandemia. Nós ainda estamos em pandemia, não é como se o MS pudesse lavar as mãos e dizer que está tudo bem. O vírus está aí, circulando, infectando, continua mutando. Então, a mensagem deveria ser consistente e única, em vez de essa forma de tratar que passa a impressão de que é um problema menor.Indiretamente isso, inclusive, dá razão àqueles que atacaram as vacinas.

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