Caso Thainara: Governo Zema ignora ordem judicial para pagar pensão à filha de jovem assassinada – e inquérito segue sem conclusão

Sem punições nem reparação. Esta é a realidade frustrante que a família de Thainara Vitória Francisco Santos vive seis meses após a jovem de 18 anos morrer durante uma abordagem da Polícia Militar em Governador Valadares, em Minas Gerais.

Enquanto o governo estadual liderado por Romeu Zema, do Novo, ignora a ordem judicial que garantiu uma pensão alimentícia à filha de Thainara, o inquérito que investiga a morte ainda não foi concluído — e a Polícia Civil não explica o porquê nem dá prazo de quando vai encerrar a investigação.

Foi em 14 de novembro de 2024 que Thainara, após uma abordagem policial no bairro Vila dos Montes, entrou viva em viatura da PM e, horas depois, chegou já sem vida a uma unidade de pronto atendimento de saúde do município.

Pouco mais de dois meses depois, em 27 de janeiro, o Intercept Brasil revelou, com exclusividade, que laudos periciais contradiziam a versão oficial dos policiais sobre o que ocorreu naquela noite. Os PMs alegam ter socorrido a jovem após um mal-estar, mas a perícia atestou que Thainara foi morta por asfixia provocada por estrangulamento, além de apresentar lesões compatíveis com espancamento.

Como Thainara era mãe e trabalhava para sustentar a filha, que hoje tem cinco anos, a justiça determinou que o estado de Minas Gerais pagasse pensão alimentícia provisória no valor de um salário mínimo. A decisão judicial foi assinada em 21 de fevereiro pelo juiz Anacleto Falci, da 2ª Vara Cível de Governador Valadares, que fixou prazo de 30 dias, a partir da intimação, para que o pagamento começasse a ser feito.

Mas o governo Zema simplesmente ignorou a ordem. A Secretaria da Vara teve que fazer duas intimações. Na primeira, o estado não registrou ciência, apenas o sistema eletrônico, o que não tem eficácia jurídica porque o estado tem a prerrogativa de ser intimado pessoalmente, na figura do advogado-geral.

Já após a segunda intimação, Sergio Pessoa de Paula Castro, que é o advogado-geral do estado, registrou ciência em 14 de março. Neste mesmo dia, porém, o estado entrou com um recurso para tentar suspender o pagamento de pensão.

Trecho do recurso apresentado pelo estado de Minas Gerais para suspender decisão que concedeu pensão à filha de Thainara (Foto: Reprodução)
Trecho do recurso apresentado pelo estado de Minas Gerais para suspender decisão que concedeu pensão à filha de Thainara (Foto: Reprodução)

Além de alegar que houve “evidenciado equívoco” na decisão, o estado argumentou que pagar a pensão seria “privilegiar apenas um particular em detrimento do interesse público” e que havia risco de o dinheiro pago não ser devolvido depois caso a família venha a perder a causa.

Ainda em 14 de março, o relator do caso no Tribunal de Justiça de MG, desembargador Júlio Cezar Guttierrez, rejeitou esse e os outros argumentos e negou o pedido de suspensão. O estado entrou com um novo recurso, mas não conseguiu reverter a decisão do relator.

Apesar disso e de a defesa da família de Thainara ter informado no processo a conta bancária para o recebimento da pensão ainda no dia 12 de março, o governo Zema não fez nenhum pagamento até hoje. Jucileia Santos, mãe de Thainara e avó da menina, apresentou ao Intercept extratos bancários que comprovam a ausência de qualquer depósito. 

“Eles não me ajudam em nada. Saí da minha casa com medo da polícia e agora passo necessidade para cuidar da minha neta. A pensão é o mínimo. É o que a justiça já mandou fazer. Mas eles fingem que a gente não existe”, desabafa Jucileia.

‘O estado, que devia nos proteger, nos virou as costas’

Ela conta que a situação financeira se agravou desde a morte de Thainara. Diz, ainda, que precisa fazer sessões de hemodiálise e nem sempre consegue arcar com o transporte. “Não tenho passe livre, não tenho carro. Às vezes, preciso pedir dinheiro emprestado para ir fazer o tratamento. A Thainara me ajudava com tudo. Agora eu cuido da neta sozinha. E o estado, que devia nos proteger, nos virou as costas”, afirma.

Diante da demora no pagamento da pensão, apesar da ordem judicial e de o recurso apresentado pelo governo Zema ter sido negado, os advogados da família pediram à justiça, no dia 7 de maio, a fixação de uma multa diária, em uma tentativa de pressionar o estado de Minas Gerais a finalmente cumprir o que foi determinado.

O juiz Anacleto Falci deu prazo até dia 21 de maio para que o estado se manifeste para, então, decidir sobre a fixação da multa. Mas fato é que, até a publicação desta reportagem, seis meses após a morte e muito mais de 30 dias depois do prazo inicial dado pelo juiz na decisão que autorizou a pensão, a filha de Thainara continua sem receber um centavo sequer.

Entramos em contato com o governo Zema e com a Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais, AGE-MG, para questionar por que a ordem judicial ainda não foi cumprida. Em nota, a AGE-MG atribuiu a demora a erros judiciais que teriam sido cometidos, incluindo o atraso no “repasse dos dados bancários da beneficiária” – apesar de essa informação constar no processo desde 12 de março, ou seja, há dois meses.

O órgão ainda ressaltou que “irá informar esses equívocos ao juízo responsável”, mas destacou que “já está tomando as providências, em caráter de urgência”, para cumprir a decisão “o quanto antes”. Perguntamos à AGE-MG por que o estado recorreu da decisão de pagar a pensão, em vez de cumpri-la imediatamente, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.

Inquérito policial ainda não foi concluído

A lentidão do estado no caso Thainara vai além da pensão. O inquérito que investiga a morte e a responsabilidade dos policiais militares envolvidos na abordagem segue aberto e inconcluso seis meses depois. O motivo? Ninguém sabe. É que a Polícia Civil de Minas Gerais não explica nem dá um prazo para terminá-la.

Questionamos mais de uma vez a instituição sobre o andamento do inquérito e, principalmente, o que ainda falta para que o caso seja concluído e encaminhado para o Ministério Público. Mas a Polícia Civil limitou-se a repetir que a investigação está “em fase final de conclusão” e que “outras informações serão repassadas em momento oportuno”.

Thainara Vitória Francisco Santos, de 18 anos, morta durante uma abordagem policial em Governador Valadares, Minas Gerais, em 14 de novembro de 2024. Foto: Arquivo pessoal
Thainara Vitória Francisco Santos, de 18 anos, morta durante uma abordagem policial em Governador Valadares, Minas Gerais, em 14 de novembro de 2024. Foto: Arquivo pessoal

O inquérito é peça-chave para a punição dos culpados pela morte de Thainara. Procurado pelo Intercept, o Ministério Público de MG afirmou que aguarda o término da investigação policial para, então, analisar uma eventual denúncia dos responsáveis à justiça.

Enquanto o inquérito se arrasta, parlamentares da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, ALMG,  acompanham o caso. A presidente da comissão, deputada estadual Bella Gonçalves, do PSOL, esteve em Governador Valadares no início de março e cobrou, em conversa com representantes da Polícia Civil e do Ministério Público, a conclusão das investigações.

“Toda semana, a resposta que recebo da Polícia Civil é a mesma: que, em 15 dias, o inquérito estará pronto. Esses prazos já se esgotaram várias vezes. Não há transparência. Não há explicações objetivas”, disse Bella ao Intercept, ressaltando que articula uma audiência pública na ALMG para discutir o caso tão logo o inquérito seja finalizado.

Com medo da PM, família mudou de cidade

Quem também segue sem se manifestar sobre o caso é a Polícia Militar de Minas Gerais. O silêncio seguiu mesmo após o Intercept mostrar, em fevereiro, que a corporação mantinha na ativa PMs que atuaram na abordagem de Thainara.

Voltamos a questionar a PM sobre a situação dos policiais por e-mail e via Lei de Acesso à Informação. Perguntamos se foram afastados, se respondem a algum processo disciplinar ou se continuam em atividades operacionais. A corporação não respondeu até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.

Enquanto isso, a família de Thainara diz sentir medo. “Os policiais seguem soltos, trabalhando, enquanto a família vive coagida, com medo. Se a gente fosse de família rica, esse caso já estaria resolvido. Mas como somos pobres e negros, a gente é punido”, desabafa Reginaldo Francisco, pai da jovem.

O temor não é mera preocupação. Após a morte de Thainara e a divulgação das reportagens do Intercept, familiares relataram que policiais militares têm feito abordagens frequentes e até invadiram, sem mandado judicial, o apartamento onde morava Jucileia.

“Eles achavam que eram donos da minha casa. Chegaram sem mandado, sem bater, já entrando, do jeito que queriam. Cada vez que eu via uma viatura, meu coração disparava”, relata a mãe de Thainara.

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A situação se agravou a ponto de a família decidir se mudar para Belo Horizonte em busca de segurança. “Tive que sair de casa por medo da polícia. Não dava mais pra viver lá”, conta ela. A mudança trouxe mais dificuldades: Jucileia perdeu a rede de apoio e teve de se adaptar a morar longe da cidade e do bairro onde vivia

“Eles sabiam que a família da Thainara não estava mais lá. Mesmo assim, invadiram. A intenção era intimidar. E conseguiram. A gente teve que sair da nossa casa para proteger os outros filhos, inclusive o irmão autista da Thainara”, destaca o pai da jovem.

A ida para BH não garantiu dias de paz. Segundo a família, o imóvel em Governador Valadares, que foi alugado, acabou sendo novamente invadido pela PM sem mandado judicial durante uma operação policial em 9 de abril.

O Intercept teve acesso a imagens de câmeras de segurança que mostram os policiais entrando no apartamento — e não há registro de que tenha sido apresentada qualquer autorização. Fotos e vídeos feitos pela inquilina permitem ver que roupas e objetos pessoais foram espalhados pelo chão e que móveis acabaram revirados.

“Era umas cinco da manhã. Eu tinha tomado remédio para ansiedade e estava dormindo. Me acordaram com sacudidas e uma arma na minha cabeça. Disse: ‘Calma, eu não sou bandida’. Falei pra eles: ‘Vai me matar agora igual vocês mataram a menina que morava aqui?’. Foi quando levei um tapa na cara. Eles ainda pegaram meu telefone para eu não conseguir avisar minha mãe”, relatou a inquilina ao Intercept, que pediu para não ser identificada por temer represálias.

Após o episódio, segundo a família de Thainara, a inquilina decidiu deixar o imóvel. “Ela devolveu a casa porque ficou com medo. Perdemos uma fonte de renda porque ninguém mais quer alugar o apartamento. Todo mundo tem medo de a PM invadir de novo”, diz Reginaldo Francisco, pai de Thainara.

Mobilização política quer evitar que caso seja esquecido

As denúncias do que ocorreu no apartamento foram levadas à Comissão de Direitos Humanos da ALMG. A deputada Bella Gonçalves disse ter relatado as investidas dos policiais à Anistia Internacional e ao Ministério da Justiça. “A violência da PM contra a família de Thainara não parou com a morte dela. A permanência dessas abordagens, sem mandado e sem justificativa, é uma forma clara de perseguição”, ressalta.

A atuação da Anistia Internacional também foi acionada pelos advogados da família, preocupados com o que classificam como “movimentos de bastidores” para abafar a investigação. Em Brasília, o caso foi levado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, em audiência com apoio de parlamentares.

“Há fortes indícios de interferência para que esse caso seja mais um entre milhares de violações de direitos humanos cometidas por militares sem punição”, afirma o advogado Márcio dos Santos.

Perguntada sobre as abordagens e invasões sem mandado que teriam ocorrido no apartamento da mãe de Thainara, a PM de Minas Gerais não respondeu. A corporação não esclareceu se há algum procedimento interno aberto para apurar esses relatos. O governo Zema, igualmente questionado, também não se manifestou. O espaço segue aberto.

Para o pai de Thainara, essa omissão e falta de respostas têm duas razões explícitas: cor e classe social. “Se Thainara fosse filha de um procurador, de um político, de alguém rico, já teria tido justiça. Mas, como somos pobres, como somos negros, o estado trata a vida da minha filha como descartável”, lamenta Reginaldo Francisco.

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