O governo topa fazer negócio com 18 empresas cujos donos estão na lista suja do trabalho escravo

A iniciativa de expor empregadores flagrados por trabalho escravo é considerada pela ONU um modelo de combate à escravidão contemporânea em todo o mundo. O problema é que, na maioria dos casos, o nome da empresa simplesmente não aparece na lista suja, o que a deixa livre para seguir atuando.

Um levantamento do Intercept Brasil constatou que, a cada 10 nomes na lista, sete são de pessoas físicas. E uma parte delas são sócias de alguma empresa – ou seja, podem ter assumido a responsabilidade para livrar as pessoas jurídicas.

Já mostramos no Intercept que manter trabalhadores em situação análoga à escravidão quase não dói no bolso do empregador. As rescisões que precisam ser pagas a cada  resgatado são, em média, pouco mais de R$ 4 mil. 

Na prática, a exposição pública dos nomes de empregadores flagrados explorando pessoas em condições análogas à escravidão é a sanção mais séria que as empresas que cometem esse tipo de crime podem sofrer. Esse cadastro é  popularmente conhecido como lista suja do trabalho escravo.

Só que, além de demorar até dois anos, em alguns casos mais, para os empregadores entrarem na lista suja, é possível que o nome da empresa não apareça. Isso ocorre porque, no momento da fiscalização, a autuação é feita em nome do dono ou do sócio da empresa, como pessoa física. 

Hoje, estão na lista suja 471 pessoas físicas e 179 pessoas jurídicas. Pelo menos 85 dessas pessoas físicas aparecem formalmente no quadro societário de ao menos uma empresa. E, em pelo menos um caso identificado pela reportagem, o endereço da “pessoa física” era o mesmo da sua empresa.

Ao menos 17 dessas empresas já forneceram produtos e serviços para o governo federal, de abastecimento de veículos a aluguel de imóveis. Ainda há uma outra que consta como fornecedora, mas nunca recebeu recursos federais.

Nenhuma empresa da lista suja aparece no Cadastro Nacional de Empresas Punidas, mantido pelo governo federal para sinalizar empresas que não devem ter contratos públicos.

Um nome sujo com negócios em Brasília

Um desses empregadores, que aparece na lista suja como pessoa física, tem negócios em Brasília a pouca distância das sedes dos órgãos de fiscalização do trabalho. Trata-se de Gilvan Farah Júnior, sócio de 57 empresas nos setores de construção, hotéis, comércio de veículos e agricultura. 

Seu CPF foi incluído no cadastro em outubro de 2023, devido a uma fiscalização trabalhista numa fazenda de soja na região de Currais, no Piauí. Na ocasião, foram libertados 16 trabalhadores, incluindo um adolescente de 17 anos de idade. Essa fazenda, especificamente, não aparece no cadastro do CNPJ em conexão com seu CPF.

Segundo o Ministério Público do Trabalho, esses trabalhadores catavam raízes para limpar a lavoura. Estavam alojados em tendas de lona, sem qualquer instalação sanitária e bebiam água quente, com sabor de ferrugem, armazenada em tanques-pipa. Comiam no chão e tinham de comprar suas próprias ferramentas, o que caracteriza  servidão por dívida. 

Farah é um dos sócios da incorporadora 906 Norte Empreendimentos. A empresa recebeu, desde 2014, mais de R$ 66 milhões do Ministério do Desenvolvimento Regional a título de aluguéis. 

Desde que o nome dele entrou na lista suja, em janeiro de 2023, até abril deste ano, o Executivo pagou R$ 5,5 milhões à empresa.

Procuramos Farah para comentar o caso, mas ele não quis se pronunciar.

Outro caso que chama atenção é o de Valney Sacramento da Silva Júnior, incluído em abril de 2024 no cadastro. No ano passado, o MTE resgatou um paciente e dois trabalhadores em uma casa de acolhimento considerada clandestina, em Feira de Santana, na Bahia. 

Segundo a pasta, 60 pessoas com transtornos mentais estavam em condições insalubres no local. 

No mesmo endereço de Sacramento funciona uma entidade chamada Cajet – Associação Casa de Amparo Jesus Com a Gente o Tempo Todo,  que aparece no cadastro de fornecedores do governo federal.

Em 2021, a Cajet recebeu título de utilidade pública da Câmara Municipal da cidade. Por algum motivo, o resgate do MTE foi atribuído à pessoa física de Valney,  conhecido como “pastor Júnior” , e não à pessoa jurídica da qual ele é sócio e que funciona no mesmo local com a mesma atividade.

Segundo os auditores que realização a fiscaliação, Valney Sacramento da Silva Júnior, “ainda que na condição de presidente ou responsável pelo abrigo fiscalizado, não formalizou sob qualquer aspecto sua atividade, inclusive apurou-se que os eventuais pagamentos feitos pelo ‘acolhimento’ dos internos eram realizados em sua conta bancária pessoal”, informou a assessoria do MTE por e-mail.

O MTE acrescentou ainda que “os depoimentos dos trabalhadores deixam claro quem os contratou, qual o regime de trabalho e a quem estavam subordinados, motivo pelo qual, para se observar um resultado útil, considera-se a pessoa jurídica como mera interposta”.

Também entramos em contato com o pastor Júnior, mas ele não quis comentar o caso.

Quem está na lista suja não tem restrição de contratos ou empréstimos

A lei não obriga nenhuma instituição a negar contratos e empréstimos a quem aparece na lista suja. No entanto, um grupo de empresas que assinaram o Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, criado em 2005 – mais de 400 empresas, cerca de 30% do PIB nacional –, se compromete a não fazer negócios com quem aparece no cadastro.

Um projeto de lei dos senadores Marcos do Val, do Podemos, e Eduardo Girão, do Novo, quer proibir empresas brasileiras de fazer qualquer transação comercial com empresas estrangeiras condenadas por trabalho escravo. O texto avança no Congresso Nacional, mas resta saber por que a mesma restrição não se aplica a empresas brasileiras.

“A única forma efetiva de enfrentar o trabalho escravo e o trabalho infantil é identificar a responsabilizar o dono do dinheiro”, enfatiza Marques Casara, jornalista com 20 anos de experiência em investigação de cadeia produtiva. 

Ele é um dos autores do livro “Investigação de cadeias produtivas: como responsabilizar empresas que se beneficiam de violações de direitos humanos”, ao lado de Daniel Giovanaz e Maria Helena de Pinho.

Responsabilizar “a ponta de cima da cadeia produtiva, muitas vezes, é difícil”, explica Casara, porque muitos fornecedores terceirizam o trabalho e ocultam essa informação. “As pequenas empresas envolvidas diretamente com a violência contra o trabalhador são culpadas, mas responsabilizá-las não resolve o problema”, diz.

Por isso, muitas vezes quem entra na lista suja é a empresa terceirizada, que contratou diretamente os trabalhadores, e não a beneficiária final da cadeia produtiva. 

Esse foi o caso das vinícolas na Serra Gaúcha que forneciam para Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi. Quem entrou para a lista suja foi a empresa prestadora de serviço Fênix Serviços de Apoio Administrativo.

Para o jornalista, é preciso investir na formação dos agentes públicos que atuam no combate ao trabalho escravo para conseguir responsabilizar o principal beneficiário da cadeia produtiva, já que ordenamento jurídico que permite a responsabilização de grandes empresas que existem casos de trabalho escravo entre seus fornecedores já existe.

O Ministério do Trabalho afirmou por e-mail que “sempre que se constata terceirização fraudulenta o tomador de serviços é autuado e responsabilizado administrativamente pela exploração de trabalho análogo ao de escravizado”. E deu como exemplo, o caso em que fazendeiros utilizam os chamados “gatos” – que nada mais são do que intermediários na contratação dos trabalhadores.

“Quando o auditor identifica a relação fraudulenta de trabalho entre o obreiro e o ‘gato’, ele fundamentadamente lavra auto de infração em desfavor do tomador dos serviços, por se tratar ele do verdadeiro empregador. Note-se que, em muitos desses casos, o verdadeiro empregador, por exemplo um fazendeiro com grande capacidade financeira, é uma pessoa física, e não jurídica”.

A justiça tarda e falha

Um levantamento feito pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais mostrou que, de cada 100 casos de trabalho escravo que chegaram à justiça no Brasil, só quatro são condenados definitivamente.

Na avaliação de Carlos Haddad, professor da instituição e juiz federal,  a concepção do que é trabalho escravo não é consenso entre os juízes. 

“Eles imaginam que o trabalho escravo é somente aquela situação em que as pessoas estão com restrição de liberdade. O Superior Tribunal de Justiça já disse que não é isso. Não é senzala, mas uma exploração laboral excessiva”, diz.

‘Vale mais a pena extraviar a bagagem no aeroporto, você vai conseguir uma indenização por dano moral maior’

O crime de trabalho escravo está previsto no art. 149 do Código Penal e define trabalho análogo ao escravo como aquele em que as pessoas são submetidas a jornadas exaustivas, a trabalhos forçados, condições degradantes e são impedidas de deixar o local de trabalho por conta de dívida contraída com empregador ou por ameaça e coerção.

O Brasil também é signatário do Estatuto de Roma, desde 2002. Com isso, o crime de trabalho escravo é considerado “crime contra a humanidade”. Além disso, o Ministério Público do Trabalho publicou nota técnica, em 2022, defendendo que o crime é imprescritível.

De 2008 a 2019, 2.679 réus foram denunciados pela prática de trabalho escravo no Brasil. Somente 112 foram condenados definitivamente.  A maioria dos réus foi absolvida em primeira instância,  e quase metade das absolvições se deu por falta de provas. 

O Intercept mostrou como o judiciário inocenta patrões acusados de trabalho escravo com a justificativa de “exagero” da fiscalização e até mesmo por se tratar de uma “realidade rústica”.

O trabalho escravo tem uma motivação econômica, segundo Haddad, “vale a pena escravizar pessoas porque o custo da mão de obra é mais barato”. Para o juiz, o poder público precisa cobrar do empregador mais do que as verbas trabalhistas. 

“Se tivesse que pagar dano moral alto, incorrer na lista suja e uma condenação na esfera criminal talvez começasse a desestimular o crime. Já vimos pagamento de dano moral individual de mil reais, 600 reais por trabalhador. Claro que tem casos de empregador pequeno. Mas nessa situação poderia implicar a ponta da cadeia produtiva que se beneficia desse trabalho”.

“Vale mais a pena extraviar a bagagem no aeroporto, você vai conseguir uma indenização por dano moral maior”, compara Haddad.

Atualização: 03 de julho, 20h50
Texto atualizado para incluir a resposta do Ministério do Trabalho e Emprego sobre o caso de Valney Sacramento da Silva Júnior.

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