ONGs, advogados e empresários ajudam foragidos do 8 de Janeiro

A vida livre e impune na Argentina do bolsonarista Josiel Gomes de Macedo, condenado a 16 anos e meio de prisão depois de incendiar um carro da Polícia Legislativa no ataque a Brasília e comprar equipamentos militares para golpistas do 8 de Janeiro, não seria a mesma sem o apoio de empresários, advogados e políticos brasileiros.

Fugitivos como Josiel usufruem dos privilégios de uma rede que proporciona assistência jurídica, espaço em veículos de comunicação de amplo alcance e apoio de empresários que não se constrangem em manter condenados pelo Supremo Tribunal Federal em seu quadro de funcionários – como é o caso do bolsonarista que localizamos na Argentina.

Mesmo cientes de que Josiel é foragido da justiça do Brasil, os irmãos Rodrigo e Paula Bitencourt mantiveram Josiel como um dos vendedores da Bitentour, agência de turismo que tem duas lojas e diversos pontos de venda na região central de Buenos Aires.

Após a publicação da primeira reportagem desta série, Josiel participou de um programa de televisão da emissora VV8 TV, de Valinhos, no interior de São Paulo, e afirmou que foi demitido – além de fazer ameaças à reportagem: “Vão atrás de você”.

A dona da empresa, que também tem sede em Uruguaiana, cidade do Rio Grande do Sul na fronteira com a Argentina e o Uruguai, confirmou ao Intercept Brasil que sabia da condição de foragido de Josiel. Na conversa no escritório da agência, em Buenos Aires, Paula ainda disse que não via problema algum em contratar um condenado por golpe de estado para trabalhar.

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“Não tenho nada a ver com o que a pessoa fez, com o mundo dela, com a vida dela. Aqui ela só trabalha”, declarou. Após o Intercept insistir no questionamento sobre o fato de um condenado pelo 8 de Janeiro estar empregado na agência, ela reafirmou que isso não era problema da empresa.

No primeiro contato que tive com Josiel, em uma movimentada rua perto da Casa Rosada e rodeada de policiais argentinos, ele mesmo admitiu que seus patrões no “exílio” – como chama equivocadamente sua situação na Argentina, visto que não recebeu asilo no país – sabiam de sua situação. “Eles são Bolsonaro na veia?”, perguntei. “Sim, sim, eles são mais da direita”, respondeu o foragido.

O caso de Josiel não é isolado. Além dele, de acordo com relatos obtidos pelo Intercept, outros brasileiros foragidos na Argentina – dois deles que inclusive morariam na mesma casa que Josiel – podem estar escondidos no país vizinho em condições similares: contando com o apoio de uma rede de empresários e advogados de extrema direita com ramificações internacionais.

‘Isso aqui é turismo, não é política’

Josiel Gomes de Macedo foi condenado à prisão e está foragido desde junho de 2024, quando quebrou sua tornozeleira eletrônica. O Supremo Tribunal Federal disse ao Intercept que seu paradeiro é “desconhecido”. Mas nós o encontramos no centro de Buenos Aires, trabalhando para uma agência de viagens chefiada por brasileiros. 

Ao chegar na Bitentour, no dia 27 de fevereiro, procurei Rodrigo, um dos sócios do negócio, mas fui recebido por sua irmã, Paula.

A conversa já começou de maneira tensa. Mesmo hesitando em responder objetivamente às perguntas da reportagem, Paula confirmou que Josiel trabalhava na Bitentour, mas negou qualquer responsabilidade pela situação.

“Se é bandido, se não é bandido, se fez ou não fez alguma coisa, eu não sou responsável”, afirmou Paula. Apesar de tentar minimizar a situação, ela confirmou que Josiel trabalhava todos os dias no local, vestindo o uniforme da agência e divulgando o trabalho em suas redes sociais.

Questionada outra vez sobre a gravidade de empregar um foragido da Justiça brasileira, Paula respondeu: “isso aqui é turismo, não é política”. “Já anotei vocês, tirei foto sua e não é para publicar nada em relação à minha empresa”, informou.

“Ele não tem nada a ver comigo, é só um funcionário. Ele não pode trabalhar até pagar a dívida? O que tem a ver? Qual o problema? Vai na polícia”, ela me disse. “A minha política é dar emprego para quem quer trabalhar. Vou contratar qualquer pessoa que pedir emprego”, completou.

A partir disso, Paula disse que a reportagem estava “sendo convidada a sair” da agência. Em seguida, quando viu a fotógrafa Anita Pouchard Serra, colaboradora do Intercept, fazendo fotografias do lado de fora da loja, tentou tirar o equipamento da mão da profissional e ameaçou chamar a polícia.

‘Não vou ficar desamparado’

A demissão de Josiel, anunciada por ele mesmo na VV8 TV, não interrompeu o fluxo de apoio. Pelo contrário, ele afirmou durante a entrevista que segue “amparado”. A onda de ataques à reportagem provou que, de fato, ele está. 

Logo na manhã de sexta-feira, 14, um dos primeiros pilares dessa estrutura, a de comunicação, começou a funcionar. Menos de 24 horas após a publicação da reportagem, a emissora VV8TV e a rádio Auriverde Brasil, ambas do interior de São Paulo, veicularam discursos violentos em defesa de Josiel.

A VV8 TV é uma TV comunitária do empresário Odair Paes Junior, mais conhecido como Juninho da Seap – referência a uma escola de futebol em Valinhos. A emissora, que se define como a única “100% de direita” e foi lançada em janeiro de 2016, é usada para ecoar a face mais radical e golpista do bolsonarismo. A programação é transmitida no canal 8 da Claro TV.

“Preparem-se para uma revolução conservadora”, declarou Juninho em uma notícia publicada no site da VV8. Ele chegou a se lançar como pré-candidato a prefeito pelo PL em 2024, mas o plano não deu certo.

Já a rádio Auriverde Brasil, que também fez ataques à reportagem do Intercept, é uma ex-retransmissora da Jovem Pan de Bauru, em São Paulo, que ganhou alcance nacional nos últimos anos ao se transformar em porta-voz do bolsonarismo. O próprio Jair Bolsonaro costuma conceder entrevistas rotineiramente à emissora, que possui mais de 2 milhões de inscritos no YouTube.

A rádio pertence à família Dare, cujo patriarca, Airton Antonio Dare, faleceu em 2011. A família fundou o Grupo Bauruense, presente em três estados e atuante na área de infraestrutura.

Embora tenha sido fundada em 1966, a programação de extrema direita da rádio se consolidou durante os governos de Michel Temer e Bolsonaro. O atual diretor, sócio e principal apresentador da emissora é Alexandre Pittoli, mestre de cerimônias que é próximo da família Bolsonaro e de políticos bolsonaristas. O locutor disse que a reportagem do Intercept lhe despertava “instintos primitivos”.

Contatada pelo Intercept, a VV8 negou que tenha praticado ameaça e alegou que dá voz a todos os brasileiros. Além disso, defendeu que há uma tentativa de intimidação contra brasileiros na Argentina. 

Já a AuriVerde Brasil respondeu ao e-mail da reportagem durante uma transmissão ao vivo na última terça-feira, 18. Alexandre Pittoli reiterou que a matéria do Intercept desperta nele “instintos primitivos” e sugeriu que ele mesmo fosse processado. “Caso você não tenha gostado do que eu fiz, existem ferramentas para que isso seja questionado”, declarou.

Em relação aos questionamentos feitos via e-mail pelo Intercept, Pittoli negou que a AuriVerde tenha prestado auxílio a foragidos. Ele reconheceu apenas que a empresa de mídia solicitou doações para uma organização que apoia familiares desses brasileiros foragidos.

Ainda na sexta-feira, 14, um post de Eugênia Assis, estudante brasileira radicada na Argentina, viralizou no X dizendo que o Intercept foi “perseguir brasileiros” na Argentina. A postagem ganhou tração quando foi replicada por políticos bolsonaristas de relevância, como o filho do ex-presidente e atual deputado federal Eduardo Bolsonaro, do PL de São Paulo, e o ex-senador Arthur Virgílio Neto, que usou termos como “Judas” para descredibilizar o trabalho jornalístico. Os dois são expoentes da defesa da anistia aos condenados do 8 de Janeiro.

Outros influenciadores de extrema direita também dão sustentação à “força-tarefa” em defesa dos criminosos. Um deles é o ex-BBB Didi Red Pill, que participou das invasões do 8 de Janeiro fazendo transmissão ao vivo, mas escapou de qualquer punição após fugir para o exterior. O policial penal David Ágape, que se autointitula jornalista investigativo, também fez ataques de baixo nível ao Intercept.

Extrema direita financia foragidos na Argentina

A proteção de foragidos do 8 de Janeiro na Argentina, no entanto, não é apenas fruto de decisões individuais – nem só uma estratégia de comunicação. Redes de apoio ligadas à extrema direita vêm fazendo campanhas para financiar a fuga e a permanência de muitos desses foragidos, garantindo dinheiro para que sobrevivam no país vizinho – e, como no caso de Josiel, ofertando trabalho em empresas comandadas por pessoas alinhadas ao bolsonarismo.

O advogado criminalista Mariel Marra, que defende réus do 8 de Janeiro no STF, chegou a afirmar, em uma entrevista publicada pelo UOL, em julho do ano passado, que o transporte e a hospedagem na Argentina de alguns fugitivos foram financiados por terceiros.

“Existe sim um grupo forte financeiramente por trás que está bancando essas fugas”, afirmou, sobre a existência de pessoas no Brasil que pagaram ônibus de foragidos para o exterior. “Tive conhecimento de pessoas que foram para lá [Argentina] e apareceu essa oferta de ônibus”, complementou.

A reportagem identificou ao menos duas ONGs e diversas campanhas online voltadas ao financiamento de brasileiros condenados por participação nos ataques golpistas.

Uma das organizações que atua na arrecadação de dinheiro para os familiares dos autointitulados “refugiados”– é o Instituto Gritos de Liberdade, uma associação privada fundada em junho de 2024 pela advogada bolsonarista Taniéli Telles de Camargo em Jaraguá do Sul, em Santa Catarina.

Nas redes sociais e em seus dados de cadastro, a ONG mostra dedicação aos bolsonaristas supostamente “refugiados e exilados”, e faz diversas publicações sobre os foragidos na Argentina.

Na bio do Instagram, o instituto indica seu CNPJ para envios de transferência via PIX com objetivo de “ajuda humanitária a familiares de Presos, Exilados, Refugiados e Perseguidos Políticos”. Desde setembro de 2024, vários posts foram feitos pedindo doações, sem mencionar especificamente os foragidos na Argentina. 

Ana Caroline Sibut Stern, advogada da organização, negou que o Instituto Gritos de Liberdade faça qualquer tipo de repasses diretos a foragidos. “Temos uma contabilidade de todo o valor que o instituto arrecada e repassa, isso é bem transparente. Se for objeto de investigação da Polícia Federal, disponibilizaremos tudo”, declarou.

Os pedidos de doação costumam ser compartilhados por advogados e influencers de extrema direita, com destaque para páginas bolsonaristas mantidas por membros da comunidade brasileira no exterior, como a Direita Boston, administrada diretamente dos Estados Unidos.

Entre os grupos mais ativos nessa rede de apoio está a Associação de Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro, a Asfav, fundada em maio de 2023 pela advogada Gabriela Ritter. A organização também exibe nos destaques de seu perfil no Instagram uma chave PIX para doações em apoio à defesa de “familiares e vítimas” do 8 de Janeiro.

Em maio do ano passado, a associação levou ao parlamento argentino uma comitiva formada pelos advogados Ezequiel Silveira, Carolina Siebra e Luciano Cunha para prestar auxílio aos condenados brasileiros que estão no país vizinho. Em novembro, Silveira esteve de novo na Argentina com o mesmo objetivo.

Silveira foi outro que se envolveu nos ataques coordenados ao Intercept pouco depois de a reportagem ir ao ar. A Asfav publicou um vídeo do advogado em tom exaltado, compartilhado em diversas páginas de extrema direita, distorcendo o teor da reportagem ao dizer que Josiel não é alvo de mandado de prisão na Argentina. Essa informação jamais foi publicada pelo Intercept: explicamos que o foragido é alvo de prisão no Brasil e fugiu para Argentina sem figurar na lista dos pedidos de extradição do STF.

Questionados formalmente sobre o apoio material e a prestação de consultoria jurídica foragidos da Justiça, a Asfav afirmou que “não realiza ajuda financeira a pessoas refugiadas em outros países ou com mandados de prisão, pois não somos idiotas”.

Em seguida, a organização declarou o seguinte: “Embora, promovamos, de maneira pública, conforme se verifica das redes sociais da associação, auxilio jurídico e humanitário a brasileiros refugiados fora do Brasil, vítimas da perseguição estatal”.

Empreendedorismo golpista

O auxílio a foragidos do 8 de Janeiro também é prestado por outros fugitivos. Em 2024, uma vendedora que ajudou a organizar ônibus para os atos golpistas do 8 de Janeiro foi flagrada oferecendo auxílio a outros condenados e réus que queriam fugir para a Argentina.

Em mensagens, Fátima Aparecida Pleti disse que poderia ajudar outros condenados a fazerem a “travessia com segurança” na fronteira do Brasil com o país vizinho. Ela alugou uma casa em La Plata, que  disponibilizava a outros foragidos, revelou uma reportagem do UOL.

Fátima segue com um mandado de prisão em aberto no Brasil por ter sido condenada a 17 anos de prisão por envolvimento no 8 de Janeiro. Mas, enquanto ele não é cumprido, ela, Josiel e outros condenados continuam circulando livremente e impunes em Buenos Aires, com apoio financeiro e estrutural garantido por redes e organizações que operam além das fronteiras brasileiras.

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