Brasil já esqueceu a pandemia, mas precisa lembrar para sempre o negacionismo e a omissão de Bolsonaro

Em uma quarta-feira que parecia mais um dia de uma semana normal, a Organização Mundial da Saúde, OMS, caracterizou a emergência de covid-19 como pandemia. O Brasil, que já tinha mais de 50 casos confirmados, iniciava ali não apenas uma crise sanitária sem precedentes como também uma guerra entre a ciência e o obscurantismo. 

O dia 11 de março de 2020 ficou registrado como o último antes de uma crise civilizatória, marcada por um embate entre a dureza da realidade e o encanto gerado pela fantasia de que a situação nem era tão grave assim. Mas a realidade se impôs no dia seguinte. Em 12 de março, morreu no Brasil a primeira vítima da covid-19. Desde então, o país nunca mais foi o mesmo. Com a adoção de uma política anticiência, a pandemia se tornou um pretexto para estabelecer poder por meio da morte.

Cinco anos se passaram, e a pandemia caiu no esquecimento. O trauma que vivemos como sociedade impactou não apenas nossa forma de viver coletivamente, já que nos tornamos mais individualistas. A pandemia também afetou nossa memória. Afetou a memória de pessoas infectadas, porque a covid-19 pode provocar danos de longo prazo que incluem prejuízos na memória. Mas a memória coletiva também foi afetada. Aquela memória que estimula a luta por justiça. 

Deletamos a pandemia. É claro que eventos traumáticos podem ser deletados, como uma adaptação em resposta ao estresse ou trauma. Mas será que foi isso que nos deixou menos sensíveis à tragédia? Ou será que há um pacto para nos convencer de que devemos esquecer o que vivemos?

Jair Bolsonaro, há exatos cinco anos, fala durante coletiva de imprensa sobre as medidas de seu governo na pandemia (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)
Jair Bolsonaro, há exatos cinco anos, fala durante coletiva de imprensa sobre as medidas de seu governo na pandemia (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)

Esquecer significa ignorar o horror da covid-19 no Brasil e banalizar a catástrofe que tem, sim, responsáveis. Foram tantas omissões e conivências que é impossível acreditar que não havia intencionalidade. A pandemia no Brasil foi marcada pelo negacionismo como política. 

Teorias e tratamentos sem embasamento científico foram adotados como estratégias para o enfrentamento da crise sanitária. A “imunidade de rebanho”, conceito normalmente utilizado para explicar a imunidade coletiva frente à vacinação populacional, foi instrumentalizada para promover a disseminação do SARS-CoV-2 (vírus causador da covid-19), sob o argumento de que estimularia a imunidade coletiva para acabar com a pandemia. 

Em meio ao aumento no número de casos, internações e óbitos pela doença, que tipo de pessoa seria capaz de promover a disseminação do vírus? Algo que implicaria em aumento de mortalidade não só por covid-19. Afinal, com o aumento no número de casos, o sistema de saúde entra em colapso e consequentemente, até pessoas doentes por outras causas não têm hospitais e profissionais disponíveis para o cuidado. 

A imunização por contágio não tem respaldo científico, é antiética, ainda mais no contexto de uma crise sanitária. Porém, essa foi uma das bases da política de Jair Bolsonaro na gestão da pandemia.

A política anticiência deste governo promoveu também o “tratamento precoce”. Entre os medicamentos, que não têm comprovação de eficácia na covid-19, estavam as famosas hidroxicloroquina e ivermectina. Desde 2020, o tratamento é criticado pela comunidade científica. A OMS emitiu alerta recomendando que hidroxicloroquina e cloroquina não fossem usadas na covid-19, pois as evidências que embasavam o tratamento eram frágeis.

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Em 2021, já havia uma série de estudos com metodologia robusta evidenciando que o tratamento não era eficaz, apresentava riscos e a mortalidade por covid-19 poderia até aumentar com o tratamento. Mesmo assim, Bolsonaro insistiu. 

Insistiu tanto que lançou o TrateCov para estimular a prescrição dos medicamentos. Acontece que o aplicativo foi retirado do ar sob críticas, pois recomendava o tratamento até para quem não tinha covid-19. O algoritmo tinha um único fim: prescrever tratamento precoce. A culpa disso, segundo o governo, foi de um ataque hacker ao TrateCov. 

A crise de oxigênio em Manaus também não teve responsabilidade assumida. Ninguém era culpado. Aliás, a culpa do caos de Manaus, segundo Bolsonaro, foi da falta de tratamento precoce. Pessoas que dependiam de suporte de oxigênio morreram porque o suporte acabou, embora o governo tenha sido avisado do aumento na demanda.

Uma crise sanitária enfrentada com imunização por contágio, promovendo um tratamento sem eficácia, deixando faltar suporte de oxigênio para os doentes e, por fim, com a propagação de desinformação sobre as vacinas de covid-19. 

Bolsonaro criticou a vacinação e atrasou a compra de vacinas, embora milhares de pessoas estivessem morrendo. Inventou que as vacinas provocavam Aids, que você poderia virar um jacaré caso se vacinasse, desestimulou o quanto pôde a vacinação. Como acreditar que, depois disso tudo, a tragédia da pandemia no Brasil não tem culpados?

“Fazer memória é fortalecer a luta por justiça”

Apesar das evidências, o então procurador-geral da República, Augusto Aras, entendeu que a CPI da covid-19 não trouxe indícios de crimes na gestão Bolsonaro. Engavetou as denúncias. E, cinco anos depois do início da pandemia, as pessoas já se esqueceram mesmo. 

Já que o Brasil tem memória fraca para eventos traumáticos, algumas iniciativas tentam ajudar. O Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência) da Universidade Federal de São Paulo, Unifesp, lançou o Acervo da Pandemia de Covid-19, um acervo digital que reúne um material extenso evidenciando a política anticiência que ajudou a ampliar a tragédia da pandemia no Brasil. 

Os itens – vídeos, áudios, documentos oficiais, entre outros – passaram por uma curadoria coletiva e foram catalogados por pesquisadores do SoU_Ciência. O acervo é uma importante iniciativa para a memória coletiva e ferramenta essencial no combate à desinformação e na luta por justiça e reparação.

Esquecer nosso passado implica em não se preparar para o futuro. Novos eventos traumáticos serão vividos, novas pandemias virão. Não fechamos a ferida aberta pela dureza da realidade vivida. Essa ferida só será fechada com a justiça. Fazer memória é fortalecer a luta por justiça. E, se a paz é fruto da justiça, somente no dia em que a justiça acontecer, poderemos viver em paz.

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