Giovanni Angelo Becciu foi uma das figuras mais poderosas do Vaticano, tendo ocupado o cargo de “sostituto” (“substituto”) na Secretaria de Estado da Santa Sé, o equivalente a um chefe de gabinete papal.
Nessa função, ele podia ver o papa quando necessário e era até mesmo cotado para pontífice no futuro.
Entretanto, Becciu foi condenado a cinco anos e meio de prisão por várias acusações de peculato em um caso envolvendo a compra de um edifício de luxo em Londres que deixou um rombo de 139 milhões de euros nas finanças do Vaticano. Ele se tornou o primeiro cardeal a ser sentenciado por um tribunal da Santa Sé.
Antes do início do julgamento, o papa Francisco demitiu o cardeal do cargo como líder do departamento do Vaticano para a canonização de santos, retirando também seu direito de votar em um futuro conclave.
Giovanni Becciu nega as acusações e não aceita estar ausente da lista oficiais de cardeias divulgada pelo Vaticano.
Na terça-feira (22), o italiano compareceu à primeira assembleia de cardeais e deu uma entrevista ao jornal L’Unione Sarda, argumentando que o papa não tinha o direito de o excluir da eleição.
“Ao convocar-me para o último consistório [assembleia de cardeais por ocasião da nomeação de novos cardeais], o papa reconheceu as minhas prerrogativas cardinalícias, na medida em que não houve nenhuma vontade explícita de me excluir do conclave, nem houve qualquer pedido explícito por escrito de minha renúncia”, alegou.
“A lista [dos eleitores do conclave] publicada pela Santa Sé não tem qualquer valor e deve ser considerada como tal”, afirmou.
Entretanto, um artigo de 24 de setembro de 2020 do Vatican News, a agência de notícias oficial do Vaticano, afirma que o escritório de imprensa da Santa Sé publicou uma declaração destacando que o papa “aceitou a renúncia ao cargo de Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e aos direitos relacionados ao Cardinalato apresentada por Sua Eminência o Cardeal Giovanni Angelo Becciu”.
A decisão sobre a eventual participação do italiano no conclave será tomada pelo decano do Colégio Cardinalício, Giovanni Battista Re.
Entenda o caso da compra do apartamento de luxo
O foco do julgamento que envolveu Giovanni Angelo Becciu foi a compra de uma vasta propriedade no bairro de Chelsea, no sudoeste de Londres, pelo Vaticano. Originalmente, ela foi construída como um showroom de automóveis para a loja de departamentos Harrods.
A Santa Sé gastou cerca de US$ 400 milhões no negócio ao longo de vários anos, mas acabou com prejuízos de cerca de US$ 140 milhões após a venda do ativo.
Os promotores do Vaticano argumentaram que a Igreja foi enganada ao pagar um valor excessivo pela propriedade, enquanto os responsáveis pelo negócio foram negligentes e intermediários lucraram muito.
Inicialmente, a Santa Sé investiu US$ 200 milhões em um fundo administrado por Raffaele Mincione, um financista italiano radicado em Londres que controlava uma participação de 45% na propriedade de Chelsea.
Esse aporte foi autorizado quando o Becciu era chefe de gabinete. A outra metade do edifício pertencia a Mincione.
O plano era transformar o prédio em apartamentos, mas o Vaticano ficou insatisfeito com o investimento, que, segundo os promotores, deixou a igreja com grandes perdas.
O edifício, segundo eles, havia sido supervalorizado por Mincione e a Secretaria de Estado do Vaticano não foi informada de uma hipoteca de £ 75 milhões sobre o imóvel.
Em 2018, Giovanni Becciu deixou a Secretaria de Estado por ter sido nomeado como Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos.
O novo Substituto da Secretaria de Estado, Edgar Peña Parra, foi apenas parcialmente informado da transação já em andamento. Ele decidiu comprar o prédio, mas teve que pagar uma taxa alta a Mincione.
Em seguida, outro financista, Gianluigi Torzi, foi contratado para ajudar a comprar o imóvel. Ele foi acusado de estruturar o negócio de forma que o deixou no controle do prédio, fazendo o Vaticano comprar uma “caixa vazia”.
Altos funcionários da Santa Sé disseram que não foram devidamente informados sobre isso e que tiveram que pagar milhões a Torzi.
Para que Becciu pudesse ser julgado, o papa Francisco teve que mudar a lei para permitir que bispos e cardeais fossem julgados em um tribunal do Vaticano. Anteriormente, eles eram imunes a processos.
Condenações
O Vaticano anunciou que o julgamento começaria em julho de 2021. Os promotores apresentaram uma acusação de 500 páginas detalhando os supostos crimes. Ele durou até 2023.
Tanto Torzi quanto Mincione estavam entre os 10 réus no caso. A maioria foi condenada em algumas acusações e absolvida de outras. Um deles, o Monsenhor Mauro Carlino, ex-secretário de Becciu, foi absolvido de todas as acusações.
Torzi foi julgado por extorsão, lavagem de dinheiro, fraude e peculato e recebeu uma pena de seis anos. Mincione foi acusado de peculato, abuso de poder, fraude e lavagem de dinheiro e recebeu uma pena de cinco anos e meio.
Ambos negaram as acusações contra eles. Mincione também entrou com uma ação judicial contra a Santa Sé nos tribunais de Londres.
Caso “a dama do cardeal”
Becciu também foi acusado de desviar mais de € 125 mil de fundos da Igreja para uma instituição de caridade na Sardenha administrada por seu irmão e de autorizar € 575 mil em pagamentos da Secretaria de Estado a Cecilia Marogna, que seria “consultora de segurança” para ajudar a libertar uma freira sequestrada na África.
Os promotores do Vaticano argumentaram que esse dinheiro foi usado para fins pessoais por Marogna, incluindo mais de US$ 54 mil gastos em roupas, calçados e acessórios de moda de marcas de luxo como Prada, Gucci e Hermès.
Marogna foi apelidada de “dama do cardeal” devido à ligação com Becciu. Durante o julgamento, foram mostradas imagens tiradas por ela dentro do apartamento do cardeal e publicadas nas redes sociais com legendas como “me sentindo em casa” e “meu paraíso”.
Quando a polícia do Vaticano informou a Becciu que o dinheiro transferido para Marogna não estava sendo usado como pretendido, ele pediu que não informassem ninguém “porque isso causaria sérios danos a ele e à sua família”.
Durante um interrogatório antes do julgamento, uma testemunha foi questionada pelos promotores se Becciu e Marogna tinham um relacionamento íntimo, o que ele negou. Ambos negaram qualquer relacionamento impróprio.
Marogna foi condenada a três anos e nove meses de prisão após ser condenada por apropriação indébita de centenas de milhares de euros autorizados por Becciu.
Ela negou qualquer irregularidade e declarou ao jornal italiano Corriere della Sera que gastou os fundos do Vaticano com honorários para ela e seus colaboradores, viagens e outras despesas de subsistência.
Ela insistiu ter desenvolvido uma “rede de relacionamentos na África e no Oriente Médio” para ajudar diplomatas e missionários do Vaticano.
Também durante o julgamento, o tribunal ouviu um telefonema gravado secretamente por Becciu com o papa Francisco, no qual ele buscava confirmar que opontífice havia autorizado pagamentos para libertar a freira sequestrada.
De acordo com uma transcrição, o papa afirmou que se lembrava “vagamente” de uma discussão sobre pagamentos, mas pediu repetidamente a Becciu que explicasse o que queria por escrito.
Este conteúdo foi originalmente publicado em Entenda caso do cardeal demitido pelo papa que quer participar do conclave no site CNN Brasil.