O desprezo pela Europa vazado em conversas do gabinete de Defesa de Trump que horroriza a União Europeia


Enquanto as principais autoridades americanas descrevem a Europa como ‘aproveitadora’, líderes e formuladores de políticas europeus se dizem ‘enojados’. Os comentários de altos funcionários dos EUA preocupam os principais líderes europeus
Getty Images via BBC
“É horrível de se ver com todas as letras. Mas não é surpreendente”, foi assim que um importante diplomata europeu reagiu ao que parece ser um profundo e sincero desdém pelos aliados na Europa, depois que um bate-papo em grupo no aplicativo Signal entre as principais autoridades de Segurança e Defesa dos EUA se tornou público na segunda-feira (24).
O editor-chefe da revista americana The Atlantic, Jeffrey Goldberg, foi convidado aparentemente por acidente para o bate-papo, que discutia os ataques planejados contra os rebeldes houthi no Iêmen com o objetivo de desbloquear as rotas comerciais no Canal de Suez. Posteriormente, ele tornou pública a conversa.
No bate-papo, o vice-presidente J.D. Vance observa que apenas 3% do tráfego comercial dos EUA passa pelo canal, em comparação com 40% do tráfego comercial europeu, após ele e o secretário de Defesa, Pete Hegseth, reclamarem do “oportunismo” da Europa.
A falha monumental de segurança está causando comoção nos EUA, com os democratas pedindo a renúncia de Hegseth como resultado.
Do outro lado do Atlântico, os líderes e formuladores de políticas europeus se sentiram “enojados”, como me disse uma autoridade da União Europeia (UE).
As autoridades citadas nesta reportagem estão falando sob condição de anonimato para comentar livremente sobre os tempos voláteis nas relações entre os EUA e a Europa. Nenhuma declaração pública será feita para não complicar ainda mais a situação transatlântica.
Vance surpreendeu pela primeira vez as autoridades europeias com seu discurso na Conferência de Segurança de Munique, no mês passado, condenando o continente por ter valores equivocados, como a proteção a clínicas de aborto e o que chamou de “censura à liberdade de expressão” na mídia e online — o “inimigo de dentro”, nas palavras dele.
O “vazamento” do bate-papo no Signal, na segunda-feira, acontece em meio a uma série de tensões, mal-estares e temores na Europa, que já não pode mais confiar no governo Trump como o maior aliado do continente, justamente em um momento em que o continente europeu se vê diante de uma Rússia ressurgente.
Desde a Segunda Guerra Mundial, a Europa Ocidental conta com o apoio dos EUA em termos de segurança e defesa.
Mas é justamente esse fato que irrita o governo Trump, e que consolidou a Europa em sua mente como “aproveitadora”.
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Enquanto os EUA destinam 3,7% do seu monumental Produto Interno Bruto (PIB) para a defesa, a maioria dos membros europeus da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) relutou até recentemente em contribuir com 2% do seu PIB. Alguns, como as grandes economias da Espanha e Itália, ainda nem sequer chegaram a este patamar, embora digam que planejam fazer isso em breve.
A Europa depende fortemente dos EUA, entre outras coisas, em termos de inteligência, de capacidades de defesa aérea e do seu guarda-chuva nuclear.
Com a eliminação gradual do serviço militar obrigatório na maioria dos países europeus, o continente também depende dos cerca de 100 mil soldados americanos prontos para o combate, que estão a postos na Europa para ajudar a dissuadir potenciais agressores.
Os europeus têm se concentrado em investir mais em bem-estar e serviços sociais do que em defesa — coletiva ou de outro tipo — desde o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria. Por que os EUA deveriam assumir essa responsabilidade?, se pergunta o governo Trump.
No bate-papo em grupo que vazou, o conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, Michael Waltz, lamenta o estado das forças navais da Europa. “Os EUA vão ter que reabrir essas rotas marítimas [de Suez]”.
Os integrantes do bate-papo discutem então como garantir que a Europa remunere os EUA por suas ações.
“Se os EUA restaurarem com sucesso a liberdade de navegação a um custo elevado, é necessário que haja algum ganho econômico adicional em troca”, afirma uma mensagem de alguém chamado SM — que se presume ser o vice-chefe de gabinete da Casa Branca, Stephen Miller.
A Europa agora está discutindo publicamente a possibilidade de gastar muito mais em sua própria defesa — na esperança de manter o presidente americano, Donald Trump, ao seu lado, e uma Rússia agressiva acuada depois da guerra na Ucrânia.
Mas a irritação de Trump com a Europa não é novidade.
Ele demonstrou seu descontentamento durante seu primeiro mandato: furioso com os baixos gastos da Europa com defesa; e indignado com o superávit comercial da União Europeia com os EUA.
Os Estados Unidos já estavam sendo enganados há muito tempo, e isso precisava acabar, parecia ser sua sensação.
A imposição de tarifas comerciais foi uma das primeiras respostas de Trump. Tanto naquela época, quanto agora.
No início deste mês, quando Trump ameaçou impor tarifas exorbitantes de 200% sobre as bebidas alcoólicas europeias, em uma guerra comercial em curso, ele criticou a União Europeia como “abusiva” e “hostil” por supostamente tirar vantagem dos EUA em qualquer oportunidade.
Coincidindo de forma desconfortável com o “vazamento” do bate-papo do Signal e seus ataques aos europeus, o comissário de comércio da União Europeia, Maros Sefcovic, e o chefe de gabinete da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, chegaram a Washington na terça-feira (25/3), esperando lançar uma ofensiva sedutora para tentar evitar um novo ataque tarifário.
Na área de defesa, Donald Trump ameaçou repetidamente que os EUA não protegeriam os países que “não pagassem”.
Seu candidato para ser o próximo embaixador dos EUA na Otan diz que isso significa que os europeus devem gastar 5% do PIB.
Atualmente, o Reino Unido gasta 2,3% do PIB em defesa, com o objetivo de chegar a 2,6% até 2027. A França destina anualmente 2,1% do PIB para despesas militares.
Durante a Guerra Fria, o inimigo comum era a União Soviética, que incluía grande parte da Europa Oriental.
Os EUA queriam manter a Europa Ocidental por perto, e militarmente dependente.
Desde então, tem havido uma apatia crescente em relação à Otan e à Europa. Principalmente após os ataques de 11 de setembro às torres gêmeas nos EUA.As atenções em Washington se voltaram para o Iraque e o Afeganistão — e para a China.
O presidente Barack Obama deixou claro que queria que a Ásia fosse sua principal prioridade em política externa.
Trump está longe de ser o primeiro presidente dos EUA a reclamar da relutância da Europa em fazer mais e gastar mais em sua própria defesa.
Com Trump, no entanto, também existe uma profunda divisão ideológica em relação aos valores sociais, como J.D. Vance mencionou em Munique. Mas não é só isso.
Trump demonstra — e isso é fundamental — não apenas uma antipatia pela Europa e uma impaciência para acabar com a guerra na Ucrânia, mas também uma afinidade com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, em um momento em que a Europa o considera uma ameaça imediata à segurança e ao bem-estar de todo o continente.
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