Morte de refugiado venezuelano reflete descaso e xenofobia com povo Warao no Pará

O caixão com o corpo de Basílio Cardona chega, e os gritos dos familiares se intensificam. Até que o corpo seja preparado pelos legistas, eles não podem entrar na sala onde o indígena do povo Warao será velado, em um galpão em Belém, no Pará. É necessário vesti-lo e aplicar formol com seringas. O procedimento, acompanhado pelos parentes que assistiam à cena do lado de fora, é brutal para os indígenas. Se a cerimônia pudesse acontecer de acordo com suas tradições, haveria cânticos e rituais para conectar os indígenas ao espírito de Basílio.  

Quando os indígenas finalmente são liberados para entrar, eles retiram o caixão do suporte, o colocam no chão e se sentam ao redor dele. Crianças se aproximam e choram. Com celulares, muitos fazem chamadas de vídeo para que parentes distantes possam se despedir. Todas as roupas de Basílio são colocadas no caixão para acompanhar seu espírito, uma tradição dos Warao.

Em meio à dor, seu filho coloca uma camisa da seleção brasileira sobre o pai, relembrando o amor que ele tinha pelo país que adotou como seu após fugir da Venezuela. Diante da crise humanitária do país, os Warao começaram a vir para o Brasil em 2016 e, hoje, integram o conjunto de povos indígenas brasileiros, muitos com status de migrantes e refugiados.

Familiares e amigos de Basílio Cardona fazem videochamadas para que os parentes que vivem longe pudessem se despedir
Familiares e amigos de Basílio Cardona fazem videochamadas para que os parentes que vivem longe pudessem se despedir. Foto: João Paulo Guimarães/Intercept

Avilio Cardona Alvarez, de 30 anos, conta que seu primo Basílio morreu no dia 16 de novembro de 2024 e é mais um vítima do descaso e da xenofobia que afeta – e mata – os Warao que vivem no Pará. Segundo ele, não há atendimento adequado e muito menos intérpretes para uma comunicação clara durante as consultas médicas. “O doutor não queria atender o Basílio porque ele era indígena. Falou que ele tinha tuberculose, mas não nos explicou direito. Ele faleceu às 8 horas da manhã, mas só fomos informados pela assistente social às 22h. É muito triste, porque ele veio buscar uma vida melhor e acabou perdendo a vida.”

Questionada, a Secretaria de Saúde do Pará informou que Basílio “deu entrada no Hospital Regional Dr. Abelardo Santos em estado gravíssimo para tratar tuberculose” e que “o paciente recebeu acompanhamento médico especializado, mas não resistiu”. Segundo o atestado de óbito, o indígena morreu por “tuberculose das vias respiratórias sem confirmação bacteriológica ou histológica” e “pneumonia causada por microorganismo não especificado”. 

Doenças respiratórias agravam situação precária

“Nós somos seres humanos e não queremos mais morrer”, diz Avilio. Ele afirma que dentro da comunidade – que têm cerca de 700 imigrantes Warao – oito indígenas morreram de pneumonia e tuberculose apenas em 2024. O número, porém, pode ser ainda mais alto. Um servidor público ligado à prefeitura, que pediu para não ser identificado, afirmou que, apenas entre maio de 2023 a novembro de 2024, 13 indígenas Warao morreram em Belém por causa das duas doenças respiratórias. 

No entanto, segundo a Secretaria Municipal de Saúde de Belém, em 2023 houve apenas um caso confirmado de tuberculose entre os Warao e nenhuma morte. Já em 2024, o órgão informou ter havido três casos confirmados e uma morte. O órgão municipal não explicou por que seus números são bem mais baixos do que os fornecidos por Avilio e pelo funcionário da prefeitura.  

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A pneumonia é uma das principais doenças que afetam a população indígena em contexto de refúgio e migração no país, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, a Acnur. Os Warao chegam ao Brasil, ainda segundo a agência da ONU, com a saúde já debilitada por anos de desnutrição, sem acesso a cuidados médicos e condições de vida precárias na Venezuela. As doenças respiratórias, como tuberculose, já eram prevalentes em suas comunidades de origem.

Também há a questão dos abrigos e ocupações urbanas, espaços que frequentemente são superlotados, com ventilação inadequada, mofo e umidade – fatores que aumentam o risco de infecções respiratórias. Os Warao também enfrentam problemas no acesso a serviços de saúde devido a barreiras linguísticas, discriminação e falta de adaptações culturais nos sistemas de saúde brasileiros.

Com a condição de refugiados, eles têm o direito de acessar normalmente os serviços de saúde pública, em hospitais ou postos de saúde, assim como qualquer brasileiro.

Avilio Cardona Alvarez, primo de Basílio Cardona
Avilio Cardona Alvarez, primo de Basílio Cardona. João Paulo Guimarães/Intercept Brasil

No entanto, as dificuldades enfrentadas pelos Warao persistem até mesmo na hora de se despedir dos familiares mortos. Avilio diz que sempre há empecilhos para liberar os corpos e organizar rituais fúnebres de acordo com a cultura Warao. “Quando um indígena falece aqui, é muito difícil. Não temos lugar para velar, ninguém atende as ligações nas instituições e, para liberar o corpo, demora horas. Graças a Deus, a dona da quitinete ajudou no velório”, diz, em referência à proprietária do imóvel onde vivem familiares do indígena, que emprestou um galpão para que o velório fosse realizado.

Em ofício solicitando um funeral digno para Basílio, o Ministério Público Federal ressalta que, “de acordo com a legislação brasileira, os indígenas Warao, como refugiados ou migrantes, têm direito aos mesmos programas e benefícios sociais que os brasileiros, incluindo o auxílio funeral”.

A solicitação do MPF é direcionada à Fundação Papa João XXIII, a Funpapa, órgão municipal responsável pela gestão da política de assistência social de Belém. À reportagem, a Funpapa afirmou que atua nos encaminhamentos e execução de funeral e sepultamento dos cidadãos, dentre eles os indígenas Warao, viabilizando com celeridade todo o trâmite burocrático” e que “em 2024 foram realizados 11 funerais de pessoas dessa população.”

Preconceito e jogo de empurra restringem direitos

Fred Cardona Warao, irmão de Basílio, conta que os problemas enfrentados por sua comunidade vão além da área da saúde, atingindo também questões de moradia, segurança e educação. “Aqui tem uma crise de atendimento sobre emprego, saúde, de assistente social também. Muita coisa, meu amigo.” Ele denuncia episódios de discriminação e violência que afetam sua família e outros indígenas da região. “Na comunidade aqui, nós estamos ameaçados por racismo, há ameaças de morte, isso está acontecendo”, afirma Fred, que prefere não entrar em detalhe sobre as ameaças, por questões de segurança. 

Como refugiados, os Warao têm direito aos mesmos serviços públicos aos quais os brasileiros têm, como saúde, educação, assistência social, acesso ao Judiciário e à Defensoria Pública, bem como poder tirar carteira de trabalho e trabalhar livremente. Mas o acesso dos indígenas ao que têm direito por lei esbarra no jogo de empurra entre as autoridades competentes. Segundo o MPF, as responsabilidades em relação aos Warao são compartilhadas entre União, estado e município, bem como pela Funpapa.  

Em julho de 2024, o Ministério Público Federal cobrou a prefeitura por melhorias tanto nos fluxos de atendimento dos indígenas quanto no Espaço de Acolhimento Institucional, no bairro do Tapanã, que encontrava-se em condições degradantes e cuja responsabilidade era da Funpapa. Quatro meses antes, em março, o órgão solicitou o cumprimento do acordo judicial que determinava que a União, o estado do Pará, o município de Belém e a Funpapa disponibilizassem, de imediato, abrigo emergencial, provisório e adequado aos indígenas Warao.

Além dos abrigos mantidos pela prefeitura de Belém, os Warao também vivem em casas precárias, como as da Comunidade Ajanoko, no bairro de Outeiro
Em Belém, os Warao vivem em casas precárias, como as da Comunidade Ajanoko, no bairro de Outeiro. Foto: João Paulo Guimarães/Intercept Brasil.

Após o questionamento do MPF, a fundação respondeu que promoveu diálogos com um novo grupo Warao e que algumas famílias demonstraram o desejo de ir para o espaço de acolhimento institucional. As lideranças da etnia em Belém, no entanto, relataram não terem sido informadas da existência desses diálogos. O MPF reiterou, então, a necessidade de que a Funpapa se comunique melhor com os Warao.

Luta por sustento e dignidade

Os Warao começaram a procurar refúgio no Brasil a partir de 2016, por conta da crise humanitária na Venezuela, que sofre um embargo econômico por meio de sanções dos EUA. A fome, a violência e a falta de assistência em seu país de origem forçaram mais de  8 mil indígenas Warao a deixarem seus territórios, no delta do Rio Orinoco, e atravessarem a fronteira do Brasil por Pacaraima, em Roraima – desses, cerca de 3 mil vivem no Pará, segundo a Acnur. Hoje, os Warao que vivem em Belém estão em aldeamentos em bairros como o de Outeiro, Tapanã e Cidade Velha, em busca de refúgio e oportunidades para reconstruírem suas vidas.  

É o caso de Johnny Riva, de 42 anos, que veio de Tucupita, no norte da Venezuela. Depois de muitos anos em Belém, ele finalmente conseguiu um emprego em uma empresa de coleta de resíduos sólidos que atua em uma parceria público-privada. “Há um ano, era muito difícil conseguir trabalho. A gente entregava currículo e nunca era chamado. Agora, a situação mudou e hoje estou trabalhando como coletor de lixo”, conta Johnny, que atua no turno da noite.

“No começo, eu não falava português e era muito difícil. A nossa língua é o Warao, e isso complicou a comunicação com os colegas. Mas sempre tive interesse em aprender e hoje consigo me virar”, explica. Apesar da conquista, a jornada não é fácil. Johnny relata as dificuldades do trabalho pesado e do longo expediente: “O serviço é bem forte. Começamos às sete da noite e, às vezes, só terminamos às sete da manhã. Não temos folga no sábado, apenas no domingo. É cansativo, mas é bom porque a gente consegue sustentar a família”. 

Para Mariluz Mariano, indígena Warao e coordenadora do Conselho Ojiduna, o artesanato é uma fonte de renda e  um símbolo de resistência
Para Mariluz Mariano, indígena Warao e coordenadora do Conselho Ojiduna, o artesanato é fonte de renda e símbolo de resistência. Foto: João Paulo Guimarães/Intercept Brasil.

Para resistir e enfrentar os desafios na busca por sustento, reconhecimento e dignidade no Brasil, os indígenas criaram o Conselho Warao Ojiduna. Ele , composto por jovens, crianças e adultos que vivem em Belém e em outras cidades paraenses, como Ananindeua, Benevides e Abaetetuba.

A organização busca fortalecer a identidade cultural e defender os direitos da etnia a partir de ferramentas como o Plano de Ação, documento que engloba a visão de futuro dos Warao e pretende servir como modelo de resistência e organização para outras populações indígenas em situação de refúgio. Eles também desenvolveram o Protocolo de Consulta Prévia do Povo Warao em Belém, que estabelece diretrizes para que eles sejam consultados seguindo a Convenção 169 da OIT e outras legislações nacionais e internacionais.

O Conselho Ojiduna também atua para promover alternativas econômicas para os Warao, como o artesanato, especialmente cestos, colares e outros objetos feitos com fibras de buriti e miçangas. Para Mariluz Mariano, coordenadora da organização, o artesanato é uma das principais fontes de renda para o grupo e também um símbolo de resistência. 

No entanto, o mercado restrito e a falta de apoio governamental limitam a atividade. “Nós sabemos trabalhar e gostamos de trabalhar para sustentar nossas famílias. Mesmo com todas as dificuldades e tendo pessoas que compram nossos artesanatos, não dá pra nos sustentar”, afirma Mariluz. “Por mês, consigo cerca de R$ 700, mas isso mal dá para cobrir os custos com materiais e envio.”

Mariluz também explica que, sem alternativas, alguns indígenas precisaram recorrer à mendicância nas ruas de Belém e que isso fez com que a comunidade enfrentasse ainda mais preconceito. Mas ela ressalta que, embora tenha sido uma forma inicial de sobrevivência, essa prática não reflete a cultura dos Warao. “Hoje, trabalhamos com dignidade, fazendo artesanato para sustentar nossas famílias. Queremos que as pessoas conheçam nossa luta e busquem entender o que é ser um imigrante refugiado indígena”, diz. 

Esta reportagem foi produzida com o apoio das Bolsas ColaborAcción para pesquisa jornalística, Edição Habitat, concedidas pela Fundação Gabo com o apoio da Fundação Avina e Habitat para a Humanidade.

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