A demora letal do cessar-fogo em Gaza

Quando o presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou da Casa Branca o acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas, na quarta-feira, fez questão de repetir ao longo do discurso um detalhe importante: o acordo obtido era o mesmo que ele havia ajudado a colocar em discussão em maio. 

“Esse é o acordo de cessar-fogo que eu apresentei no primeiro semestre do ano passado”, disse Biden, acompanhado pela vice-presidente Kamala Harris e pelo secretário de Estado, Antony Blinken. “O caminho até este acordo não foi fácil — cheguei a esse ponto porque Israel colocou pressão sobre o Hamas, com o apoio dos Estados Unidos.”

Foi uma clara tentativa de Biden de reivindicar o mérito pelo acordo histórico moldado em Doha, no Catar — parte final do seu legado na saída da Casa Branca. E foi também uma aposta em tirar alguns holofotes do presidente eleito Donald Trump, que declarou que o acordo “só poderia ter acontecido” em razão de seu envolvimento. 

Mas especialistas e palestinos americanos que vêm há meses defendendo um cessar-fogo viram o discurso de Biden como uma confissão de que um acordo poderia e deveria ter acontecido muito antes, uma demora que resultou na morte de milhares de palestinos a mais, além de reféns israelenses. E agora, com a possibilidade de que o acordo entre em vigor no domingo, muitos se preocupam com as vidas que ainda podem ser perdidas até lá. 

“Ele é bem vindo, e claro, está muito, muito atrasado — isso poderia ter sido obtido seis, sete meses atrás”, diz Khaled Elgindy, professor ajunto da Universidade de Georgetown, que no passado ajudou a negociar acordos entre as lideranças palestinas e Israel. 

Há esperança de que o acordo possa trazer alívio para muitos palestinos que permanecem em Gaza, diz Yousef Munayyer, coordenador do Programa Palestina/Israel no Centro Árabe de Washington e ex-diretor-executivo da Campanha por Direitos Palestinos dos EUA. 

“Dezenas de milhares foram mortos na Faixa de Gaza, e muitos outros foram atingidos de formas que continuarão a ser sentidas pelo resto de suas vidas: doenças, ferimentos, perda de suas casas ou de familiares”, diz Munayyer. “Fico grato porque finalmente chegou, mas de forma alguma deveria ter demorado tanto — era absolutamente possível muito antes disso.” 

O acordo de cessar-fogo em três etapas promete o fim dos combates, a retirada de Israel de Gaza, e a libertação de todos os reféns israelenses que ainda permanecem — os vivos, e os restos mortais dos que faleceram — além da libertação de centenas de palestinos detidos por Israel. É um acordo quase idêntico ao que foi anunciado por Biden em maio, redigido pelo Egito e pelo Catar, que vinham organizando as negociações com o Hamas. O Hamas havia aceitado o acordo, que também obteve o apoio do Conselho de Segurança da ONU.

Mas em junho as negociações começaram a estremecer quando o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu insistiu que não haveria acordo até a total destruição do Hamas. Integrantes de seu gabinete descreveram a proposta como “uma vitória do terrorismo”. Netanyahu comprometeu ainda mais a possibilidade de acordo no final de julho, quando apresentou novas condições, como a autorização para militares israelenses revistarem todos os palestinos deslocados que retornassem ao norte de Gaza, e a recusa a se retirar do corredor Philadelphi, fronteira de Gaza com o Egito, o que tanto o Hamas quanto o Egito rejeitaram. 

No período desde que as negociações fracassaram, no final de julho, o número total de palestinos mortos em Gaza subiu de pelo menos 39 mil para 46.707, entre os quais mais de 18 mil crianças, um total que provavelmente está subestimado. 

“Por que demoraram oito meses depois disso para realmente chegar a um acordo? A razão é que, do lado israelense, ainda não estavam preparados para aceitar essa realidade, e queriam continuar a causar mais destruição”, diz Munayyer. “E os estadunidenses não estava dispostos a pressioná-los como necessário.”

Antes das eleições de novembro nos EUA, defensores da Palestina, inclusive o movimento “Uncomitted”, haviam pressionado o governo Biden, e a subsequente campanha de Harris, a se comprometer com um embargo de armas como forma de acabar com a matança em Gaza. Ambos rejeitaram as tentativas e dobraram a aposta para armar Israel, uma concessão ao lobby pró-Israel, que tem influência considerável dentro do partido. Netanyahu, por sua vez, viu no momento político frágil entre os democratas, em ano eleitoral, uma oportunidade para continuar a agir com impunidade, segundo Munayyer.

“Netanyahu compreendeu que havia um limite para o quanto Biden estava disposto a efetivamente pressionar os israelenses durante um ano eleitoral, e compreendeu que isso lhe dava tempo e espaço para fazer o que quisesse”, ele explica.

Munayyer manifestou preocupação com a possibilidade de que, entre a quarta-feira e o domingo, Israel continue sua campanha em Gaza. Antes do acordo, os militares israelenses haviam intensificado os bombardeios, matando pelo menos 40 pessoas na terça e na quarta-feira imediatamente anteriores, incluindo duas mulheres e quatro crianças. E logo após o anúncio do cessar-fogo, autoridades de Gaza informaram que outro ataque israelense na quarta-feira havia matado 12 pessoas em uma área residencial no norte de Gaza.

Munayyer explica que Israel tem um padrão de bombardeios de última hora para esvaziar seus estoques, antes da chegada de grandes pacotes de ajuda militar dos EUA. Nesse caso, em que Israel não atingiu seu objetivo militar de obliterar completamente o Hamas, “pode haver um desejo de causar grandes danos enquanto podem, antes do cessar-fogo, em reação a essa decepção”, diz. 

Depois que um acordo de paz entre Israel e o Hezbollah foi obtido em novembro, Israel continuou a bombardear o sul do Líbano, matando civis. E ao final de sua guerra contra o Líbano em 2006, Israel lançou sobre o sul do país a grande maioria dos seus 4 milhões de bombas de fragmentação, que são consideradas ilegais pelas convenções de guerra, nos últimos três dias do conflito, segundo a ONU, as organizações de direitos humanos, e os pesquisadores. 

‘A história está repleta de acordos que nunca foram implementados.’

Caso o acordo entre em vigor no domingo, como planejado, Elgindy teme que os combates possam ser retomados. Ele lembra acordos anteriores negociados entre Israel e as autoridades palestinas, que se esperava que proporcionassem uma paz duradoura entre os países, como a terceira fase dos Acordos de Oslo, que deveria ter acontecido em 1998; o Memorando de Wye River; o Mapa da Paz na Palestina, em 2003; o Acordo sobre Movimento e Acesso, de 2005, ou, no mesmo ano, a “retirada” de Israel da Faixa de Gaza. Nenhum dos acordos se concretizou como pretendido.

“Há muitas falhas da diplomacia dos EUA no cenário de Israel e Palestina, mas um dos maiores é sempre a implementação — a história está repleta de acordos que nunca foram implementados”, diz Elgindy. “Especialmente considerando que Netanyahu ainda diz tempestuosamente que ‘vamos continuar a lutar até destruirmos o Hamas’. Isso não é animador, e Biden não se contrapôs a isso, nem parece que Trump o fará.”

Por ora, os palestinos em Gaza receberam a notícia como um respiro muito necessário, e milhares de pessoas saíram às ruas para comemorar. Para muitos ainda faltam cuidados de saúde e necessidades básicas, uma vez que os bloqueios de Israel dificultaram a chegada de ajuda humanitária em Gaza. 

Reem Abuelhaj, organizadora do No Ceasefire No Vote PA (Sem Cessar-fogo, Sem Voto) na Pensilvânia, um grupo que pressionou as campanhas de Biden e Harris por um embargo de armas, descreveu o acordo de cessar-fogo como “o começo”. Ela diz que espera ver progresso, como a completa retirada dos militares israelenses de Gaza, o pleno acesso humanitário a Gaza, o pleno acesso de jornalistas, um processo de reconstrução liderado pelos palestinos, e a longo prazo, para além do acordo, o fim da ocupação israelense na Cisjordânia. Ela encorajou os americanos a continuarem pressionando o governo dos EUA, para assegurar que o acordo seja plenamente implementado. 

Abuelhaj, que é palestino-americana, conta que ela, seus amigos e familiares vêm reagindo à notícia do cessar-fogo com uma sensação de “indiferença”. 

“É difícil descrever o sentimento”, diz. “Junto com o sentimento de alívio provisório, há uma sensação de medo pelo que pode vir, e claro, a dor contínua e avassaladora que esse genocídiou vem causando.”

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