Ratinho Junior atropela lei ambiental e comunidades para criar super rota para jet skis e iates entre PR e SP

O governador do Paraná, Ratinho Junior, do PSD, quer criar uma rota marítima ligando o litoral paranaense a São Paulo para expandir o turismo náutico de luxo enquanto passa por cima de leis ambientais e ignora comunidades tradicionais. 

O Intercept Brasil teve acesso ao projeto da BR do Mar de Ratinho, que tem como principal foco o Canal do Varadouro, hidrovia aberta artificialmente no século 19 e depois preterida em nome do transporte rodoviário. O plano, que o próprio governador admite ter sido idealizado com a ajuda de um empresário milionário do setor náutico, já está na mira do Ministério Público Federal, o MPF, que abriu um inquérito para investigar o caso.

A ideia da BR do Mar foi comentada por Ratinho Junior — sem muitos detalhes — em setembro de 2024, durante o 9º Congresso Internacional Náutica, parte da programação da São Paulo Boat Show, considerada a maior feira náutica da América Latina. 

Ao discursar, o governador disse que o plano começou a ser cogitado ainda em 2023 e que o empresário Ernani Paciornik “foi um dos que nos ajudou a pensar isso”. Paciornik é CEO do Grupo Náutica, que promove a São Paulo Boat Show, e pode ser beneficiado diretamente pela BR do Mar.

O que Ratinho não falou no evento é que o projeto já estava em andamento há meses, com investimento milionário. Em março de 2023, os governos do Paraná e de São Paulo firmaram um protocolo de intenções visando “fomentar o turismo regional no Canal do Varadouro”.

Governador do Paraná, Ratinho Junior, apresentou projeto do Canal do Varadouro em evento náutico em setembro de 2024. Na foto, ele aparece ao lado do então secretário de Turismo, Marcio Nunes, e do empresário Ernani Paciornik (Foto Jonathan Campos/AEN/Divulgação)
Governador do Paraná, Ratinho Junior, apresentou projeto do Canal do Varadouro em evento náutico em setembro de 2024. Na foto, ele aparece ao lado do então secretário de Turismo, Marcio Nunes, e do empresário Ernani Paciornik (Foto Jonathan Campos/AEN/Divulgação)

Seis meses depois, em setembro, o estado do Paraná assinou um contrato e um aditivo que somam mais de R$ 3,6 milhões, com dispensa de licitação, para a elaboração de anteprojetos e do Relatório de Controle Ambiental, RCA, das obras e serviços de dragagem e apoio ao turismo para a futura BR do Mar. 

O termo foi firmado pela Paraná Projetos, empresa paraestatal criada em 1998 e financiada por verba pública do governo do Paraná, e a Universidade Livre do Meio Ambiente, a Unilivre — que, apesar do nome, não é uma universidade, mas uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos que atua em meio ambiente e planejamento urbano.

Mas, conforme documentos obtidos pelo Intercept, estudos de solo foram realizados na região do Canal do Varadouro antes mesmo de o contrato para elaborar o anteprojeto ter sido firmado e, em desrespeito à lei, sem qualquer aviso ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, órgão federal que administra o Parque Nacional do Superagui – isso deveria ter sido feito porque parte da obra passa por esta área protegida.

A informação também consta em ofício enviado em janeiro de 2024 pelo MPF ao Instituto Água e Terra, o IAT, órgão responsável pelas licenças ambientais no estado do Paraná, que cita “a existência de intervenções ligadas a um possível licenciamento do Canal do Varadouro, que não foi submetido ao ICMBio”.

Ao responder esse ofício em 6 de março de 2024, o IAT disse que não havia “procedimento administrativo de licenciamento ambiental para o objeto em questão”, embora o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, tenha informado ao MPF que, em 19 de setembro de 2023, o próprio IAT havia solicitado uma licença ambiental para a dragagem do Canal do Varadouro e Sebuí. 

O Ibama foi contatado pelo MPF porque é o órgão responsável por conceder licença para intervenções, estudos ou obras, entre outros casos, quando há impacto em áreas de proteção ambiental federais. Procurado pelo Intercept, o instituto pontuou que “a realização de atividades ou empreendimentos de significativo impacto dentro de unidades de conservação federal” só pode ser feita se houver autorização do órgão gestor da unidade – que, neste caso, é o ICMBio.

Segundo o Ibama, para uma atividade de “significativo impacto ambiental” há necessidade de apresentação de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental, o EIA/RIMA – o que é diferente do Relatório de Controle Ambiental, RCA, contratado pela Paraná Projetos junto à Unilivre. “Estudos ambientais simplificados são previstos para licenciamento onde os impactos da atividade ou empreendimento são considerados não significativos e não preveem a realização de audiência pública”, explicou o instituto.

Já o ICMBio informou ao Intercept que “tomou conhecimento de pesquisa realizada no canal do Varadouro e imediatamente alertou o empreendedor que as atividades só poderiam ser feitas com autorização do órgão licenciador, solicitando a suspensão das atividades”.

Projeto prevê que BR do Mar passe por região do Parque Nacional do Superagui, que é administrado pelo ICMBio (Foto: Eduardo Manfré/Intercept)
Projeto prevê que BR do Mar passe por região do Parque Nacional do Superagui, que é administrado pelo ICMBio (Foto: Eduardo Manfré/Intercept)

Foi justamente a realização de estudos em uma área federal protegida sem consulta prévia aos órgãos responsáveis que fez o projeto da BR do Mar entrar na mira do MPF, que abriu inquérito para investigar o caso em julho de 2024 – e ainda não concluiu.

A procuradora Monique Cheker, responsável pelo inquérito, reiterou em entrevista ao Intercept que “quaisquer atividades dentro de um Parque Nacional, mesmo que sejam atividades de simples pesquisa” necessitam da autorização do ICMBio.

Não é a primeira vez que obras do governo Ratinho Junior no litoral paranaense chamam a atenção do MPF. Já há um processo correndo na Justiça Federal sobre a engorda da praia de Matinhos, em que pesam sobre agentes públicos estaduais denúncias de associação criminosa para liberação de licenciamento ambiental.   

Ao todo, segundo o projeto ao qual o Intercept teve acesso, a construção da BR do Mar está orçada entre R$ 34,6 milhões e R$ 36,9 milhões, a depender do cronograma para a dragagem, com duração prevista de 19 a 22 meses, e da instalação da sinalização com boias cegas ou luminosas.

Parques e reservas no caminho da BR do Mar

A área onde o governo Ratinho pretende fazer a BR do Mar é uma das mais preservadas do litoral brasileiro: a Mata Atlântica do Sudeste, salvaguardada pela Unesco desde 1999 como Patrimônio Natural da Humanidade. 

O projeto prevê que o trajeto passe pelos parques Nacional do Superagui (PR), Estadual da Ilha do Cardoso (SP), Estadual Lagamar de Cananéia (SP) e pela Reserva Extrativista Ilha do Tumba (SP), além de diversas unidades de conservação e áreas de proteção ambiental.

Região do Canal do Varadouro é cercada por áreas ambientais protegidas (Ilustração: Rodolfo Almeida)
Região do Canal do Varadouro é cercada por áreas ambientais protegidas (Ilustração: Rodolfo Almeida)

No local, vivem comunidades caiçaras, indígenas e quilombolas, e animais em risco de extinção, como a toninha, o mico-leão-da-cara-preta e o papagaio-da-cara-roxa. 

O discurso do governo paranaense é de que o projeto vai resultar em desenvolvimento econômico baseado no “turismo responsável”, mas os documentos do projeto mostram que o objetivo principal é a estruturação da região para o turismo náutico de luxo.

“Uma simples dragagem, não é nada absurdo, é uma coisa muito curta inclusive, é poucos metros”, disse Ratinho durante o 9º Congresso Internacional Náutica, quando anunciou a obra. 

Os números, entretanto, contradizem o governador. A estimativa do próprio governo do Paraná é que a dragagem no Varadouro vai tirar o equivalente a 390 mil m3 — 26 mil caminhões – de areia e sedimentos em 25 pontos ao longo do canal e descartar em três locais: Sebuí, Guapicum e Baía dos Pinheiros. 

Na contramão da percepção de Ratinho sobre os impactos da obra, a procuradora Monique Cheker, do MPF, destaca que toda dragagem causa danos ambientais. “Isso é inquestionável”, disse ela ao Intercept. “E, pela lei, não é possível ter esse tipo de atividade dentro de um Parque Nacional”, complementou.

Mapa mostra rota prevista da BR do Mar, locais de dragagem e áreas de despejo dos sedimentos (Ilustração: Rodolfo Almeida)
Mapa mostra rota prevista da BR do Mar, locais de dragagem e áreas de despejo dos sedimentos (Ilustração: Rodolfo Almeida)

A Baía dos Pinheiros é o ponto onde está previsto o maior depósito de sedimentos da dragagem: 340 mil m³. Os outros dois locais de descarte são áreas turísticas conhecidas e, portanto, já sofrem com especulação imobiliária no entorno do Parque Nacional do Superagui.  

Já no Canal do Sebuí, que tem extensão de 8,5 quilômetros, o anteprojeto prevê seis pontos de dragagem e retirada de uma quantidade equivalente a 1.644 caminhões de sedimentos. Vale destacar que o Sebuí não é essencial para o trajeto e se configura como um desvio na rota da BR do Mar. A área tem uma cachoeira já conhecida pelos turistas na região e, por estar fora do Parque Nacional do Superagui, já enfrenta o avanço de propriedades particulares nas áreas de proteção ambiental, reservas particulares e das comunidades tradicionais.   

O Canal do Varadouro já passou por dragagem no passado para ser uma ligação hidroviária entre os estados do Paraná e São Paulo, mas tornou-se obsoleto para o transporte de mercadorias e hoje é usado pelas comunidades tradicionais da região. O objetivo da nova dragagem é criar uma profundidade uniforme de 2,4 metros para viabilizar a navegação de embarcações de até 40 pés, que podem levar mais de 10 pessoas. 

O projeto do governo paranaense ainda inclui a instalação de 160 sinais náuticos ao longo da BR do Mar e a criação de estruturas de atracagem para tripulantes e turistas. Não há, porém, no projeto ao qual o Intercept teve acesso, indicação ou estudo sobre as consequências do aumento do fluxo de embarcações na região nem de quem fará a fiscalização — ao navegarmos pela área, encontramos só um ponto de fiscalização no trajeto Paranaguá-Varadouro, à beira do Porto de Paranaguá.  

Também verificamos na visita que a região sequer tem infraestrutura básica. Nove das 18 comunidades no entorno do Parque Nacional do Superagui não têm acesso nem mesmo à energia elétrica. Além disso, muitas pessoas vivem sem fossas sépticas e outras enfrentam acesso precário à água potável.

Nove das 18 comunidades no entorno do Parque Nacional do Superagui não têm acesso nem mesmo à energia elétrica (Foto: Eduardo Manfré/Intercept)
Nove das 18 comunidades no entorno do Parque Nacional do Superagui não têm acesso nem mesmo à energia elétrica (Foto: Eduardo Manfré/Intercept)

Vale destacar que a proposta de dragagem contempla benfeitorias em apenas seis comunidades, como a construção de novos trapiches e receptivos para turistas, estrutura batizada no projeto como “apoio náutico”. São elas: Vila do Superagui, Ilha das Peças, Sebuí, Guapicum, Barbados e Vila de Ararapira.

Nos dois pontos já tradicionais do turismo paranaense, Vila do Superagui e Ilha das Peças, estão previstas a construção de “apoios náuticos médios”, o que inclui três banheiros, ambulatório, duas áreas de conveniências, receptivo e trapiche, totalizando 506 m² de construção. 

Para Sebuí, Guapicum e Barbados, a previsão é haver “apoios náuticos pequenos”: trapiche, receptivo, dois banheiros, ambulatório e uma conveniência, com 372 m² de construção. Guapicum, que já tem bares e restaurantes, é conhecido por receber turistas em barcos particulares ou  jet skis – entre os frequentadores ilustres, está o próprio Ratinho Junior. Já na Vila de Ararapira, está previsto construir um trapiche. 

Da falta de estrutura nas comunidades à  jetskiata do secretário

Durval Martins mora há 35 anos na Vila Fátima, uma comunidade localizada onde se afunila o Canal do Varadouro. O bar dele é um dos pontos mais estruturados da região, apesar disso não é destino dos barcos de luxo e jet skis que navegam por lá. “Ninguém para. Esses barcos grandes já tem o destino deles, né?”, diz o comerciante. 

Martins, que tem 67 anos, convive apenas com as consequências da presença dos barcos grandes, além do barulho provocado pelos jet skis que costumam circular em grupo na região. “Meu comércio aqui atende meus amigos, que chegam de barco. Mas são barcos pequenos, pescadores que vêm de São Paulo. Eles respeitam, chegam devagar, comem e bebem. Agora esses barcos grandes dão prejuízo, eles não respeitam ninguém”, desabafa. 

Os moradores da região revelam ter percebido um aumento no número e frequência dos jet skis, que antes eram vistos apenas nos fins de semana. A exemplo dos motoclubes, eles andam em comboios e são chamados de jeteiros. Um desses jeteiros que circula pela região é o atual secretário de Agricultura e Abastecimento do Paraná, o deputado estadual Marcio Nunes, do PSD. 

Marcio Nunes postou vídeo nas redes sociais, enquanto era secretário de Turismo de Ratinho, relacionando passeios de jet skis e projeto no Canal do Varadouro (Foto: Instagram/Reprodução)
Marcio Nunes postou vídeo nas redes sociais, enquanto era secretário de Turismo de Ratinho, relacionando passeios de jet skis e projeto no Canal do Varadouro (Foto: Instagram/Reprodução)

Em uma publicação em seu perfil do Instagram, em 30 de dezembro de 2023 quando ainda comandava a Secretaria de Turismo do estado, Nunes registrou uma incursão ao Canal do Varadouro. No vídeo, ele destaca o projeto do governo Ratinho Junior e anuncia uma espécie de jetskiata, reunindo ao menos 100 jet skis. 

Nunes ainda diz que o governador avançou com a obra porque está “pensando no futuro” e que um dos benefícios dela é que as comunidades tradicionais poderão “vender sua cultura”.

Antes de comandar a Agricultura no governo Ratinho Junior, Nunes já chefiou a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Sustentável, que na época também aglutinava a área de Turismo, em um arranjo executado pelo governador quando assumiu o primeiro mandato e extinguiu a Secretaria do Meio Ambiente. Depois disso, comandou a Secretaria de Turismo, que deixou em março deste ano para assumir a Agricultura.

Perguntamos a Nunes sobre a sua participação no projeto do Canal do Varadouro e em passeios de jet skis na região, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.

O barulho frequente e a circulação dos veículos náuticos não são a única consequência que preocupa as comunidades. Martins contou ao Intercept que também precisa conviver com a erosão provocada pela intensa movimentação perto dos bancos de areia. 

Há dois anos, o comerciante ergueu uma estrutura de contenção e concreto para proteger o negócio, mas já está tudo no chão. “O pessoal veio aqui me falar sobre esse projeto. Eu disse que não sou contra, mas não sei se para mim é bom”, pondera. 

Na visita que fizemos às comunidades da região, a população evita comentar sobre o projeto por medo de retaliação. Sob reserva e com a garantia de que não seriam identificados, alguns moradores relataram que o receio existe porque o projeto envolve interesses particulares de figuras ligadas ao governo estadual ou de grande poder financeiro e político. 

Durval Martins, que vive há 35 anos na região, é dono de um bar em Vila Fátima, comunidade localizada onde se afunila o Canal do Varadouro (Foto: Eduardo Manfré/Intercept)
Durval Martins, que vive há 35 anos na região, é dono de um bar em Vila Fátima, comunidade localizada onde se afunila o Canal do Varadouro (Foto: Eduardo Manfré/Intercept)

Para Martins, morador da Vila Fátima, cada comunidade será impactada de forma diferente. “Depende do que vão fazer. Nas comunidades como aqui, Vila Fátima, Tibicanga e Ararapira Velha, que são encostados, que são barrancos, se começar a passar barco grande, vai acabar com tudo”, afirma. 

Sem consulta aos moradores nem licença ambiental

Até agora, o projeto da BR do Mar do governo Ratinho Junior tem ignorado a opinião das comunidades tradicionais. Afinal, não houve nenhuma consulta prévia formal aos moradores das regiões do Varadouro nem do Sebuí, onde há a previsão de fazer dragagem e descarte do material dragado, nem de todas as 18 comunidades afetadas pelas obras.

A informação consta no inquérito do MPF. Segundo o documento, o IAT não abriu qualquer consulta prévia formal até meados de 2024 para ouvir os moradores. Essa consulta é prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, da qual o Brasil é signatário, e garante o direito de comunidades tradicionais e povos indígenas serem ouvidos sobre obra ou projeto que as impacte.

As consultas públicas formais às comunidades tradicionais também estão previstas, segundo o Ibama, na Resolução 09/1987 do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama. O MPF ainda enfatizou, em resposta ao Intercept, que a Portaria Interministerial 60/2015 “estabelece a presunção de impacto em comunidades tradicionais dentro de um raio de 8 km para empreendimentos portuários”, definindo assim quais comunidades devem ser ouvidas “em procedimento próprio”.

Em 20 de setembro de 2024, a procuradora do MPF Monique Cheker enviou ofício para diversos órgãos e instituições estaduais e federais com o objetivo de promover uma apresentação formal do projeto. 

A reunião ocorreu em 30 de outubro, em Paranaguá. Participaram representantes de ICMBio, Ibama, IAT, secretarias do governo do Paraná e equipe técnica do projeto, entre outros, mas as comunidades tradicionais não estiveram presentes – uma das razões foi a desconfiança de que o encontro pudesse configurar como se tivessem sido ouvidas e dessem aval para o desenvolvimento do projeto.

Segundo a procuradora Monique Cheker, foi nesta reunião em Paranaguá que ficou esclarecido que “a maior parte das dragagens” estava prevista para ocorrer dentro do Parque Nacional do Superagui, “o que não é permitido por lei”.

Além disso, relatos e documentos aos quais o Intercept teve acesso revelam que houve uma abordagem casual das comunidades, por técnicos da Unilivre, ainda durante a elaboração do anteprojeto de dragagem do Canal do Varadouro. Fontes e documentos consultados  pela reportagem apontam que um dos responsáveis por isso foi Fernando Silveira Augusto Armani, conhecido como professor Armani.

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Armani é citado como integrante da equipe técnica do projeto em um documento com timbre da Paraná Projetos e da Unilivre apresentado pelo IAT ao MPF no inquérito que investiga o caso. Relatos feitos ao Intercept apontam que ele teria anunciado o projeto de maneira individual e sugerido aos moradores que, junto com a dragagem, uma série de benfeitorias seria feita nas comunidades, como reforma de escolas e unidades de saúde – que não constam na proposta.

Armani também teria ido até São Paulo e entregado um documento para lideranças da comunidade do Marujá, na Ilha do Cardoso, de acordo com os relatos ouvidos pela reportagem. O papel timbrado pela Paraná Projetos e Unilivre afirma que a equipe técnica estava interessada em entender se a comunidade queria o “turismo sustentável” na região — mas sem citar a BR do Mar nem a dragagem do Canal do Varadouro. 

Segundo apurado pelo Intercept, o contato foi realizado em janeiro de 2024, e a comunidade não aceitou a proposta. A abordagem de Armani com as comunidades também foi registrada na ata de uma reunião ocorrida na Defensoria Pública do Paraná, em maio de 2024. A ata cita, por exemplo, a “participação do professor Armani nas comunidades, causando desinformação acerca dos projetos a serem implementados”. 

A ação fora dos padrões junto à comunidade do Marujá foi confirmada pelo defensor público do estado de São Paulo, Andrew Toshio Hayama, que atua na defesa de povos e comunidades tradicionais na região do Vale do Ribeira. Ele diz que os moradores ficaram sabendo do projeto pela imprensa e que “não houve procura oficial e formal”.

O Intercept entrou em contato com lideranças da Ilha do Cardoso, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. Procuramos o professor Armani para comentar sobre os relatos e a menção na ata da reunião, mas não houve resposta. O espaço segue aberto. 

Perguntamos à Paraná Projetos sobre sua participação na criação da BR do Mar, o contrato para elaboração do anteprojeto de dragagem no Canal do Varadouro, os critérios que embasaram a decisão de um RCA em vez de um EIA/RIMA para medir os impactos ambientais da obra, bem como a atuação da empresa na consulta informal a comunidades tradicionais. Não houve retorno até a publicação da reportagem. O espaço também segue aberto.

Também questionamos a Unilivre sobre sua participação no projeto da BR do Mar, incluindo por que foram feitos estudos em uma área federal protegida sem autorização prévia do ICMBio, qual o estágio de execução do contrato firmado com a Paraná Projetos, que critérios foram utilizados para medir o impacto ambiental na região do Canal do Varadouro, como se deu a atuação de colaboradores em consultas a comunidades tradicionais e qual é a experiência da Unilivre com estudos, pesquisas ou projetos em áreas litorâneas, especificamente dragagem.

Em nota, a Unilivre afirmou que não poderia comentar sobre o acordo firmado com a Paraná Projetos porque “determinadas informações se encontram resguardadas por cláusulas de confidencialidade contratual” e pela Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD.

Sobre a abordagem junto a lideranças no entorno do Parque Nacional do Superagui, a Unilivre ressaltou que “audiências públicas, com exposição de cada projeto são periodicamente realizadas mediante chamamento público” e que “reuniões participativas e consultas são realizadas com as comunidades potencialmente afetadas com eventuais futuras intervenções”.

Mentor da obra comanda rede de empresas do setor náutico 

Citado por Ratinho Junior como “um dos que nos ajudou a pensar” o projeto da BR do Mar, Ernani Paciornik era não só um empresário presente no Congresso Internacional Náutica, mas o anfitrião do evento. O congresso, inclusive, leva este nome por ser idealizado pelo Grupo Náutica, cujo CEO é Paciornik. 

Ratinho Junior disse que Ernani Paciornki foi “um dos que nos ajudou a pensar” o projeto da BR do Mar (Foto: Instagram/Reprodução)
Ratinho Junior disse que Ernani Paciornki foi “um dos que nos ajudou a pensar” o projeto da BR do Mar (Foto: Instagram/Reprodução)

Além disso, a edição de 2024 realizada em Foz do Iguaçu teve como co-realizador o próprio IAT, que é responsável pelos licenciamentos ambientais no Paraná e tem papel decisivo no andamento da BR do Mar, pois consta como o próprio “empreendedor” da obra de dragagem em documento enviado ao Ibama ainda em 2023.

Paciornik é um curitibano que nasceu em uma família tradicional da capital. Seu pai é Moysés Paciornik, médico ginecologista que, em 1959, fundou o Centro Paranaense de Pesquisas Médicas. 

O empresário é presidente e CEO de companhias que atuam em um leque de segmentos do setor náutico. Além disso, seu grupo também opera em obras públicas no litoral de vários estados, incluindo o Paraná. Isso torna, naturalmente, suas empresas candidatas a assumir contratos que envolvam a infraestrutura náutica para consolidar a BR do Mar.

“As pessoas vão vir de fora para navegar no local, por causa dos atrativos turísticos que existem na região. Tenho certeza que vamos ter uma segunda Foz do Iguaçu no estado. A Mata Atlântica, entre Cananéia, Guaraqueçaba e Antonina, é um grande potencial para o turismo mundial”, afirmou Paciornik durante o congresso. 

Não é por acaso que Paciornik tem atuado como mentor e uma espécie de garoto propaganda da BR do Mar. O turismo defendido pelo empresário é o de barcos de luxo. Nos Boat Shows, organizados pelo Grupo Náutica, são lançadas embarcações como a Intermarine 60, uma lancha que custa R$ 5,2 milhões, e o Azimut Fly 56, um iate italiano que não sai por menos de R$ 15 milhões. 

No ano passado, o Grupo Náutica vendeu mais de 1 mil barcos, um aumento de 20% em relação ao ano anterior. E os Boat Shows foram responsáveis por mais de 70% dos negócios náuticos realizados no Brasil. 

Os Boat Shows já fecharam contratos com governos estaduais e o federal para locação de espaço utilizado por secretarias e o Ministério do Turismo. Em 2022, por exemplo, o governo de Jair Bolsonaro pagou R$ 1,6 milhão para participar do São Paulo Boat Show e do Rio Boat Show. 

Governador do Paraná, Ratinho Junior, apresentou projeto do Canal do Varadouro em evento náutico em setembro de 2024 (Foto Jonathan Campos/AEN/Divulgação)
Governador do Paraná, Ratinho Junior, apresentou projeto do Canal do Varadouro em evento náutico realizado por grupo empresarial cujo CEO é Paciornik (Foto Jonathan Campos/AEN/Divulgação)

As empresas ligadas a Paciornik também já firmaram acordos com governos estaduais e municipais. A Metalu Brasil, por exemplo, implementou estruturas de apoio ao turismo náutico em 13 municípios do interior paulista, por meio de investimentos do governo paulista no setor de turismo náutico.

No Paraná, a Metalu de Paciornik construiu um píer às margens da baía de Guaratuba, no litoral paranaense. Já a Grupo 1 Comunicação e Infraestrutura, que também tem Paciornik como sócio, firmou contrato em 2024 com a Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina para revitalizar uma marina em uma área de 250 mil m2.

A empresa de Paciornik pagará, durante 20 anos, R$ 70 mil por mês para explorar financeiramente a estrutura depois da revitalização e poderá lucrar alugando vagas para embarcações de diferentes tamanhos. 

Paciornik trafega bem pelo governo, a ponto de integrar a comitiva de Ratinho Junior no evento Paraná em Foco e até compartilhar fotos que ele mesmo tirou para serem publicadas no site do governo do Paraná. O empresário também já defendeu o setor náutico em visita ao ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2019.

Questionamos Paciornik sobre sua participação na criação da BR do Mar e eventuais benefícios que o projeto pode trazer às suas empresas. Ele disse apenas, em nota enviada por sua assessoria de imprensa, que não há qualquer envolvimento de suas empresas em relação à obra de dragagem do Canal do Varadouro. 

Segundo o texto, “as referências feitas ao tema ocorreram exclusivamente em espaços públicos e dentro de debates mais amplos sobre o setor, especificamente no Congresso Internacional Náutica, que é um fórum plural, voltado ao intercâmbio de ideias para o fortalecimento do turismo náutico no Brasil”.

Orçamento milionário e incertezas no horizonte

No Plano de Contratações Anual do IAT para 2025 está prevista uma verba de R$ 50 milhões para a “contratação dos estudos e obras para desassoreamento e recuperação do Canal Varadouro”. A descrição cita que o valor será utilizado para proporcionar “melhorias nas condições de navegabilidade e fomentando o turismo no local”.

A previsão foi feita, entretanto, sem que houvesse aprovação do licenciamento ambiental para as obras. Pelo contrário, foi feita mesmo após o Ibama ter informado ao IAT, ainda em 2024, que a licença para a dragagem dos canais do Varadouro e do Sebuí não seria concedida.

É o que mostra um ofício assinado em 17 de dezembro de 2024 pelo então diretor substituto de licenciamento ambiental do Ibama, Liceros Alves dos Reis, ao diretor-presidente do IAT, José Luiz Scroccaro – atualmente, Scroccaro é diretor de saneamento ambiental e recursos hídricos do IAT. No documento, Reis informa que o processo de licenciamento ambiental para dragagem do Varadouro “será encerrado”.

Reis cita que o ICMBio informou ao Ibama que, “após análise das complementações do projeto, permanece o impedimento legal e normativo para a execução de atividade no interior do Parque Nacional do Superagui”. Questionado sobre a possibilidade de o governo do Paraná abrir um novo processo de licenciamento do mesmo projeto, o Ibama disse ao Intercept que isso só é possível “em projetos negados por este tipo de interferência” se a localização for alterada. 

Vale ressaltar que o IAT já estava ciente de que precisava da licença de órgão federal — no caso, o Ibama — desde novembro de 2023, quando um parecer técnico do próprio Ibama pontuou que, pelo fato de o projeto ser realizado entre dois estados e por haver o registro de uma terra indígena (Cerco Grande) no entorno da obra, o órgão responsável por conceder o licenciamento deve ser federal.

Vista da ilha de Pinheiro, localizada na região do Canal do Varadouro (Foto: Eduardo Manfré/Intercept)
Vista da ilha de Pinheiro, localizada na região do Canal do Varadouro (Foto: Eduardo Manfré/Intercept)

A preocupação com a obra também chegou a São Paulo. A pedido do Ibama, a Fundação Florestal, ligada à Secretaria do Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística de SP, manifestou sua preocupação sobre os impactos na região. Em nota técnica de março de 2024, a entidade recomendou a realização de “estudos sobre os impactos potenciais elencados”, como o aumento no fluxo de embarcações, o risco de erosão, e possíveis efeitos na pesca artesanal e no turismo desenvolvido pelas comunidades tradicionais. A fundação ainda pontuou que “intervenções no Canal do Varadouro devem ser analisadas com muita cautela”.

Já no fim de 2024, o governo Ratinho Junior propôs e a Assembleia Legislativa do Paraná aprovou uma lei que estabelece um prazo máximo de 30 dias para uma manifestação “única e conclusiva” de órgãos federais, como o Ibama, no caso de licenciamentos ambientais.  

A legislação ainda prevê que, se não chegar no prazo determinado, a manifestação pode ser ignorada pelo órgão estadual ou municipal e “não implicará prejuízo ao andamento do processo de licenciamento ambiental”. A norma, porém, teve sua constitucionalidade questionada na Justiça, e o caso está sob análise do Supremo Tribunal Federal, o STF.

A Justiça também pode ser decisiva para o futuro da BR do Mar a depender das conclusões da investigação do MPF sobre o caso. Em resposta ao Intercept, a procuradora Monique Cheker confirmou que o inquérito será prorrogado, mas não detalhou por quanto tempo.

Ela ainda pontuou que “o simples fato de haver possibilidade de alterações dentro de um Parque Nacional já vincula a atribuição do licenciamento ao Ibama”. “Dessa forma, o órgão estadual ambiental (no caso, o IAT, no Paraná) não pode iniciar qualquer tipo de licenciamento dessa obra”, ressaltou. Cheker ainda disse que “é irrelevante que o licenciamento seja fatiado, no estado de SP ou no estado do Paraná”.

Questionamos o IAT sobre sua atuação no projeto da BR do Mar, incluindo a elaboração do anteprojeto,  a previsão de orçamento milionário para a obra em 2025, a falta de consulta às comunidades tradicionais e o fato de atuar simultaneamente como empreendedor e fiscalizador do licenciamento ambiental para a dragagem. Ainda perguntamos por que o instituto foi co-realizador de uma edição do Congresso Internacional Náutica em Foz do Iguaçu, no ano passado. Não houve resposta até a publicação da reportagem. O espaço segue aberto.

Ratinho Junior promete “aprofundar discussão” sobre projeto

O Intercept enviou uma série de perguntas para o governador Ratinho Junior, incluindo questionamentos sobre a realização de estudos prévios sem autorização na região do Canal do Varadouro, a negativa de licença por parte de Ibama e ICMBio, a não realização de consulta formal às comunidades tradicionais e a participação do empresário Ernani Paciornik na elaboração do projeto da BR do Mar.

Em nota, o governo do Paraná informou que este “ainda é um projeto em caráter primário que pretende levar melhorias às condições de navegabilidade do canal, para facilitar a vida das comunidades ribeirinhas e fomentar o turismo de base comunitária na região”. 

Sobre o licenciamento ambiental, o governo Ratinho Junior afirmou que, por meio do IAT, solicitou ainda em 2024 a “relação das licenças necessárias para dar andamento às contratações e estudos”, mas “não recebeu resposta” do órgão federal. E pontuou que o IAT vai se reunir com o corpo técnico do Ibama e do ICMBio “com a intenção de viabilizar os licenciamentos e aprofundar a discussão do projeto”. 

Vista aérea de Vila Fátima, comunidade localizada onde se afunila o Canal do Varadouro (Foto: Eduardo Manfré/Intercept)
Vista aérea de Vila Fátima, comunidade localizada onde se afunila o Canal do Varadouro (Foto: Eduardo Manfré/Intercept)

O governo Ratinho Junior destacou ainda, que o desenvolvimento do projeto “ainda contempla a contratação de um EIA/RIMA”, necessário para “especificar as intervenções necessárias e também de consulta pública e audiência pública”. 

Por fim, o governo Ratinho classificou o projeto da BR do Mar como “em fase de formatação” e sem “orçamento definido”. Também garantiu que está “à disposição do Ministério Público Federal para esclarecimentos”.

Apesar dos entraves e promessas, fato é que, por enquanto, o plano da BR do Mar segue ativo no governo Ratinho Junior, e os jet skis avançam na área, com tudo o que uma rodovia tem direito, até mesmo acidentes. O comerciante Martins, morador da Vila Fátima, conta que já viu de perto uma colisão, quando um jet ski em que estava um casal atingiu um tronco de madeira em alta velocidade. 

Apesar de não ter uma convicção sobre o que é melhor para o futuro da região e da comunidade onde vive há três décadas, Martins diz já perceber um sinal bem claro sobre a futura BR do Mar. “Essa obra é pra ‘eles’, não é pra nós”, afirma o morador da Vila Fátima.

O post Ratinho Junior atropela lei ambiental e comunidades para criar super rota para jet skis e iates entre PR e SP apareceu primeiro em Intercept Brasil.

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