Chefes do Mercado Livre lotam assembleia para implodir tentativa de articulação dos trabalhadores

Um comportamento estranho acendeu um alerta durante uma assembleia sindical online de trabalhadores do Mercado Livre, em 23 de abril: a maioria dos presentes começou a se manifestar contra uma proposta de reajuste nos salários e redução na jornada semanal.

A razão só foi descoberta depois pelo coletivo Trabalhadores MeLi, que reúne os profissionais de tecnologia da empresa: a reunião estava tomada de chefes. A maioria dos participantes que se identificaram eram diretores, gerentes ou líderes do Mercado Livre, que entraram com o objetivo de desarticular uma tentativa de organização de trabalhadores. 

O objetivo da reunião era discutir e votar o acordo coletivo de 2025. Quando a assembleia começou, cerca de 150 pessoas entraram na sala da vídeo-chamada – só que cerca de 70% dos presentes identificados eram pessoas em cargos de chefia da empresa, segundo o coletivo. 

Trabalhadores que estiveram na reunião relataram ao Intercept Brasil que este grupo defendeu que não fosse feito nenhum acordo e que o atual fosse prorrogado sem mudanças, contrariando a pauta levantada pelos trabalhadores. 

“Gestor de empresa, gerente, diretor e o próprio negociador deveriam ficar fora desse processo, muito embora reconheçamos que sejam também trabalhadores, mas com um grau de responsabilidade muito diferente”, disse ao Intercept Ronaldo Gariglio, diretor financeiro do Sindicato dos Empregados em Empresas de Processamento de Dados de Santa Catarina, o SindPD-SC.

De acordo com o sindicato, o negociador da empresa tentou entrar na sala de reunião, mas teve o acesso negado, já que a reunião era para que os trabalhadores deliberassem a proposta de acordo coletivo previamente. 

Dentre as principais reivindicações em debate, estavam a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, das atuais 44, ajuste de 8,87% no salário de todos, e reajustes nos valores de vale-alimentação e vale-refeição. 

A articulação começou em junho de 2024, tendo em vista o acordo coletivo que está sendo discutido agora, e acontece em um momento em que os negócios do Mercado Livre vão de vento em popa. Seus lucros são recordes – só no último bimestre de 2024, foram R$ 3,64 bilhões – enquanto o número de usuários cresce ano a ano. Hoje, o Mercado Livre é a empresa mais valiosa da América Latina, o que rendeu até uma visita entusiasmada do presidente Lula.

Uma outra reivindicação central dos trabalhadores é que a empresa não possa exigir a presença física para pessoas contratadas em regime de home-office, já que muitos não moram no estado de São Paulo, onde fica o principal escritório do Mercado Livre. 

Representantes da empresa presentes na assembleia defenderam também que os votos fossem auditados por algum representante do Mercado Livre, proposta que foi refutada pelo coletivo de trabalhadores. 

Diante do impasse, a assembleia acabou suspensa após a empresa levantar dúvidas quanto à lisura do processo, e uma nova reunião foi convocada para 4 de junho. Será necessário realizar um pré-cadastro para acessar a assembleia, medida que visa dar ao sindicato mais controle sobre quem participará.

A tática não foi exatamente surpreendente, já que não faltam demonstrações de práticas anti-sindicais dentro da empresa, segundo trabalhadores contaram ao Intercept. Diretores e gerentes frequentemente falavam mal sobre a atuação do sindicato e sobre a proposta de acordo coletivo, inclusive em mensagens no Slack, a plataforma de comunicação corporativa usada pela empresa.

“Nesse processo de convocação para a assembleia, os gerentes começaram a coagir os funcionários no Slack”, disse uma funcionária da área de Experiência do Usuário e membro do coletivo Trabalhadores Meli, que pediu para não ser identificada temendo represálias. 

“Os gerentes faziam chacota com quem acreditava no sindicato, que o sindicato faria o melhor acordo coletivo, e que era para todos votarem na proposta da empresa, isso ficou claro nas mensagens”.

‘Ou vão me mudar de time, ou vão me colocar em avaliação de baixa performance. É esse tipo de mecânica que a empresa usa.’

Em uma das mensagens compartilhadas por um dos trabalhadores com o Intercept, um coordenador de Tecnologia afirma que “a proposta original dos funcionários é uma piada”. 

Questionamentos de funcionários sobre a posição da empresa também não são bem-vindos. Em outra mensagem mostrada ao Intercept, dois trabalhadores perguntaram em um canal de Slack por que a empresa deixaria de negociar se o acordo coletivo não fosse aprovado na assembleia do dia 23 de abril.

Um gerente de software respondeu que é porque “grande parte das reivindicações” são “questionáveis ou uma piada”. No fim da sua mensagem, ele escreveu: “Nesses quatro anos que estou aqui, o Mercado Livre não me deu nenhum motivo para desconfiar dele, muito pelo contrário. Então a pergunta que eu faço é: por que tanta desconfiança depois de tudo que estamos aqui explicando?”. 

Segundo a integrante do coletivo, funcionários que questionaram a posição da gerência ou confrontaram os gestores foram demitidos ou mudados de time – prática que é comum dentro da empresa e que, segundo ela, é uma represália pela atitude.

“Estamos aqui e, a qualquer momento, se por acaso nos posicionamos, se por acaso descobrem que eu estou metida com as coisas do sindicato, com certeza vai rolar alguma coisa do tipo”, disse. “Ou vão me mudar de time, ou vão me colocar em avaliação de baixa performance. É esse tipo de mecânica que a empresa usa”. 

Questionado, o Mercado Livre disse que “não impõe qualquer restrição à comunicação entre sindicatos e seus colaboradores” e que a empresa “está comprometida com um ambiente de trabalho respeitoso, transparente e em conformidade com a legislação vigente”. 

Com lucros recordes, empresa é a mais valiosa da América Latina e recebeu até visita do presidente Lula em abril.

Em outubro de 2024, o SindPD-SC enviou para o e-mail corporativo de todos os funcionários do Mercado Livre uma convocação para uma assembleia que seria realizada poucos dias depois para deliberar sobre o acordo coletivo da empresa. 

Funcionários viram o e-mail e tiraram prints. Alguns o encaminharam para contas pessoais – e aí a mensagem sumiu da caixa de entrada corporativa. Um vídeo visto pelo Intercept mostra que o e-mail aparece na caixa de entrada, mas sumiu logo depois que a página foi atualizada. 

Registros de conversas no Slack mostram que outros funcionários também perceberam o sumiço. A assembleia acabou adiada, mas ocorreu alguns dias depois.

Um fato recente mostra que esse não foi um episódio isolado. Após a polêmica assembleia realizada no mês passado, o SindPD-SC solicitou a lista atualizada de e-mails corporativos para enviar uma nova convocação aos trabalhadores, mas a empresa se recusou a compartilhar esses dados. 

Mudança para Santa Catarina para aliviar pressão

Em setembro de 2023, funcionários de tecnologia da informação do Mercado Livre receberam um aditivo de contrato para assinar. Na época, a empresa estava mudando sua sede para Santa Catarina, e essa informação precisava constar nos contratos de trabalho.

Mas a mudança para Santa Catarina fazia parte de uma estratégia para driblar a legislação trabalhista. Isso porque o Mercado Livre seguia, até então, os acordos firmados via Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Internet, Manutenção e Cursos de Informática do Estado de São Paulo, o Sindiesp. 

Essa posição, inclusive, era questionada pelo Sindicato dos Processadores de Dados de São Paulo, o SindPD-SP, que alegava que, pela atividade principal da empresa, cabia a ele a competência para representar os funcionários de TI do Mercado Livre. 

Em junho de 2024, o Mercado Livre foi condenado pela Justiça do Trabalho em São Paulo a pagar R$ 80 milhões por não ter cumprido os acordos coletivos da área de tecnologia. A decisão estabeleceu que a empresa deveria seguir os acordos coletivos vigentes entre fevereiro de 2022 e setembro de 2023, quando mudou sua sede para SC. 

Segundo a ação, movida pelo SindPD-SP, a empresa também deveria indenizar funcionários e ex-funcionários por diferenças nos valores pagos em reajustes salariais, horas extras e adicionais noturnos. A decisão foi confirmada em 2ª instância em fevereiro deste ano. Ainda cabe recurso ao Tribunal Superior do Trabalho, o TST. 

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Com a mudança da sede da empresa para SC, entretanto, funcionários do Mercado Livre passaram a ser representados pelo SindPD-SC, cuja convenção coletiva de trabalho é, em alguns pontos, menos protetiva ao trabalhador do que em São Paulo — apesar do nome do sindicato ser SindPD, as entidades em SC e SP são independentes. 

Por exemplo, o acordo coletivo em Santa Catarina estabelece que a carga horária semanal para trabalhadores de TI é de 44 horas, enquanto o convênio coletivo do SindPD-SP determina 40 horas semanais. Outra diferença é que o convênio em SC coloca as obrigações da empresa como opcionais ao usar o verbo “poderá”. Por outro lado, o valor do adicional noturno em Santa Catarina é maior do que em outras cidades.

Segundo Gariglio, do SindPD-SC, o sindicato persegue melhorias ano após ano, e a redução da jornada está sempre na pauta. Ele pontuou, no entanto, que a participação dos trabalhadores é essencial para que as mudanças sejam alcançadas – em especial de empresas com um alto número de funcionários como o Mercado Livre. 

Ele reafirmou que os funcionários devem ter independência para reivindicar essas melhorias. “O grupo gestor da empresa deveria repensar a forma de agir. Deixa os trabalhadores com toda tranquilidade exercerem o direito deles de reivindicar e, no final, vai ter uma pauta definida, negociada e, depois, um acordo assinado. É isso que queremos”, disse Gariglio. 

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