Golpistas não são coitadinhos nem merecem anistia

Parlamentares do PL levaram a mulher e um dos filhos de um dos golpistas do 8 de janeiro a Brasília, nesta semana, em uma tentativa de pressionar os presidentes da Câmara e do Senado e criar comoção pública. Ezequiel Ferreira Luís teve a prisão decretada pelos crimes de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado, associação criminosa armada e deterioração de patrimônio público. 

Dono de uma pistola e um rifle semiautomático, ele quebrou a tornozeleira eletrônica e fugiu depois que soube que pegaria 14 anos de cadeia. Esse é o anjo que o bolsonarismo alçou à condição de símbolo da luta pela anistia. A turma que fez carreira na política louvando o assassinato de bandidos, vejam só, agora pretende humanizá-los.

Antes de ser levada para encontrar o novo presidente da Câmara, Hugo Motta, do Republicanos da Paraíba, a bancada bolsonarista armou um show de demagogia e hipocrisia no Salão Verde. A esposa de Ezequiel deu uma entrevista coletiva para contar as dificuldades que a condenação do marido acarretou à família. De joelhos, ela pediu “misericórdia” ao presidente da Câmara para agilizar a tramitação do PL da Anistia. 

Com seis filhos para criar, o caminhoneiro é visto entre os bolsonaristas como alguém cuja história pode deflagrar uma comoção social pela anistia. Em setembro do ano passado, o líder maior da gangue golpista, Jair Bolsonaro, apareceu ao lado das seis crianças e os chamou de “órfãos de pai vivo”. 

Manifestante picha a estátua da Justiça, na praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro de 2023 (Foto: Gabriela Biló/Folhapress)
Manifestante picha a estátua da Justiça, na praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro de 2023 (Foto: Gabriela Biló/Folhapress)

Ninguém duvida do sofrimento da mulher e dos filhos de Ezequiel. Mas ele só é um criminoso especial para quem despreza os valores democráticos. A população carcerária brasileira — a terceira maior do mundo — conta com mais de 800 mil pessoas. 

Assim como a família de Ezequiel, há centenas de milhares de outras sofrendo com a prisão de seus parentes. Nunca se viu bolsonaristas preocupados com o bem estar dessas famílias. Pelo contrário, o ataque aos direitos humanos de presos é um dos pilares do pensamento reacionário. Lembra dos “direitos humanos para humanos direitos”? Pois é, parece que os bandidos de estimação do bolsonarismo entraram na cota dos “humanos direitos”. 

A grande maioria dos presos no Brasil foi condenada por tráfico de drogas e crimes contra o patrimônio — crimes que despertam os instintos mais primitivos no bolsonarista médio. O fato é que vender 10 gramas de maconha ou roubar um frango no supermercado são crimes infinitamente menos graves que a tentativa de anular o resultado das eleições e destituir o presidente eleito por meios violentos. Perante à democracia, Ezequiel é um criminoso de alta periculosidade e deve ser tratado como tal.

Claro que é triste saber que seis crianças podem ficar até 14 anos privadas do convívio com o pai, mas essas são as regras do jogo. Ezequiel largou a família em Ji-Paraná, Rondônia, rodou mais de 2 mil quilômetros para se juntar ao acampamento golpista em Brasília e partir para os ataques do 8 de janeiro. Ele está arcando com as consequências dos seus próprios atos. 

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É preciso desmistificar a narrativa bolsonarista de que os golpistas do 8 de janeiro são pais, mães, vovós e vovôs que cometeram meros atos de vandalismo em um dia de fúria, movidos pelo desejo de ver o bem do Brasil. A tese dos “coitadinhos” não é nova, mas vem ganhando adeptos até mesmo fora do círculo bolsonarista. Não é raro ver articulistas ressabiados com alguma vovózinha golpista recebendo penas de 14 anos. 

O novo presidente da Câmara mal estreou no cargo e já abraçou a tese com força. “Golpe tem que ter um líder, uma pessoa estimulando, tem que ter apoio de outras instituições interessadas, e não teve isso. Ali foram vândalos, baderneiros, que queriam, com inconformidade com o resultado das eleições, demonstrar sua revolta”, afirmou Hugo Motta após a reunião com bolsonaristas e a esposa de Ezequiel.

Ou seja, o presidente de uma das casas legislativas que foi invadida e destruída está dizendo abertamente que não houve tentativa de golpe e que o 8 de janeiro foi apenas um domingo no parque da família brasileira que saiu do controle. 

Não se esperava nada diferente de Motta. Estamos falando de um político do Republicanos que se elegeu presidente da Câmara com o apoio de um bloco formado por partidos governistas e oposicionistas. No acordo costurado com os bolsonaristas, Motta prometeu trabalhar pela anistia aos condenados de 8 de janeiro. O estarrecedor é saber que há ministro do governo Lula que defende a mesma ideia. 

Em entrevista ao Roda Viva, o ministro da Defesa, José Múcio, abraçou a tese dos “coitadinhos”: “O que eu defendo é uma dosimetria. Eu acho que na hora que você solta um inocente ou uma pessoa que não teve um envolvimento muito grande é uma forma de você pacificar. Esse país precisa ser pacificado. Ninguém aguenta mais esse radicalismo. A gente vive atrás de culpados”, disse ele. 

Anistiar crimes contra o Estado Democrático de Direito é inequivocamente inconstitucional.

Perceba que o ministro chama de “radicalismo” as punições previstas em lei para os radicais que pretendem subverter a democracia. Por mais que estejamos acostumados a ver Múcio passando o pano para o golpismo das Forças Armadas, surpreende vê-lo querendo livrar da prisão os bolsonaristas que saíram das suas casas para destruir os prédios dos Três Poderes e pedir golpe militar.

Apesar de toda essa pressão, o máximo que pode acontecer será a aprovação do PL da Anistia no Congresso. Anistiar crimes contra o Estado Democrático de Direito é inequivocamente inconstitucional. E, dadas as condições materiais e a configuração do jogo atual, não há a menor possibilidade de o STF não derrubar o PL. 

Os bolsonaristas têm plena ciência de que estão encampando um projeto natimorto, mas permanecerão firmes no jogo de cena até o fim. O objetivo é pautar o debate público, manter a chama da militância acesa, colocar seus quadros políticos sob os holofotes e, na melhor das hipóteses, criar um clima menos desfavorável para os líderes do golpe nos tribunais. 

Os golpistas de hoje são os filhos da anistia de 1979. Ou condenamos exemplarmente quem ameaça extinguir a democracia ou estaremos fadados a viver à mercê de futuros golpistas. E não basta prender Ezequiel e outros peixes pequenos. Infelizmente, mais famílias precisarão chorar. Jair Bolsonaro e toda a cúpula militar golpista precisam ficar presos por muitos e muitos anos. Que o país aprenda com as lições do passado. 

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