
Gilmar Mendes paralisou milhares de processos trabalhistas em todo o país, em meio a uma explosão de casos sobre terceirização e pejotização que chegam ao STF desde a Reforma Trabalhista. Gilmar Mendes suspendeu projetos sobre pejotização no Brasil
Getty Images via BBC
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu na segunda-feira (14) a tramitação no país de todos os processos que discutem a legalidade da chamada “pejotização” – quando empresas contratam prestadores de serviços como pessoa jurídica (PJ), evitando arcar com os encargos trabalhistas ligados à contratação de funcionários através de vínculo formal de emprego.
Na decisão, Gilmar Mendes argumenta que o STF tem sido sobrecarregado com demandas sobre o tema, porque a Justiça do Trabalho “descumpre sistematicamente” a orientação da Suprema Corte, que em diversos casos recentes tem decidido pela legalidade da pejotização.
“Parcela significativa das reclamações em tramitação nesta Corte foram ajuizadas contra decisões da Justiça do Trabalho que, em maior ou menor grau, restringiam a liberdade de organização produtiva”, diz Gilmar, ao justificar sua decisão.
Em 2024, o número de reclamações trabalhistas recebidas pelo STF superou as civis pela primeira vez, representando 42% do total, conforme dados do painel Corte Aberta, citados em reportagem do portal Jota.
Foram 4.274 ações do tipo, um crescimento de 65% em relação a 2023 (com 2.594 reclamações) e de mais de seis vezes em relação a 2018, ano seguinte à aprovação da Reforma Trabalhista, que passou a permitir a terceirização da atividade principal das empresas.
A decisão de Gilmar Mendes nesta segunda-feira ocorre após o plenário do Supremo reconhecer por maioria (com voto contrário de Edison Fachin) a repercussão geral do assunto – quando os ministros selecionam um processo para que seu desfecho sirva de parâmetro para todos os casos semelhantes, unificando o entendimento da Justiça brasileira sobre um determinado tema.
Entenda o que está em jogo na decisão que paralisou milhares de processos trabalhistas em todo o país.
O que o STF está julgando
O caso escolhido pelo Supremo para ter repercussão geral discute se um franqueado da seguradora Prudential deve ter o vínculo empregatício reconhecido.
A ação foi julgada improcedente pela Justiça do Trabalho e o corretor de seguros interpôs um recurso extraordinário junto ao Supremo.
Ao julgar o caso como de interesse geral, o STF deve decidir três questões, para além da validade ou não desse contrato:
A competência da Justiça do Trabalho para decidir sobre esse tipo de relação de trabalho;
A licitude da terceirização ou pejotização;
E de quem deve ser o ônus da prova para eventual caracterização de fraude, se do trabalhador ou do contratante.
Embora o caso concreto discuta contratos de franquia, Gilmar Mendes deixou claro que a discussão não estará limitada apenas a esse tipo de contrato.
Segundo o relator, “é fundamental abordar a controvérsia de maneira ampla, considerando todas as modalidades de contratação civil/comercial”, frisou ele, no reconhecimento da repercussão geral.
Como o STF já se manifestou sobre o assunto
Até 2017, a interpretação sobre a terceirização era ditada pela Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que considerava lícita a terceirização de atividades-meio (aquelas não ligadas ao objetivo principal de uma empresa), mas ilegal a terceirização da atividade-fim
Por exemplo, uma fábrica de sapatos poderia terceirizar a segurança e a limpeza da fábrica, mas não a fabricação de sapatos em si.
A Reforma Trabalhista de 2017, porém, tornou legal a terceirização de toda e qualquer atividade.
No ano seguinte à aprovação da reforma, um novo entendimento foi consolidado pelo STF, que decidiu então que a terceirização era possível de forma ampla e irrestrita – sem fazer a diferenciação entre atividade-meio e atividade-fim, como previsto na Súmula 331 do TST.
Em 2022, o STF decidiu pela primeira vez pela legalidade da pejotização, num caso envolvendo a contratação de médicos como pessoa jurídica por um hospital de Salvador (BA).
A diferença aqui é que, na terceirização clássica (tema da decisão de 2018), há uma empresa intermediária entre contratante e trabalhador. Já na pejotização, o vínculo entre as partes é direto, com o trabalhador constituindo empresa (como uma MEI, por exemplo) para prestar serviço ao empregador – o que a Primeira Turma do STF entendeu também ser lícito naquele ano de 2022.
Ao longo dos anos seguintes, as duas turmas do STF tomaram decisões diversas reiterando a legalidade da terceirização via pejotização, e com placares cada vez mais favoráveis à tese, lembra o advogado trabalhista e professor de pós-graduação do Insper, Ricardo Calcini.
Por que Gilmar tomou a decisão de suspender processos agora
Apesar das reiteradas decisões do STF, a Justiça do Trabalho seguiu tomando decisões em que reconhecia o vínculo empregatício em casos de pejotização considerados fraudulentos.
E como o Supremo passou a aceitar reclamações com relação ao tema, as empresas, ao invés de discutirem a questão no âmbito da Justiça do Trabalho, passaram a recorrer diretamente ao STF.
Isso inundou o Supremo de reclamações constitucionais de natureza trabalhista, fazendo da Corte uma instância revisora da Justiça do Trabalho, observa Calcini.
Em meados de 2024, com as reclamações trabalhistas superando as processuais civis no STF, Gilmar Mendes começou em seu gabinete a declinar a competência para julgar esses casos, devolvendo-os à Justiça comum – ora sendo vencedor, ora vencido nas decisões da Segunda Turma quanto a isso.
Calcini avalia que o STF já poderia ter decidido antes pela repercussão geral do tema mas, na sua avaliação, o que mudou agora é que o TST estava prestes a discutir a licitude da pejotização em caráter vinculativo.
Assim, os ministros do STF podem ter antecipado a discussão, imaginando que a decisão do TST pudesse ser contrária à opinião do Supremo. Com isso, a discussão no TST e no país inteiro foi paralisada, e a Suprema Corte terá a palavra final.
Como a decisão afeta os casos na Justiça
“Para tudo”, resume o professor do Insper.
“Todos os processos que discutam essa relação de vínculo de emprego via pejotização, nessa temática da terceirização, ele [Gilmar Mendes] mandou parar, sem diferenciar instâncias.”
Em 2025, só até fevereiro, foram ajuizados 53.678 novos casos envolvendo reconhecimento de relação de emprego, o que coloca o tema em 15º lugar no ranking dos que mais levam as pessoas à Justiça do Trabalho, segundo estatísticas disponíveis no site do TST.
No ano inteiro de 2024, foram 285.055 novos casos, um crescimento de 89% em relação a 2018, quando foram registrados 150.500 processos envolvendo reconhecimento de vínculo de emprego e o tema ainda ocupava a 25ª posição no ranking dos assuntos mais recorrentes.
Como isso se relaciona com a Reforma Trabalhista
O crescimento do número de casos coincide com a vigência da reforma trabalhista, cuja lei foi aprovada em 2017, e que passou a permitir a terceirização da atividade-fim das empresas.
“Quando a reforma permite a terceirização, existia a dúvida se essa permissão trazida pela lei seria considerada lícita ou não, à luz do entendimento que existia até então”, lembra Calcini.
Em 2018, quando o Supremo chancela a questão da terceirização, a lei ganha um “sinal verde”, considera o advogado trabalhista.
A partir daquele momento, as empresas, por uma questão financeira – para reduzir custos como o pagamento de plano de saúde, vale-refeição, vale-transporte, Participação nos Lucros e Resultados (PLR) e outros ligados ao emprego formal, conforme previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) –, passam a adotar com mais frequência contratos de pejotização com seus colaboradores.
“O número de ações cresce por conta disso, porque as empresas mudam a forma de contratação e muitas pessoas passam a judicializar esse tipo de discussão”, diz Calcini.
O advogado trabalhista lembra que a pejotização hoje envolve desde trabalhadores altamente qualificados, com ensino superior e altos salários – como empresários, médicos, advogados e outros profissionais liberais PJ –, até pessoas que ganham um salário mínimo.
O que esperar a partir de agora
Calcini avalia que, com a paralisação dos processos em âmbito nacional, deve haver uma mobilização institucional – por parte da Justiça trabalhista, de entidades de classe, das associações patronais e da própria Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – para que o STF julgue o caso rapidamente.
No entanto, ele observa que, pelo histórico de outras ações do Supremo com repercussão geral na área trabalhista, é improvável que uma decisão saia já esse ano, o que jogaria a questão para 2026.
Além disso, avalia Calcini, as empresas devem ver a decisão de Gilmar Mendes como um sinal de que o Supremo provavelmente vai reconhecer a legalidade da pejotização, o que pode acelerar esse tipo de contratação.
Quando o STF tomar sua decisão, o impacto da medida vai depender do que for decidido e se haverá modulação da decisão. Por exemplo, se o reconhecimento da licitude da pejotização passa a valer somente para novos casos, ou se retroaje, englobando também casos já em tramitação ou até mesmo aqueles já decididos.
“Estamos numa situação de muita imprevisibilidade do que vai acontecer”, diz Calcini.
“Acredito que o que o Supremo, ao tentar resolver um problema que é o número excessivo de reclamações que ele decide, prejudicou todo o sistema, que é muito maior do que o Supremo, com todo o respeito à Corte”, opina o advogado trabalhista.
“Isso paralisa o trabalho de todo mundo, do Judiciário e da advocacia. E quem é o principal prejudicado é a parte [empresas e trabalhadores, que são partes nos processos trabalhistas], então o impacto é realmente enorme.”
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