Os kids pretos foram a origem do Bope e das megachacinas

RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL, 21.07.2022 - Moradores pedem paz durante protesto no Alemão. Homens do Bope e do Core fazem operação policial no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, nesta quinta-feira (21). (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress)
Bope e Core fazem operação policial no Complexo do Alemão, em 2022.
Fonte: Eduardo Anizelli/Folhapress

“Homens de preto, qual é sua missão? Entrar pela favela e deixar corpo no chão!”. O grito de guerra entoado nos treinamentos do Batalhão de Operações Especiais, o Bope, vinculado à Polícia Militar do Rio de Janeiro, se tornou célebre diante do sucesso do filme “Tropa de Elite”.

Outro cântico orgulhoso desses policiais diz que “o Bope tem guerreiros que matam guerrilheiros”. Este último é bastante sugestivo do tipo de preocupação que estava nas origens da criação do grupo. 

A história do Bope, bem como da força de elite da Polícia Civil do Rio de Janeiro, a Coordenadoria de Recursos Especiais, o Core, está diretamente ligada ao contexto da ditadura militar, quando “matar guerrilheiros” era a tarefa central das forças de segurança do Estado brasileiro. 

De forma mais específica, as origens do Bope e da Core remontam a um grupo de elite do Exército brasileiro conhecido como Forças Especiais. Os FE são aqueles militares designados pela expressão que hoje se tornou célebre em meios às investigações sobre a tentativa de golpe de Estado organizada por Jair Bolsonaro: kids pretos.

As revelações feitas no âmbito do inquérito instaurado para investigar a trama golpista têm trazido à tona importantes informações sobre a história e a lógica de atuação dos militares das Forças Especiais. Este capítulo da história, no entanto, que liga os kids pretos ao surgimento de forças policiais como o Bope e a Core, continua amplamente desconhecido. 

A origem dos kids pretos

“Exército prepara em segredo tropa de guerrilheiros”. Esta era a manchete de uma reportagem especial do jornal Tribuna da Imprensa de 22 de maio de 1961, que trazia uma descrição detalhada de como funcionava e quais eram as etapas do Curso de Operações Especiais, que desde 1957 vinha sendo oferecido anualmente pelo Exército.

Aqueles que se formavam no curso passavam a integrar uma seleta elite do Exército brasileiro, que opera sob o lema “qualquer missão, em qualquer lugar, de qualquer maneira e a qualquer hora”. 

Em meados dos anos 1960, com o Brasil já sob uma ditadura militar, o curso de operações especiais ganhou maior relevância na estrutura interna das Forças Armadas. Havia uma necessidade de aprofundar a repressão, especialmente diante do surgimento de focos de resistência armada ao regime autoritário. 

Em 12 de agosto de 1968, poucos meses antes da decretação do AI-5, o Ministério do Exército publicou uma portaria criando o curso de ações comandos, o Cac, e o curso de forças especiais, o CFEsp. Eles se tornaram, respectivamente, as duas primeiras fases do curso de operações especiais. Ao mesmo tempo, a primeira unidade de Operações Especiais do Exército foi criada: era o Destacamento de Forças Especiais, o DFEsp.

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Em 1969, dez indicados da Secretaria de Segurança Pública, a SSP, do estado da Guanabara submeteram-se aos treinamentos desse revigorado curso de operações especiais. Sob liderança do policial civil José Paulo Boneschi, eles obtiveram seus diplomas e retornaram ao estado, onde criaram o Grupo de Operações Policiais, o Goesp, vinculado à SSP. Foi a primeira força vinculada a uma polícia estadual criada a partir da mesma lógica e do mesmo treinamento dos kids pretos. 

Dentre os militares que fizeram o curso de operações especiais do Exército para formar a primeira configuração do Goesp estava o bombeiro Valter da Costa Jacarandá. Em 2013, em uma audiência pública da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro sobre o caso Mário Alves, Jacarandá admitiu a prática de tortura na sede do 1º Batalhão de Polícia do Exército, onde ficava o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, o Doi-Codi.

“Pau-de-arara é fato?”, questionou Wadih Damous, então presidente da comissão. “É fato”, atestou Jacarandá, diante das câmeras e de ex-presos políticos que o apontavam como torturador. No mesmo ano, o bombeiro foi denunciado pelo Ministério Público Federal, o MPF, pela participação na tortura, no assassinato e no desaparecimento forçado de Mário Alves. Na peça apresentada pelo MPF, outro agente era citado como tendo participado do crime: José Paulo Boneschi. Por já ter falecido, porém, ele não foi formalmente indiciado. 

Até hoje, não é exatamente clara qual era a relação entre o Goesp e o Doi-Codi, se eles atuavam juntos ou se aquele forneceu os quadros para este. Mas a presença de Jacarandá e Boneschi neste caso é reveladora de como os policiais formados pelos kids pretos continuaram atuando junto das Forças Armadas em sua patriótica missão de combater os subversivos. 

No entanto, ao lado da repressão aos opositores do regime, o Goesp, como força de elite da polícia, tinha também uma segunda tarefa central: o combate à chamada criminalidade comum. Ainda em novembro de 1969, logo após a criação do grupo, o jornal Diário da Noite noticiou: “Maior ofensiva carioca contra a criminalidade”.

A matéria dava conta da criação do grupo dos Dez Homens de Ouro, composto pelos “maiores caçadores de bandidos que a Polícia da Guanabara já reuniu em seus quadros”. Dentre eles, estavam nomes como Mariel Mariscott e José Guilherme Godinho, o Sivuca, que ficou famoso pelo bordão “bandido bom é bandido morto”.

Ainda segundo a reportagem, “os ‘Dez Homens de Ouro’ funcionarão em contato direto com o Grupo de Operações Especiais, também recém-criado (…) e agirão separadamente ou então todos juntos, de acordo com o vulto do trabalho a ser feito”.

Aquele parece ter sido um contexto de profícuas trocas de experiência. De um lado, policiais treinados no que havia de mais moderno em termos de combate à guerrilha, o curso de operações especiais do Exército. De outro lado, experientes policiais da Guanabara, acostumados à realidade das delegacias, onde há muitas décadas o pau-de-arara era também fato mais que consumado. 

O Goesp logo cresceu e se tornou Serviço de Operações Especiais, o Soesp. Em 1975, com a unificação dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, foi instituído o Departamento Geral de Investigações Especiais, a DGIE, no âmbito do qual foi criado o Serviço de Recursos Especiais, que herdou as atribuições do Soesp. Esse grupo, em seguida, seria transformado na Core.

Na segunda turma que fez o curso de operações especiais para integrar o Goesp estava Paulo César Amendola. O hoje coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro tornou-se chefe do grupo com a saída de Boneschi e ficou na função até janeiro de 1976.

Em 1978, Amendola apresentou ao então comandante da PMERJ, o coronel do Exército Mário José Sotero de Menezes, uma ideia que ele vinha formulando há tempos: criar um grupo de operações especiais no interior da PM. Com efeito, em janeiro daquele ano, foi instituído oficialmente o Núcleo de Companhia de Operações Especiais, o Nucoe. 

A primeira polêmica pública envolvendo o Nucoe teve a ver com seu símbolo, oficializado apenas em 1981. Tratava-se de um crânio atravessado por uma faca, tendo por trás duas armas cruzadas. Quando veio a público, a imagem provocou reações de setores da sociedade, que viam uma evidente semelhança com o símbolo por muito tempo utilizado pelo Esquadrão da Morte do Rio de Janeiro. 

Para se contrapor à acusação, a PM defendeu-se afirmando que a inspiração teria sido, na verdade, o emblema dos Comandos do Exército – ou seja, um dos símbolos dos kids pretos. As tentativas de proibir a utilização foram infrutíferas e, até hoje, o emblema serve para a força policial sucessora e herdeira do Nucoe: o Bope.

Operações Especiais e as megachacinas

Às vésperas de 7 de setembro de 2021, o país respirava aflito. Jair Bolsonaro mobilizava suas bases para grandes manifestações e uma preocupação era publicamente discutida na imprensa: o risco das forças policiais dos estados se sublevarem. A despeito das bravatas de Bolsonaro, o golpe não foi colocado em marcha naquele dia. 

A opinião pública respirou aliviada. As polícias não estavam politizadas e não representavam um risco para a democracia, comemoraram os analistas na grande mídia.

Poucos meses depois, em novembro daquele ano, o Bope promoveu uma chacina na Favela do Salgueiro, em São Gonçalo, que deixou nove mortos. Essa ação, contudo, já não chocou tanto quanto a ameaça de golpe. 

Afinal, para grande parte da sociedade – inclusive para muitos que se colocam no lugar de ardorosos defensores da democracia –, a chacina não era um sinal de que as forças policiais estavam politizadas ou tomadas pelo extremismo. 

Para esses setores, operações policiais em favelas, que deixam um rastro de jovens negros mortos pelo caminho, parecem fazer parte do que se entende como aceitável dentro da democracia brasileira. Essas mortes, aparentemente, não representam uma ameaça aos valores e aos ditames da Constituição de 1988.

É verdade que, perto da chacina protagonizada pela Core alguns meses antes, em maio, na Favela do Jacarezinho, os nove mortos poderiam até parecer pouco. Na ocasião, a tropa de elite da Polícia Civil havia deixado 28 vítimas. 

A normalização das megachacinas no Rio de Janeiro é tão impressionante que, se falamos da Chacina do Salgueiro, é preciso se perguntar: qual delas? Pois exatamente quatro anos antes desta de novembro de 2021, em novembro de 2017, uma grande operação já havia deixado oito mortos no local. Como revelado depois pelo jornalista Rafael Soares, a ação contou com a presença de 13 militares do Comando da Brigada das Forças Especiais do Exército. Eram os kids pretos.

Essas três megachacinas – uma protagonizada pelo Bope, outra pela Core, outra pelos FE – revelam como essas forças continuam marcadas pelo mesmo ideal que as constituiu originalmente. Ou seja, pelo imaginário, fortalecido na ditadura militar, segundo o qual sua tarefa é a de exterminar os inimigos da nação.

A Chacina do Jacarezinho foi uma resposta das forças policiais à decisão do Supremo Tribunal Federal em relação à chamada ADPF das Favelas, que buscava limitar as operações policiais em meio à pandemia. 

Isso ficou evidente na coletiva de imprensa dada após a ação, quando o representante da Polícia Civil criticou o “ativismo judicial” do STF. A expressão fazia eco com as críticas de Bolsonaro em relação às decisões do Supremo relativas às medidas negacionistas do governo federal diante da Covid-19, e seria amplamente utilizada para criticar a atuação de Alexandre de Moraes à frente do TSE, já em meio ao processo eleitoral de 2022.

A fala é reveladora de como, para as forças de segurança, está claro que sua tarefa de exterminar o inimigo da nação é composta por duas missões complementares e indissociáveis entre si.

De um lado, limpar o país da “subversão” política, mesmo que para isso seja necessária a abolição violenta do Estado de direito; de outro, garantir a limpeza social dos indesejáveis, ainda que por meio de megachacinas evidentemente ilegais. 

Ocorre que, enquanto os inimigos a serem combatidos foram jovens negros e moradores de favelas, o país seguiu convivendo tranquilamente com esses grupos. Agora, quando fica evidente que os kids pretos estavam no centro da tentativa de golpe de Estado, eles passam a ser uma ameaça à democracia. 

Seria o caso de levantar a questão, então, sobre o porquê as forças progressistas e os democratas são incapazes de assumir também como tarefas complementares a defesa do regime democrático e a luta pelo fim do genocídio negro mas favelas e periferias.

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