A lição mais importante de Dom Phillips

Meu amigo teve uma morte terrível. Um tiro de espingarda no peito, em um dia que deveria ser glorioso. 

Eram as últimas horas de sua última viagem de reportagem para o livro em que estava trabalhando. Após desembarcar da lancha em Atalaia do Norte, pequena cidade na fronteira do Amazonas com o Peru, ele pegaria outra lancha, dois aviões e um táxi para casa. Beijaria sua esposa, abraçaria seus gatos e se sentaria à mesa para terminar “Como salvar a Amazônia” – o culminar de quase uma década de viagens pelo Brasil.

No entanto, em vez de utilizar o subtítulo escolhido por ele, “Pergunte a quem sabe”, tivemos que alterá-lo para “Uma busca mortal por respostas”. Foi preciso alterar o curso de seu sonho.

Dom Phillips foi tirado de nós, mas o projeto mais ambicioso de sua vida continuará vivo quando for publicado em 27 de maio pela Companhia das Letras (clique aqui para pré-encomendar o seu exemplar). Será lançado pouco antes do terceiro aniversário de seu assassinato ao lado do indigenista Bruno Pereira, em 5 de junho.

Tive o privilégio de ser amigo de Dom e de ser convidado por sua viúva, Alessandra Sampaio, para escrever um capítulo e fazer parte da equipe que conduziu a conclusão do livro então inacabado. Sua mala, cheia de blocos de nota das suas viagens e equipamentos de reportagem, reside sob minha mesa todos os dias, como um lembrete tangível de que a missão do Dom ainda precisa ser concluída.

É sempre arriscado julgar um livro pela capa. Dom não era o estrangeiro arrogante e ingênuo que achava ter todas as respostas fáceis para resolver o problema mais urgente e consequente do Brasil – como é comum por aí. O título impossivelmente ambicioso do livro não é uma proclamação, é um convite para fazer a pergunta “Como salvar a Amazônia?” e para nos unirmos em torno dessa questão antes que seja tarde demais.

Dom era excepcionalmente aberto a ouvir os outros, a aprender com eles e a questionar suas próprias visões – algo que fica bastante evidente no livro. Ele sabia que grandes mudanças são necessárias e que aqueles em posição de liderá-las estão ignorando quem vive da e pela Amazônia, com medo de que qualquer mudança possa colocar em risco seu poder.

Se Dom acreditasse que não havia esperança para a Amazônia ou que “o mercado” poderia salvá-la por si só, ele não teria retornado ao Vale do Javari para aquela fatídica viagem de junho de 2022. 

Em nossas conversas, geralmente sentados em cima de pranchas de standup paddle ou nas cadeiras dobráveis de madeira de algum bar, rodeados com garrafas de cerveja vazias, ele defendia apaixonadamente um futuro centrado nos interesses das comunidades locais, no respeito ao valor e aos valores dos povos indígenas e na manutenção de atividades socialmente benéficas, independentemente de gerarem lucro ou não. A vida é mais importante. Ou deveria ser.

Dom Phillips e Andrew Fishman no mar de Copacabana, Rio de Janeiro, praticando stand up paddle em 2021. Foto: arquivo pessoal.

Ele teria ficado animado em 2023 ao ver Marina Silva reassumir seu papel de Ministra do Meio Ambiente, depois de demonstrar que o progresso é possível, durante sua primeira passagem pelo cargo. De 2003 a 2008, seu ministério adotou políticas que reduziram o desmatamento em 84% com estratégias que incluíam melhor policiamento, financiamentos internacionais condicionados à redução da perda de florestas e o compromisso voluntário (ainda que imperfeito) de compradores estrangeiros de soja de parar de aceitar produtos de terras amazônicas recém-desmatadas. 

Estes bons resultados foram a prova que Dom precisava para concluir que as soluções mais práticas do que ideológicas poderiam superar a ganância, o preconceito, a ignorância, a pobreza e as falhas – ou omissões – políticas que estavam provocando a crise.

Se esses caras soubessem o que tinha no coração do Dom, isso teria feito alguma diferença naquela manhã no rio Itacoaí?

Os retrocessos dramáticos durante a presidência de Jair Bolsonaro, no entanto, expuseram a fragilidade desses ganhos sem mudanças socioeconômicas mais sistêmicas – e transnacionais. E as “concessões” de Lula aos fazendeiros, petroleiros e mineradores demonstram que votar a cada quatro anos não será suficiente.

“A Amazônia é uma área muito extensa e produtiva de plantações de soja e fazendas de gado, que fica um pouco seca. Aqui e ali você pode ver pequenos bolsões de árvores”, escreveu Dom em uma troca de WhatsApp, em março de 2021, na qual ironizamos a cobertura jornalística simplista que via a Amazônia apenas pelas lentes do lucro do investidor estrangeiro. “Há muitas igrejas evangélicas. Faz calor e não chove muito além do dinheiro que cai diretamente nos bolsos dos fazendeiros.”

Brincadeiras à parte, para Dom, o agro claramente não era pop, mas ele também não tinha muita paciência para posições pouco embasadas na prática real e mais inspiradas em teorias intangíveis e defasadas ou fantasias paternalistas de uma floresta intocada, habitada apenas por heróis indígenas místicos.

A Amazônia – lar de 29 milhões de pessoas, a maioria em cidades – é complexa, singular e surpreendente, e bem maior e mais interessante que os debates no Twitter. 

Ele me contou que a maioria das pessoas que ele conheceu em suas inúmeras viagens está apenas tentando cuidar de suas famílias, sobrevivendo em pobreza, muitas vezes, extrema. “Quem somos nós para julgá-los por aproveitarem o que talvez seja a única oportunidade que têm pela frente para alimentar seus filhos, mesmo que seja cortando árvores para criar gado ou se juntando a garimpeiros?”, ele me disse mais de uma vez.

Esse sentimento específico pairou na minha cabeça por meses depois que Dom foi assassinado por pessoas que ele provavelmente diria que se encaixam nessa descrição. A ironia trágica de tudo isso é que ele estava lá naquele barco, naquele dia tentando ajudar o mundo a criar empatia por pessoas como seus agressores, e não criminalizá-las ou julgá-las. Se esses caras soubessem o que tinha no coração do Dom, isso teria feito alguma diferença naquela manhã no rio Itacoaí?, eu me perguntava.

Todos os habitantes da Amazônia merecem viver em segurança, com dignidade e empregos decentes que não contribuam ativamente para a destruição das chances de seus filhos terem uma vida boa e cheia de possibilidades. 

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Quaisquer propostas realistas que Dom apoiaria, portanto, não podem simplesmente abolir o comércio, nem permitir que ele continue seu curso atual, que não apenas destrói o meio ambiente, mas, na verdade, empobrece ainda mais as comunidades locais. Os lucros extraidos dali se acumulam em poucas mãos e, cada vez mais, em contas de investimento de pessoas que nunca ouviram falar de uma jararaca, pororoca ou pirapitinga.

Mas, sejam quais forem as soluções, é certo que precisaremos lutar. Nas nossas conversas, Dom me inspirou a continuar acreditando no poder do jornalismo e lutando pelo que acredito. Tanto que, sem a sua influência, é provável que, quando soubemos que pretendiam encerrar o Intercept Brasil em 2022, em vez de lutar para salvá-lo e torná-lo independente, eu provavelmente teria deixado que fechasse.

Se você está buscando inspiração e orientação para fazer parte da solução, pode começar reservando o livro “Como salvar a Amazônia: Uma busca mortal por respostas”. Não podemos salvar Dom, mas ainda podemos salvar a Amazônia.

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