Justiça obriga menina de 13 anos a manter gestação após estupro em Goiás

  • Neste momento, uma menina de 13 anos, grávida após um estupro, está sendo impedida pela justiça de Goiás de realizar um aborto legal e seguro. A demora já fez com que a menina cogitasse fazer o aborto por conta própria, colocando sua vida em risco. 
  • O suspeito é um homem de 24 anos que, segundo fontes, é conhecido do pai da menina, com quem ela vive. Foi o pai quem pediu na justiça que a interrupção fosse adiada para que o feto tivesse chance de sobreviver. 
  • O pai é apoiado por vários advogados, incluindo um ligado a um grupo antiaborto. Segundo fontes familiarizadas com o caso, um padre e uma freira da Igreja Católica estariam auxiliado o homem.
  • O caso mostra que, mesmo com a derrota do PL do Estupro, prevalece o direito do feto sobre o de uma menina estuprada – além de evidenciar a influência da direita religiosa sobre o judiciário.

A justiça de Goiás está impedindo que uma menina de 13 anos, grávida após um estupro, realize um aborto legal e seguro. A menina decidiu interromper a gestação quando estava com 18 semanas. Agora, depois de uma recusa do hospital e duas da justiça, caminha para a 28ª. A demora já fez com que ela cogitasse fazer o aborto por conta própria, colocando sua vida em risco. 

O processo corre em segredo de justiça, mas o Intercept Brasil teve acesso à decisão da desembargadora que impediu o aborto e outros documentos relacionados e ouviu pessoas familiarizadas com a situação. Nenhuma informação identificável será publicada para preservar a identidade da menina, que será chamada de “Júlia” nesta reportagem.

As evidências obtidas pelo Intercept mostram, mais uma vez, que apesar da legislação brasileira permitir o aborto em casos de estupro, prevaleceu na justiça a defesa da manutenção da gravidez e do parto antecipado para tentar, sem garantias, manter a vida do feto. Também mostram a influência de grupos religiosos antiaborto para dificultar o acesso a um direito garantido em lei. 

Em casos de estupro, segundo a lei, basta a palavra da mulher para que o serviço de saúde execute o aborto – e, no caso de incapazes, de autorização do responsável. Inicialmente, ao ser procurado, o Hospital Estadual da Mulher, o Hemu, de Goiânia, pediu autorização ao pai de Júlia, que tem a guarda da menina – a mãe mora em outro estado. O pai recusou. A equipe do hospital alegou que não se sentiu segura nem respaldada legalmente para o procedimento e, então, recorreu à justiça. 

Uma primeira decisão, quando a menina já tinha mais de 20 semanas, autorizou a interrupção, mas usando técnicas para preservar a vida do feto – na prática, uma tentativa de parto antecipado. A segunda decisão, do dia 27 de junho, suspendeu qualquer interrupção.

Foi o pai de Júlia, com quem ela vive, que procurou a justiça para obrigar a filha a seguir com a gestação, mostrou o jornal O Popular. Com ajuda de vários advogados, pelo menos um deles ligado a grupos pró-vida de Goiás, ele entrou com um pedido para que a menina segurasse a gravidez até a 30ª semana, quando o feto teria chances de sobreviver fora do útero. 

Fontes com acesso direto ao caso relatam que o pai estaria recebendo auxílio de uma freira e um padre da Igreja Católica. Os advogados do pai afirmaram ao Intercept que não se pronunciariam porque o caso está em sigilo. Já a Arquidiocese de Goiânia disse, por meio de sua assessoria, não ter conhecimento do caso, tampouco do envolvimento de algum dos padres ligados à Igreja Católica.

Em casos como esse, em que os interesses da adolescente e de seu responsável legal divergem, a menor é representada pelo Ministério Público, com participação do Conselho Tutelar e Defensoria Pública. Cabe à justiça decidir. As instituições foram procuradas pelo Intercept, mas não se pronunciaram.  

No Brasil, o aborto é permitido quando há risco de vida para a mãe, em caso de anencefalia do feto ou se a gravidez é resultante de violência sexual — como é qualquer caso em que a vítima tenha menos de 14 anos. O Ministério Público de Goiás havia ingressado com um pedido de alvará de interrupção de gravidez em junho. 

‘A juíza autorizou um parto de prematuro extremo com todo o risco de mortalidade, morbidade e sofrimento’.

No final do mês, a juíza Maria do Socorro de Sousa Afonso e Silva concedeu uma medida de emergência em que autorizou a interrupção, mas só se a equipe médica adotasse métodos para preservar a vida do feto. 

“Legalmente não existe prazo legal para interrupção da gestação oriunda de estupro”, reconheceu a juíza na sua decisão. Porém, Silva proibiu procedimentos abortivos como a assistolia – em que o feto é induzido ao óbito dentro do útero para evitar sofrimento –, recomendada pela Organização Mundial da Saúde em interrupções tardias. 

Ou seja, a menina teria que, na prática, ser submetida a uma tentativa de parto antecipado. “O nascituro encontra-se em avançado estágio temporal de vida intrauterina, com possibilidades de sobrevida”, escreveu, fazendo a ressalva de que a menina não precisaria cuidar ou ver o feto, caso sobrevivesse.

“Nesse caso, a juíza autorizou um parto de prematuro extremo com todo o risco de mortalidade, morbidade e sofrimento”, disse ao Intercept Jefferson Drezett, obstetra e professor da faculdade de saúde pública da USP, um dos autores da Norma Técnica de atenção humanizada ao abortamento do Ministério da Saúde. “Está completamente fora da razoabilidade a decisão de algo tão importante e grave fora das evidências normativas e científicas”, critica.  

A juíza concedeu uma tutela de urgência para a interrupção por reconhecer que “o perigo da demora” com o avançar da gestação, já que a menina poderia tomar medicação abortiva, sofria pressão do meio familiar e havia recomendações das equipes técnicas atuantes no processo. 

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Foi aí que o pai de Júlia entrou na justiça para adiar o procedimento, dificultando ainda mais o acesso ao aborto legal. Ele alegou que, com 25 semanas, o feto teria pouca chance de sobreviver e invocou o “direito à vida do nascituro”, pedindo que a menina aguardasse até 28 ou 30 semanas. Também relatou supostas pressões do Conselho Tutelar para que o procedimento fosse realizado.

O pai ainda questionou o próprio estupro – que, segundo ele, estava “pendente de apuração”. A lei brasileira, no entanto, considera estupro de vulnerável qualquer relação sexual com menores de 14 anos.  

A desembargadora Doraci Lamar Rosa da Silva Andrade, analisando o caso em segunda instância, aceitou o pedido do pai e proibiu a realização de qualquer procedimento até o julgamento definitivo.

Em sua decisão, a desembargadora ignorou o fato de a gravidez ter sido originada de um estupro e alegou que não havia nenhum laudo médico que comprovasse o risco à vida de Júlia. Disse, ainda, que a demora na decisão judicial era perigosa, pois a menina poderia realizar um aborto enquanto aguardava. 

“Não é verdade dizer que é mais arriscado fazer o aborto do que manter a gestação”, diz Drezett. “O aborto, sendo feito de maneira legal, com técnicas seguras, em qualquer momento da idade gestacional, tem menos risco de morte do que manter a gestação, passar pelo parto e puerpério”.

O Tribunal de Justiça de Goiás afirmou ao Intercept por meio da assessoria de imprensa que o processo tramita em segredo de justiça e que não comentaria as decisões de seus magistrados. “Eles têm autonomia para decidir de acordo com seu convencimento”, disse a assessoria do judiciário goiano. O Ministério Público também informou que não é possível repassar nenhum tipo de informação.

Pai e advogados brigaram para participar de consulta médica 

O suspeito de estupro é um homem de 24 anos que seria conhecido do pai da vítima, segundo relatos de pessoas familiarizadas com o caso. O Boletim de Ocorrência só foi feito pelo pai após intervenção externa. A Polícia Civil confirma que há uma investigação em curso. 

Segundo fontes familiarizadas com o caso, a própria Júlia é fruto de uma gravidez infantil. Quando nasceu, sua mãe tinha 12 anos de idade. Por isso, relatam, seu pai falou em mais de um momento que não vê a situação, que encarou como um “namoro”, como um problema. Júlia não frequentava a escola e não fez pré-natal. 

“O pai não tem condições de pagar advogado. E o advogado estava fazendo pressão”, disse uma das fontes familiarizadas com o caso.

Um dos advogados do pai, Apoena Nascimento Veloso, faz parte da Comissão de Defesa da Vida da Associação dos Juristas Católicos de Goiás. A comissão tem uma atuação agressiva anti aborto, com uma nota técnica que chama a expressão “aborto legal” de falácia, alegando que o aborto provocado “é sempre um crime”. O Intercept tentou falar com ele, que não nos respondeu.

A advogada Fernanda Kátia Cardoso Alexandre, que também faz a defesa do pai, disse que nem ela, “nem o pai, nem o Dr. Apoena” iam se manifestar, porque o caso está sob sigilo. Ela disse também que não faz parte da Associação dos Juristas Católicos de Goiás.

‘Quanto mais avançada a gestação, maior o risco para essa menina’.

Nesta terça-feira, 9, houve um tumulto com a presença da polícia na porta do Hospital da Mulher, onde Júlia passaria por uma consulta médica. Segundo entidades de defesa de direitos das mulheres, o pai esteve no hospital com os advogados porque queria participar da consulta com a menina. 

Ele e seus advogados, inclusive Apoena Nascimento Veloso, conseguiram acompanhar a consulta. Júlia não queria, segundo testemunhas.

O Hospital da Mulher disse ao Intercept que não se pronuncia sobre atendimentos de menores, principalmente quando envolvem processos em segredo de justiça.

“O aborto em casos como esse é uma luta contra o tempo. Quanto mais avançada a gestação, maior o risco para essa menina”, diz Mariana Prandini, professora adjunta da Universidade Federal de Goiás e co-fundadora do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular. 

“Não deveria haver uma disputa judicial em torno do direito ao aborto. E, se o caso chegou à justiça, seu papel deveria ser garantir esse direito de forma imediata, sem restrições”, diz.

O caso remete à discussão sobre o PL do Aborto, pautado para votação na Câmara dos Deputados em junho. O projeto, apoiado pela direita religiosa, tentou equiparar qualquer aborto após 22 semanas a um homicídio – mesmo em casos como esse, envolvendo violência contra crianças e adolescentes – mas perdeu força depois de uma forte reação. 

O Intercept Brasil já denunciou casos em Santa Catarina e Piauí em que os juízes obstruíram o direito ao aborto de meninas vítimas de estupro e tentaram induzi-las a manter os fetos.

Os abortos tardios são exceção – e costumam acontecer justamente no caso de meninas muito novas estupradas. “Quanto mais jovens as garotas são, é mais comum que tenham dificuldade de perceber a gestação. Quando existe crime sexual, isso piora”, explica Drezett, que também foi coordenador do serviço de Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo.

Justiça já havia obrigado outra menina de 11 anos a manter gestação de padrasto

Essa é ao menos a segunda vez que a juíza Maria do Socorro de Sousa Afonso e Silva, titular do 1º Juizado da Infância e da Juventude de Goiânia, se posicionou contrariamente ao aborto. Embora neste ano ela tenha autorizado a interrupção – com as ressalvas que dificultavam o procedimento –, em 2022, segundo o jornal O Popular noticiou, uma menina de 11 anos, da periferia do interior de Goiás, precisou levar adiante uma gestação fruto de um estupro. O suspeito era o padrasto, de 44 anos.

De acordo com a reportagem, o homem foi preso depois que a mãe da menina denunciou o caso à polícia. A criança estava com 22 semanas de gestação em 15 de março de 2022. Ela e a mãe assinaram o termo de consentimento para o aborto legal. 

O relatório do Hospital Estadual da Mulher, segundo a reportagem, dizia que a interrupção da gestação da menina se justificava “tanto por seu direito diante de uma gravidez decorrente de violência sexual, quanto pelo risco que a gravidez impõe à sua saúde”. 

Três dias depois, em 18 de março de 2022, a juíza Silva atendeu o pedido do pai biológico da menina vítima de estupro e expediu a decisão judicial determinando a suspensão da interrupção da gravidez, narra o jornal. Ainda segundo a reportagem, a menina também teria desistido do aborto depois que um padre lhe apresentou vídeos de como é feito o procedimento.

Gravidezes precoces aumentam risco de morte, anemia grave, pré-eclâmpsia, diabetes e problemas no parto.

Nos últimos 10 anos, em Goiás, houve quase 6 mil casos de nascimentos com mães entre 10 a 14 anos. O estado registra, em média, nove mulheres estupradas por dia, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É o 9º estado que mais registra estupros de vulneráveis no país. 

A gravidez nessa idade, além de ser fruto de crime sexual, já que menores de 14 anos são considerados vulneráveis pela justiça, também se enquadra em outra categoria de aborto legal no Brasil: risco de vida à mãe. 

Na puberdade, meninas não concluíram processos de maturidade cognitiva, psicossocial e biológica. Segundo estudo publicado na American Journal of Obstetrics and Gynaecology, meninas de 10 a 15 anos têm quatro vezes mais chances de sofrer morte materna do que entre mulheres mais velhas. 

A Organização Mundial da Saúde aponta que gravidezes precoces também aumentam risco de anemia grave, pré-eclâmpsia, diabetes e problemas no parto, além de complicações socioeconômicas.

Colaborou: Gabriela Sá Pessoa

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