SC aceita laudo com informações falsas de construtora e juiz libera obra barrada pelo Ibama

Uma área de vegetação costeira protegida por lei começou a ser destruída para dar lugar a um empreendimento de luxo de um político à beira-mar de Governador Celso Ramos, a 55 quilômetros de Florianópolis, no litoral de Santa Catarina. Isso só está acontecendo porque o órgão licenciador estadual, o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina, IMA, liberou a obra com base apenas em informações falsas dadas pela construtora. O Ibama até identificou a manobra, mas uma decisão judicial ignorou o alerta e liberou o desmatamento.

Em um terreno de 24 hectares, equivalente a 24 campos de futebol, a construtora Terraza pretende erguer um condomínio para até 17 mil moradores – o que dobraria a população atual da cidade. No caminho do projeto, entretanto, estão pelo menos 13,46 hectares de área de restinga protegidos pela Lei da Mata Atlântica, corpos hídricos e dunas consideradas Áreas de Preservação Permanente, APPs.

Segundo o Ibama, para viabilizar a obra e conseguir o licenciamento ambiental, a empresa teria falsificado e omitido informações nos documentos enviados ao IMA. As informações irregulares teriam sido incluídas em laudo elaborado pela MPB Engenharia, que prestou assessoria ambiental à construtora Terraza, e apresentadas ao IMA.

A licença emitida pelo IMA se baseou em um único parecer assinado por um servidor que, no fim do documento, se exime de qualquer responsabilidade sobre as informações fornecidas pela própria empresa.

A construtora teria alterado as características verdadeiras do tipo de vegetação para diminuir a proteção ambiental e ampliar o desmatamento, ações consideradas graves pelo órgão licenciador federal. Os danos, alega o Ibama em laudo técnico, podem ser irreversíveis, o que gerou a determinação de embargo da obra em março deste ano.

Mas no dia 10 de abril, o juiz federal substituto Charles Jacob Giacomini, da 6ª Vara Federal de Florianópolis, reverteu a decisão e liberou o corte da restinga. Em 30 de abril, a empresa instalou as placas divulgando a autorização de corte e começou a intervenção no terreno.

Vista do mirante da cidade mostra a área pretendida pelo empreendimento, entre a Praia da Camboa (abaixo) e a Praia Grande (acima); ao fundo, a Ilha do Arvoredo (Foto: Nilson Coelho/Intercept) 

A área onde será construído o condomínio pertence à empresa Praia Grande Comércio de Imóveis Ltda, controlada por membros da família do ex-vice-prefeito de Governador Celso Ramos, Augusto Aristo da Silva, o Guto, filiado na época ao DEM (atual União Brasil), e que ocupou o cargo entre 2013 e 2020. Foi justamente durante seu segundo mandato, entre 2017 e 2020, que a legislação urbanística do município foi alterada: a área, antes classificada como Área de Preservação Limitada, APL, passou a ser considerada Área Residencial, AR, o que abriu caminho para os projetos da família do político.

Ainda no exercício do cargo, em 2018, a imobiliária da família Aristo assinou um contrato de parceria com a Terraza Empreendimentos Ltda, formalizando o plano para o loteamento da área. Em 2021, foi criada a Litoral Terraza Urbanismo SPE Ltda, uma sociedade de propósito específico voltada exclusivamente para viabilizar o condomínio.

Compõem o quadro societário dessa SPE a empresa da família do ex-vice-prefeito, a Terraza, e a PPT Administradora Ltda, de Paulo José Aragão, que também é sócio da MPB Engenharia, a empresa responsável pelo estudo ambiental considerado fraudulento pelo Ibama. Além disso, em 2020, a MPB foi contratada pela própria prefeitura de Governador Celso Ramos para conduzir os estudos para revisão do Plano Diretor, que ampliou ainda mais o potencial construtivo naquela área.

Estratégias usadas para diminuir a proteção ambiental e aumentar a área de desmatamento

O laudo técnico do Ibama é taxativo ao afirmar que a autorização de corte foi emitida com base em dados manipulados, com a clara intenção de flexibilizar a legislação ambiental, pois, ao alterar o tipo e o estágio de regeneração da restinga, aumentou a área com autorização de corte e diminuiu as partes que deveriam ser preservadas.

Para fazer isso, a empresa teria usado vários artifícios. Primeiro, teria substituído termos para mudar o tipo de vegetação existente no local. Numa das áreas, com 5,8 hectares, a vegetação foi classificada como “restinga arbórea em estágio inicial de regeneração”, quando se tratava de restinga arbustiva em estágio avançado. Por causa dessa alteração, a área em questão deixou de ser protegida pela Lei da Mata Atlântica.

Em outro trecho, 10,4 hectares foram descritos com uma classificação que buscava autorizar o corte de vegetação de restinga arbórea primária, o que é proibido pela lei.

Outra irregularidade grave seria a omissão de APPs, incluindo cursos d’água naturais e lagoas entre as dunas. A empresa também teria, segundo o Ibama, tentado camuflar ecossistemas protegidos usando rótulos genéricos como “solo exposto”.

O estudo geológico contratado pela empresa chega a concluir que a área não tem dunas. Mas a vistoria do Ibama, corroborada por imagens de satélite e pelas vistorias realizadas pelo Ministério Público de Santa Catarina, o MPSC, identificou dunas “bem evidentes”.

O laudo técnico ainda revela a omissão de uma nascente perene identificada por GPS — deliberadamente ignorada — e um curso d’água com volume considerável, que também não aparece em nenhum mapa do estudo de impacto.

Na manhã do dia 30 de abril, um trator abriu caminho iniciando a destruição da restinga. (Foto: Divulgação)

Segundo o Ibama, a falta dessas informações compromete toda a área do condomínio, não apenas os hectares adicionados por causa da omissão. O órgão estima que pelo menos 50% de todo o território não poderia ser desmatado e ocupado em hipótese alguma.

A equipe técnica do Ibama concluiu o laudo recomendando a revisão imediata do licenciamento por equipe multidisciplinar qualificada e a apuração de eventuais crimes ambientais. 

Laudos da Polícia Militar Ambiental, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, e do próprio MPSC apontaram as mesmas irregularidades identificadas pelo Ibama.

Entramos em contato com o IMA para saber quais atitudes o órgão havia tomado em relação ao laudo do Ibama. Apesar de afirmar em nota que atua com “rigor técnico”, “imparcialidade” e “respeito ao meio ambiente”, o IMA não explicou por que ignorou pareceres que apontavam irregularidades graves no empreendimento – nem por que se baseou exclusivamente nos estudos apresentados pela própria construtora para liberar o desmatamento e a licença da obra. 

Segundo o órgão, “a licença foi analisada tecnicamente à luz das informações apresentadas, sendo que os processos de licenciamento ambiental que tramitam no órgão seguem rigorosamente a legislação ambiental vigente”.

Sobre as denúncias, afirmou que está apurando as informações e dando ao empreendedor direito ao contraditório.

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Denúncias e pronunciamentos contra a obra começaram há seis anos

A Fundação de Meio Ambiente de Governador Celso Ramos, a Famgov, se manifestou contra o empreendimento, ainda em 2019, quando indeferiu uma consulta de viabilidade para implantação de um loteamento no local. 

Em junho de 2023, denúncias de irregularidades foram feitas pela Associação dos Moradores do Balneário Caravelas ao MPSC, apontando que o projeto previa desmatamento ilegal da área de restinga. 

Tão logo recebeu a denúncia, em novembro de 2023, a 2ª Promotoria de Justiça da Comarca de Biguaçu começou a investigar o caso. 

Foram solicitadas duas vistorias ao Centro de Apoio Técnico e Operacional, o CAT, do MPSC, que confirmaram a existência de várias irregularidades nas licenças ambientais e na autorização de corte emitida pelo IMA. 

Após quase um ano de investigação, o MPSC entrou com ação civil pública contra a construtora Terraza e o IMA, em 20 de setembro do ano passado, solicitando a suspensão de todas as licenças ambientais e da autorização de corte até que as irregularidades ambientais fossem resolvidas. Para o Ministério Público, “as áreas foram absurdamente manipuladas para possibilitar o empreendimento”. 

Mapa da MPB elaborado para construtora Terraza mostra vegetação por baixo de área marcada como solo exposto (em marrom claro). (Foto: Reprodução/Ibama)

Na ação civil pública, o MPSC classifica a postura do IMA como de “total irresponsabilidade”. Para a 2ª Promotoria de Justiça de Biguaçu, o IMA em sua defesa não fornece elementos concretos que demonstrem a regularidade do condomínio.

Questionada sobre o fato, a 2ª Promotoria disse, em nota, que encaminhou uma notícia de fato criminal para a Delegacia de Investigação de Crimes Ambientais e Crimes contra as Relações de Consumo, da Diretoria Estadual de Investigação Criminal, na cidade de São José, para abrir uma investigação criminal, além da administrativa já em curso. 

Em setembro de 2024, o condomínio teve o licenciamento suspenso a pedido da 2ª Promotoria. Mas, em 27 de fevereiro deste ano, a decisão foi derrubada pela 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. O MPSC recorreu, mas o recurso ainda não foi julgado.

Foi quando o Ibama entrou no caso e interveio, com base no artigo 17 da Lei Complementar 140/2011, que autoriza a atuação federal quando há risco iminente de degradação ambiental, e proibiu a obra no dia 11 de março de 2025. Mas, no dia 26 do mesmo mês, a empresa recorreu à Justiça Federal pedindo a anulação da medida. 

Menos de duas semanas depois, o juiz Giacomini atendeu ao pedido sem ouvir as contrarrazões do Ibama. O magistrado decidiu acatar o argumento da construtora de que o embargo do Ibama causava “prejuízos econômicos” e impedia o início das obras. Em sua decisão, ele afirma que o órgão federal “excedeu sua competência”, uma vez que o licenciamento havia sido aprovado pelo órgão estadual. 

Giacomini também minimiza os impactos ambientais apontados, sustentando que o condomínio foi “regularmente licenciado”. Enquanto isso, o MPSC classifica o caso como “um dos mais graves” já recebidos, pela quantidade “de equívocos, omissões e negligências”.

O Intercept Brasil procurou o juiz federal substituto Charles Jacob Giacomini, mas ele disse que não vai se manifestar sobre o caso.

A MPB Engenharia, do empresário Paulo José Aragão, não retornou os pedidos de entrevista.

Enviamos também questionamentos para a Terraza, mas a construtora afirmou que “o empreendimento foi aprovado pelas autoridades competentes” e se recusou a responder as demais perguntas da reportagem. 

Tentamos contato com o ex-vice prefeito Augusto Aristo da Silva, que é sócio do empreendimento, mas não conseguimos contato com o político.

O Ibama recorreu da decisão judicial e cobrou, novamente, a suspensão do empreendimento até que haja revisão do licenciamento do IMA. O recurso ainda não foi julgado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região. 

Em nota, o instituto informou que enviou ofícios ao IMA em dois momentos, mas não obteve resposta. Primeiro, em 20 de março deste ano, depois em 14 de abril. 

Em nota, o Ibama respondeu que “a eventual responsabilização dos envolvidos será avaliada oportunamente, conforme a evolução dos fatos e nos termos da legislação vigente”. 

Segundo os técnicos do CAT/MPSC, árvores de 10 metros de altura foram incluídas no licenciamento com a metade do tamanho. (Foto: Nilson Coelho/Intercept)

A restinga primária, um dos tipos de vegetação neste local, é um ecossistema de extrema fragilidade, protegido pelo Código Florestal e pela Lei da Mata Atlântica, cuja supressão pode levar à erosão costeira acelerada; perda de habitat de espécies ameaçadas; e aumento do risco de alagamentos em áreas urbanas.

Segundo o Ibama, a autorização de corte obtida configura infração gravíssima prevista na Lei de Crimes Ambientais, pelo uso de informações falsas ou enganosas, com penas que podem chegar a seis anos de prisão e multa.

Para o órgão, a liberação da supressão de restinga em estágio primário pode abrir um precedente perigoso em outras áreas sensíveis do litoral brasileiro. 

Enquanto as justiças estadual e federal não julgam o caso, tratores já entraram no terreno, onde está uma das poucas porções de restinga bem preservadas no entorno da Grande Florianópolis.

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