Sem dinheiro vivo, palestinos em Gaza fazem escambo para driblar a fome

Todas as manhãs, Abdullah al-Basoos, de 14 anos, deixa sua barraca esfarrapada em Deir al-Balah e vai à feira tentar encontrar comida para sua mãe e seus cinco irmãos. Como filho mais velho, é responsabilidade de al-Basoos garantir que todos tenham alguma coisa para comer. Seu pai, que ficou para trás quando o resto da família deixou a casa no bairro de al-Shujaiya, na Cidade de Gaza, no início do ataque genocida de Israel, foi morto em um ataque aéreo israelense. Al-Basoos agora passa boa parte do dia cuidando de uma barraca improvisada que vende itens básicos como açúcar, sal, e arroz, para tentar conseguir dinheiro e comprar comida para sua família. Mas com a disparada dos preços e a grave escassez de dinheiro em toda a Faixa de Gaza, ele agora se vê tendo que recorrer ao escambo, como muitos palestinos.

Na semana passada, ele não tinha como comprar um pequeno pedaço de queijo branco, que estava muito caro, 12 shekels (aproximadamente 20 reais). Ele acabou trocando um pouco de halva pelo queijo em uma barraca próxima. Ele já fez esse tipo de escambo muitas vezes antes, como trocar açúcar por óleo de cozinha — trocar um item essencial por outro numa tentativa desesperada de sobreviver.

“Eu preciso trocar meus bens para comer. Às vezes preciso abrir mão de necessidades básicas para conseguir comida. É uma questão de priorizar, quando todas as coisas são desesperadamente necessárias”, disse al-Basoos ao Drop Site News. “Eu trabalho o dia inteiro e só ganho cerca de 20-40 shekels por dia” — entre 33 e 66 reais. “Mas o que isso realmente compra para mim ou para a minha família? Não é suficiente de jeito nenhum, porque só compraria dois pepinos e dois tomates. Preciso de dois dias de trabalho para comprar um quilo de arroz.”

Em um relatório histórico publicado no mês passado, a Anistia Internacional concluiu que Israel está cometendo genocídio contra os palestinos em Gaza, e listou entre as causas as “restrições extremas e deliberadas” de Israel à ajuda humanitária, causando desnutrição e fome. Em novembro, o Tribunal Penal Internacional emitiu mandados de prisão contra o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e o ministro da Defesa, Yoav Gallant, por crimes de guerra, como causar fome a civis. Um painel com apoio da ONU emitiu recentemente um alerta de “probabilidade eminente e substancial de ocorrência de fome, diante da rápida deterioração da situação na Faixa de Gaza”. As padarias na região central de Gaza foram obrigada a fechar por falta de farinha e combustível, os saques e a extorsão se tornaram comuns, e o fornecimento comercial praticamente parou. No mês passado, a UNRWA anunciou que estava interrompendo as entregas de ajuda humanitária por Karam Abu Salem, a principal passagem de fronteira para mercadorias no sul, em razão da falta de segurança.

“Faz quase uma semana que não tenho farinha, nem pão. Faltam muitas necessidades básicas, incluindo comida, água, proteção, e muitas coisas. Falta tudo. Vivo numa barraca improvisada onde cai chuva em nós. Todos os dias eu tremo de medo e de frio. É a mesma coisa com todos os meus irmãos. Eu nunca tinha trabalhado na vida. Era um estudante feliz, mas agora sou obrigado a trabalhar. Só conseguimos uma refeição por dia, em algum dos centros de distribuição gratuita de alimentos nas proximidades. Mas essa opção nem sempre está garantida”, diz al-Basoos. “Nós mal comemos e precisamos economizar o que ganhamos para comprar as coisas mais básicas.”

Os preços dos alimentos dispararam. Um quilo de açúcar atualmente custa cerca de 80 reais, e um litro de óleo de cozinha custa aproximadamente 180 reais. Para que uma família compartilhe uma refeição de arroz e carne, o custo é superior a 1.200 reais, um valor inatingível.

‘Os comerciantes estão dispostos a aceitar qualquer coisa, simplesmente porque querem vender, e vice-versa, as pessoas querem comprar as mercadorias e não têm dinheiro’.

Para agravar a crise, há escassez de cédulas em Gaza, ou de qualquer acesso a dinheiro em espécie, principalmente shekels israelenses. Israel bombardeou e destruiu praticamente todos os bancos e caixas eletrônicos em Gaza, e bloqueou a importação de dinheiro, apesar da redução dos estoques. Bancos também foram atacados e saqueados, e a inflação está em níveis alarmantes.

“Começam a existir essas economias intermediárias, porque os comerciantes estão dispostos a aceitar qualquer coisa, simplesmente porque querem vender, e vice-versa, as pessoas querem comprar as mercadorias e não têm dinheiro”, diz Zayne Abudaqqa, pesquisador sênior do Instituto de Progresso Social e Econômico, com sede em Ramallah, na Cisjordânia. “Por isso, o escambo se tornou muito importante.”

Grupos de escambo estão sendo criados no Facebook e em outras redes sociais, onde os participantes combinam de se encontrar e trocar mercadorias.

À medida que a situação fiscal piora, cambistas e casas de câmbio estão cobrando comissões altas para disponibilizar numerário. Tareq Sabbah, coretor de câmbio em Deir al-Balah, diz que as comissões chegam a até 30% atualmente, em comparação com 15% alguns meses atrás. Alguns vendedores aceitam cartões de créditos, ou transferências bancárias ou por carteira digital no celular, mas essas transações digitais também cobram comissões altas que pioram os preços já inflacionados.

Além disso, a qualidade material das cédulas também afeta seu valor. Sem notas novas circulando na economia de Gaza, os shekels estão se desfazendo pelo uso. “O exército israelense não permite a entrada de dinheiro em Gaza. Portanto, são as mesmas cédulas e moedas que trocam de mão”, disse ao Drop Site um alto funcionário do Departamento de Defesa do Consumidor do Ministério Palestino de Economia Nacional, sob condição de anonimato por receio de represálias.

Cédulas rasgadas valem menos do que as novas, o que significa que uma nota rasgada de 20 shekels pode valer apenas 15 shekels no mercado. Até as moedas de metal estão ficando gastas e enferrujadas, e perdendo valor.

“Os ataques contra os bancos exacerbaram a situação em Gaza. Os bancos estão fechados devido ao medo de serem saqueados por gangues criminosas, atacados por forças israelenses, ou de entrarem em falência”, diz Sabbah. “Os três bancos em funcionamento em Deir al-Balah não conseguem atender às necessidades de aproximadamente um milhão de pessoas. Um grupo de comerciantes também controla boa parte do dinheiro em Gaza, e explora a situação e as necessidades das pessoas. Em razão disso, nós, como casas de câmbio, somos obrigados a comprar dinheiro a preços inflacionados e vender para as pessoas com as mesmas taxas. Nós realmente não lucramos.” Ele admitiu, no entanto, que alguns corretores se aproveitam da situação e dobram as comissões para ter o máximo de lucro possível.

As taxas ou comissões se baseiam na oferta e na demanda de dinheiro, segundo Abudaqqa. “As casas de câmbio não imprimem dinheiro, elas têm um valor limitado de numerário. Então depende de quanto dinheiro está sendo demandado delas em relação a quanto dinheiro novo elas conseguem obter”, diz Abudaqqa. “Mas as taxas variam o tempo todo, e com isso as pessoas podem ser enganadas.”

A crise econômica é agravada pelos comerciantes que acumulam dinheiro sempre que podem, segundo Sabbah, além de precisarem pagar propina ou taxas para as empresas que se coordenam com os militares israelenses para conseguir entrar com mercadorias em Gaza. “Aparentemente é uma campanha liderada pelo exército israelense e implementada por saqueadores e comerciantes trapaceiros”, disse Sabah ao Drop Site News.

“Tudo isso dificulta o acesso às necessidades básicas para milhares de pessoas que não podem arcar com o valor excessivo das comissões”, ele acrescentou. “Por isso, atualmente você pode ver que as pessoas tendem a usar o escambo, porque parece um problema sem solução. A única solução é reabrir as passagens, entrar com os produtos, e retomar as operações bancárias. O resultado disso é a entrada de dinheiro. Mas não vejo como isso seria viável sem o fim imediato da guerra.”

Nos últimos meses, a economia de escambo vem tomando conta de Gaza, à medida que a ajuda humanitária e as entregas de mercadorias foram sendo sufocadas e as cédulas ficaram escassas. Os produtos alimentícios são os mais frequentemente trocados, pois seus preços flutuam descontroladamente diante da restrição de oferta alimentar. Mas as pessoas também trocam roupas, utensílios domésticos, telefones e outros dispositivos eletrônicos — algumas vezes combinados com dinheiro — para obter suprimentos básicos.

Alla Al-Motawaq, um homem de 32 anos, pai de três filhos, que foi desalojado de sua casa em Jabaliya no começo da guerra, em 2023, tem uma barraca improvisada que vende produtos de higiene do lado de fora do Hospital dos Mártires Al-Aqsa em Deir al Balah.

‘Eu ganho entre 7 e 15 dólares (43 a 92 reais) por dia, mas isso não é suficiente para comprar um quilo de tomate, que custa mais de 15 dólares. Em razão disso, sempre dou macarrão para os meus filhos comerem, porque é relativamente barato.’

“As pessoas não têm dinheiro porque as comissões são insanas — ninguém está disposto a pagar quase metade do que ganha para conseguir dinheiro. É por isso que as pessoas preferem fazer trocas atualmente”, diz Motawaq. “Aqui na minha barraca improvisada, algumas pessoas trocam um pacote de lenços por uma barra de sabão, outras vendem os materiais de higiene que recebem nas caixas de ajuda humanitária, ou vendem seus próprios bens, para conseguir dinheiro e comprar alimentos para suas famílias, enquanto outras oferecem um produto de baixa qualidade para troca, e pagam o restante com dinheiro.”

Motawaq diz que não rejeita ninguém que chega para fazer trocas. “Eu entendo o que eles estão passando, porque sou um deles”, diz. “Eu ganho entre 7 e 15 dólares (43 a 92 reais) por dia, mas isso não é suficiente para comprar um quilo de tomate, que custa mais de 15 dólares. Em razão disso, sempre dou macarrão para os meus filhos comerem, porque é relativamente barato. Não há outras opções. Eles muitas vezes me pedem outras coisas, especialmente pão, mas me dói dizer que não posso comprar nada disso, e preciso racionar e usar apenas um pão por dia, se não menos.”

O departamento de defesa do consumidor do Ministério da Economial Nacional tem a função de proteger contra o abuso de preços e monitorar a qualidade de alimentos e produtos. “A situação econômica é totalmente catastrófica, porque Israel não permite a entrada de mercadorias, destruiu a infraestrutura econômica, e dizimou o setor agrícola em toda a faixa de Gaza”, disse o funcionário do ministério. “A ajuda humanitária é regularmente saqueada e depois vendida nos mercados. Enquanto isso, algumas organizações humanitárias atuam em estreita colaboração com os militares israelenses para conseguirem fazer a entrada das mercadorias com taxas absurdas para os comerciantes, que variam entre 20 mil e 100 mil dólares (120 mil e 600 mil reais) por carga. Essas organizações cobram altas comissões dos comerciantes, contribuindo para o superfaturamento das necessidades básicas.”

Ele acrescentou, ainda: “Fomos ameaçados e atacados por gangues criminosas aqui em Deir al-Balah, que nos mandaram parar de trabalhar (…) Normalmente estaríamos trabalhando com a proteção das forças de segurança locais, mas Israel já nos atacou muitas vezes no passado. Então não há como oferecer proteção ou organização no cenário da presença de gangues criminosas e forças de ocupação israelenses, embora a Autoridade Monetária Palestina venha fazendo pressão para reabrir as agências bancárias e melhorar a situação. Israel já negou isso e continua a bloquear a entrada de ajuda e a fechar as passagens.”

Sharif Abdel Kouddous contribuiu para esta matéria.

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