Análise: Cardeais se preparam para disputa pelo futuro da Igreja Católica

A morte do papa Francisco iniciou o que muitos veem como uma batalha pela alma da Igreja, colocando aqueles que querem continuar suas reformas progressistas contra um grupo pequeno, mas poderoso, que quer revertê-las.

Francisco reformulou radicalmente o grupo que em breve votará em seu sucessor. Somente cardeais com menos de 80 anos têm direito a voto, e ele escolheu a maioria deles.

O primeiro pontífice do Sul Global, Francisco decidiu “rasgar” o antigo e não escrito código de regras que previa que bispos de certas dioceses – a maioria delas na Itália, Europa e Estados Unidos – fossem automaticamente nomeados cardeais.

Em vez disso, o pontífice buscou internacionalizar o Colégio Cardinalício, nomeando cardeais de uma série de países que nunca haviam sido representados antes, como Tonga, Mianmar, Mongólia, República Centro-Africana e Haiti.

Suas reformas tornaram o organismo mais representativo da comunidade católica global, enquanto os cardeais que ele selecionou, em geral, compartilham sua visão da Igreja.

Tudo isso torna mais provável que os cardeais escolham um papa que represente a continuidade com as ideias e reformas de Francisco.

Mas os conclaves podem trazer surpresas e, apesar das reformas implementadas, há uma pequena, porém determinada, minoria insatisfeita com o papado mais recente, que buscará maneiras de mudar o rumo da Igreja Católica.

Parte da oposição é bem financiada e as manobras pré-conclave já se arrastam há vários anos.

Esses cardeais estavam preocupados com a abertura de Francisco em dar a comunhão a casais divorciados ou que casaram novamente, com a acolhida a católicos LGBTQIA+ e com as fortes críticas ao que o papa classificou como católicos “atrasados” que desejam levar a Igreja de volta a um caminho diferente.

Suas críticas à desigualdade econômica e seu foco nos direitos dos imigrantes e na crise climática chocaram os católicos que queriam um papa que ditasse as regras sobre os ensinamentos morais.


Uma foto do Papa Francisco é mantida em exibição durante uma missa, após seu falecimento ser anunciado pelo Vaticano, na Igreja Católica de São Luís, em Bangcoc, Tailândia 21/04/2025 • REUTERS/Athit Perawongmetha

Enquanto estava hospitalizado, Francisco aprovou um processo de reforma de três anos na Igreja Católica, incluindo como atribuir papéis mais amplos às mulheres, incluindo sua ordenação como diáconos, e a maior inclusão de leigos na governança e na tomada de decisões.

As reformas foram examinadas por meio de uma estrutura chamada Sínodo dos Bispos, que vinha sendo o principal veículo pelo qual o papa implementou sua agenda pastoral durante seu pontificado.

Nos últimos anos, ele buscou envolver católicos de todo o mundo no processo de renovação. A grande questão é como o próximo papa dará continuidade a esse processo, que está previsto para durar até 2028.

O debate provavelmente se intensificará após o funeral do papa Francisco neste sábado (26), com as atenções se voltando para o próximo conclave – cuja data de início ainda não foi confirmada.

Cardeais não-votantes podem influenciar eleição

Um grupo a ser observado com atenção é o de cardeais com mais de 80 anos que, embora impossibilitados de votar, podem desempenhar um papel importante nas reuniões pré-conclave e nas discussões informais que ocorrem antes da eleição.

Uma parte desses cardeais aposentados não foi nomeada por Francisco, e alguns se opuseram à direção que o primeiro papa latino-americano tentou conduzir a Igreja.

O cardeal Blase Cupich, de Chicago, e o cardeal Oswald Gracias, arcebispo emérito de Bombaim, poderiam exercer esse papel de “criador de reis”, assim como o cardeal Christophe Pierre, ex-embaixador papal nos Estados Unidos, ou o cardeal Arthur Roche, autoridade britânica do Vaticano.

Há também o cardeal hondurenho Oscar Rodriguez Maradiaga, que possui vasta experiência, é multilíngue e apoiará um candidato que esteja em sintonia com as prioridades pastorais de Francisco.

O cardeal Marc Ouellet, prelado canadense que durante anos dirigiu o escritório do Vaticano para a nomeação de bispos, também é uma figura que provavelmente influenciará os procedimentos.

Outros nomes importantes são do cardeal ganês Peter Turkson, que dirige a Pontifícia Academia de Ciências, e o cardeal Timothy Dolan, de Nova York.

Já algumas das vozes mais críticas vêm de cardeais eméritos, como Joseph Zen, de Hong Kong, que tem sido um crítico ferrenho de Francisco e da reaproximação diplomática do Vaticano com a China.

Há também um número considerável de cardeais que talvez queiram seguir as reformas de Francisco, mas com um papa mais previsível e com menos “choque e pavor” do falecido pontífice.

Críticas ao papa Francisco

Durante o pontificado de Francisco, um grupo de cardeais tomou a medida bastante incomum de desafiar publicamente o papa pela decisão de permitir a comunhão para católicos divorciados e que casaram novamente.

Em duas ocasiões, foram publicados memorandos anônimos de cardeais criticando fortemente Francisco.

O primeiro foi divulgado sob o pseudônimo de “Demos” e, mais tarde, descobriu-se que havia sido escrito pelo cardeal australiano George Pell, que Francisco havia nomeado tesoureiro do Vaticano. O cardeal morreu em 2023.

O segundo, “Demos II”, acusou o pontífice de governar de forma autocrática e afirmou que o próximo deve trabalhar pela “recuperação e restabelecimento de verdades que foram lentamente obscurecidas ou perdidas entre muitos cristãos”.

Tentativas de influenciar o conclave

O próximo conclave acontecerá em meio ao escrutínio das redes sociais e os cardeais precisarão garantir que examinem os candidatos de perto.

Um historiador da Igreja escreveu sobre a possível “catástrofe” de um papa recém-eleito ser forçado a renunciar em um cenário imaginário em que alegações de não ter lidado com uma queixa de abuso sexual surjam repentinamente online.

Esta eleição papal ocorre em uma atmosfera em que uma alegação, se for confirmada, pode rapidamente impactar uma candidatura.

Além disso, há muitas forças na Igreja buscando influenciar a votação, muitas delas bem financiadas, organizadas e com vínculos com os Estados Unidos.

Em dezembro de 2024, um site intitulado “Relatório do Colégio de Cardeais” foi lançado, detalhando a posição dos cardeais em relação à bênção de casais do mesmo sexo, à ordenação de mulheres diaconisas e aos “acordos secretos Vaticano-China”.

O site é de grupos que se opõem profundamente ao pontificado de Francisco.

Seis anos antes, surgiu a informação de que um grupo nos Estados Unidos buscava mais de US$ 1 milhão para compilar dossiês sobre candidatos, na tentativa de evitar uma repetição do conclave que elegeu Francisco.

Quando integrantes desse grupo, “The Red Hat Report”, apresentaram o projeto, o retrataram como uma tentativa de melhorar a governança e a responsabilização dentro da Igreja.

Eles avaliaram que “talvez não tivéssemos tido o Papa Francisco” se o projeto existisse na época de seu conclave.

Durante vários anos antes da morte do papa, os opositores ao seu governo discutiam como influenciar o próximo conclave.

Em 2020, foram publicados dois livros, ambos intitulados “O Próximo Papa” e escritos pr autores conhecidos por serem críticos de Francisco.

Um deles chegou a ser divulgado entre seus pares por Dolan, o cardeal americano, apesar de as leis da Igreja que determinam que prelados — autoridades eclesiásticas –não devem discutir publicamente possíveis candidatos papais.

Uma força motriz por trás de algumas das manobras pré-conclave foi Pell, que tinha uma rede formidável de contatos e era politicamente habilidoso: o prelado australiano teria apoiado o cardeal húngaro conservador Péter Erdő como candidato.

Após sua condenação por abuso sexual infantil ser anulada pelo Supremo Tribunal da Austrália, Pell retornou a Roma e assumiu um papel ativo na preparação do próximo conclave.

No entanto, a morte de Pell em janeiro de 2023, aos 81 anos, deixou a oposição a Francisco sem um líder claro.

Linhas divisórias no conclave

Quando os cardeais decidirem quem deve ser eleito papa, vários fatores serão levados em consideração.

Uma possível linha divisória pode surgir em relação à decisão do papa de permitir bênçãos entre pessoas do mesmo sexo, com vários bispos da África e do Leste Europeu resistindo fortemente a essa medida.

Ainda não é certo se os cardeais africanos e do Leste Europeu votariam em bloco em um candidato que simpatize com suas opiniões sobre o tema.

A escolha de cardeais de partes muito diferentes do mundo por Francisco significa que alguns dos eleitores não se conhecem muito bem.

Alguns também não falam italiano, a língua oficial do Vaticano (embora inglês e espanhol sejam amplamente utilizadas).

Isso daria uma vantagem a qualquer candidato que tenha conhecido bem os cardeais e tenha um papel em convocá-los ou liderá-los durante o período pré-conclave.

Em 2005, a orientação do então cardeal Joseph Ratzinger nas reuniões pré-conclave, suas habilidades linguísticas e a homilia que ele pregou em uma missa antes da votação desempenharam um papel fundamental em sua eleição como Papa Bento XVI.

Após o pontificado repleto de ação de Francisco, pode haver outros cardeais que, embora apoiem o falecido papa, queiram alguém que seja menos um ‘criador de notícias” e um disruptor. Eles podem optar por alguém discreto.

No entanto, parece provável que, seja quem for escolhido como papa, os católicos em todo o mundo esperam que continue com as grandes reformas iniciadas por Francisco e que tente “institucionalizar” as mudanças que ele pediu na Igreja Católica.

Mas não subestime a determinação daqueles que buscam encontrar alguma maneira de frear o projeto de Francisco.

Este conteúdo foi originalmente publicado em Análise: Cardeais se preparam para disputa pelo futuro da Igreja Católica no site CNN Brasil.

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