
- Demanda por inteligência artificial e matriz elétrica renovável faz Brasil receber enxurrada de pedidos de autorização de data centers, prédios que abrigam supercomputadores para grandes big techs. Um deles deve servir ao TikTok.
- A promessa é desenvolvimento, mas essas estruturas são sugadoras de uma enorme quantidade de energia e água, que é necessária para esfriar os supercomputadores.
- Ao menos cinco dos 22 projetos em fase de autorização ficam em cidades que sofreram sistematicamente com falta d’água e desabastecimento de alimentos nos últimos 20 anos.
- Empresas e governos não revelam o real consumo de água dos data centers previstos, e comunidades afetadas não foram ouvidas sobre o projeto.
Um armazém do tamanho de 12 campos de futebol onde só há computadores pode surgir em breve na paisagem de Caucaia, no Ceará. Trata-se de um data center, uma enorme construção com computadores poderosos que funcionam 24 horas por dia. Sua função: servir como infraestrutura para o TikTok, aproveitando os recursos naturais do Brasil e a posição estratégica da cidade, próxima aos cabos submarinos de internet.
A promessa da empreitada, de R$ 55 bilhões, é gerar empregos e desenvolvimento. Mas há um problema: os datacenters são sugadores de uma enorme quantidade de energia e água, que é necessária para esfriar os supercomputadores. E o governo brasileiro está autorizando que eles sejam instaladas em cidades que já sofrem há anos com a seca e estiagem, como é o caso do datacenter do TikTok em Caucaia.
A rede social chinesa não aparece nos pedidos de autorização. Formalmente, a responsável pela empreitada é a Casa dos Ventos, uma empresa brasileira de energia eólica que tem investido no setor de data centers. Segundo a Superintendência de Meio Ambiente do Ceará, o projeto já obteve a licença prévia, uma das três necessárias para entrar em operação.
Ao anunciar o projeto, o sócio-fundador da empresa, Mario Araripe, já tinha avisado que o objetivo era atrair uma big tech. “Aí elas vêm e enchem de computador. O investimento maior é do Google, ou da Amazon, ou do Facebook, ou da Apple”, ele declarou.
Não foi nenhuma dessas: o escolhido foi o TikTok. O Intercept Brasil confirmou que a gigante chinesa está por trás da empreitada com membros do governo. Em fevereiro, o secretário da Casa Civil do Ceará havia dito em entrevista a uma rádio local que o governo estava em negociação com empresas chinesas.
As tratativas estavam aceleradas nos últimos meses. Funcionários do TikTok e da Bytedance do Brasil e de fora tiveram reuniões frequentes com membros do primeiro escalão do governo.
O governo está em ritmo acelerado para atrair investimentos de big techs para a construção de data centers.
Em dezembro, o vice-presidente Geraldo Alckmin, ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, recebeu funcionários do TikTok Brasil, dentre eles o então diretor de Políticas Públicas, Fernando Gallo (que já não está mais no cargo). Na data, como Lula estava em viagem oficial, Alckmin era o presidente em exercício.
Depois, foram pelo menos outras quatro reuniões entre executivos da empresa, do Brasil e da China, com diferentes ministérios, como o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Casa Civil, Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Ministério de Portos e Aeroportos e o Ministério da Fazenda.
Os encontros também contaram com o governador cearense Elmano Freitas. O Intercept questionou pediu a ata das reuniões, mas o governo alegou que não houve registro.
O Ministério do Meio Ambiente também não participou das conversas. Em abril, mostramos que o MMA também não participou da articulação interministerial para elaborar uma política nacional de data centers, que deve ser apresentada em breve pelo governo.
Procurada, a Casa dos Ventos disse estar “empenhada em transformar o Porto do Pecém em um complexo de inovação em tecnologia e transição energética”, com “o maior projeto de datacenter e hidrogênio verde do país”. Também afirmou que está “analisando oportunidades de parceria com companhias que possam ser complementares na viabilização dos empreendimentos”. O TikTok não comentou.

O governo está em ritmo acelerado para atrair investimentos de big techs para a construção de data centers. É que, com o boom da inteligência artificial, aumenta também a demanda por essas estruturas gigantes que abrigam supercomputadores. E o Brasil se tornou um lugar atraente para as empresas de tecnologia por conta do custo barato de energia e abundância de recursos renováveis.
A escolha de Caucaia, um município na região metropolitana de Fortaleza, não é por acaso. É da capital cearense que saem uma série de cabos submarinos que transportam dados do Brasil para outros continentes. Quanto mais perto dos cabos, maior a capacidade de tráfego de dados e menor a latência, que é o tempo de resposta entre dois pontos na rede de internet.
Há ainda outra vantagem: em Caucaia há uma zona de processamento de exportações, conhecida como ZPE de Pecém. Uma ZPE é uma área delimitada pelo poder público destinada à produção de bens e serviços voltados à exportação. Empresas instaladas nessas zonas contam com uma série de benefícios fiscais, além de facilidades em processos burocráticos.
Caucaia, no entanto, também é uma cidade que sofre repetidamente com eventos climáticos extremos, entre seca, estiagem e chuvas, segundo dados do Atlas Digital de Desastres no Brasil e do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres. Em 16 dos últimos 21 anos, entre 2003 e 2024, a cidade entrou, ao menos, em situação de emergência por estiagem e seca.
Em 2019, por exemplo, quase 10 mil pessoas foram afetadas pela falta d’água. Com os reservatórios exauridos, a água ficou imprópria para consumo, o que resultou em perdas da safra e dificuldade do acesso a alimentos básicos pela população.
O Intercept Brasil apurou que pelo menos outros três data centers gigantes que estão em processo de autorização pelo governo ficam em cidades que sofrem sistematicamente com falta de água e abastecimento. É o caso, por exemplo, de Igaporã, na Bahia, e Campo Redondo, no Rio Grande do Norte.
Para chegar aos números, o Intercept considerou os empreendimentos que estão em processo de autorização no Ministério de Minas e Energia, o MME, em resposta a um pedido feito por meio da Lei de Acesso à Informação. Dos 22 data centers da lista, cinco ficam em cidades que têm sofrido de forma recorrente com estiagem, seca e falta d’água desde 2003, segundo o Atlas Digital de Desastres.
Empreendimentos com um alto consumo elétrico precisam pedir uma autorização especial ao governo para operar. Já há uma enxurrada desses pedidos feitos por data centers. Em 2024, para se ter uma ideia, ao menos seteoito das 21 portarias publicadas pelo MME com autorizações tratavam de data centers.
A Casa dos Ventos também é responsável por outro projeto em análise pelo governo que fica em uma área de seca: Campo Redondo, no Rio Grande do Norte. O município teve emergência por seca e estiagem decretada em 14 dos últimos 21 anos.
Não há transparência sobre o consumo de água dos data centers que serão instalados nessas cidades.
Em 2022, chuvas abaixo da média prejudicaram os principais reservatórios, que acumularam impurezas e sujeiras, comprometendo a qualidade da água e tornando-a imprópria para consumo humano. Por isso, segundo o registro, foi necessário suporte do governo federal com caminhões-pipa, já que o município não tinha condições financeiras para custear a demanda.
Uma situação semelhante ocorreu em Igaporã, município baiano onde a empresa Renova prevê instalar dois data centers. A cidade decretou emergência por seca e estiagem em 12 anos desde 2003.
Em 2021, cerca de 5,5 mil pessoas foram afetadas pela falta de água na zona rural e foram atendidas com cestas-básicas pelo município, que também teve de usar caminhões-pipas para levar água potável à região.
A Renova afirmou que seus projetos possuem todas as licenças e autorizações de acordo com seus estágios de desenvolvimento. Segundo a empresa, o método de resfriamento do data center em Igaporã terá “consumo de água quase nulo”. “De qualquer forma, no local de implantação vamos perfurar poço tubular profundo para alimentar a planta, não dependendo, em momento algum, de água tratada do sistema público ou de manancial usado para abastecimento público”, disse a Renova. “Temos a confiança que o projeto irá gerar recursos significativos ao município”.
Mas não há transparência sobre o consumo de água dos data centers que serão instalados nessas cidades. As empresas não publicam voluntariamente informações sobre o consumo de água – e o governo se nega a enviar documentações técnicas analisadas por órgãos envolvidos no licenciamento sob a justificativa de segredo industrial.
No início de abril, o Operador Nacional do Sistema Elétrico, ONS, negou o pedido da Casa dos Ventos de acesso à rede básica por risco à estabilidade da rede.
A empresa disse que discutirá o caso, enquanto o MME teria solicitado que os cálculos sejam refeitos para ver a viabilidade de abrir espaço na rede.

Máquinas de sugar energia e água
As big techs já admitem que estão tirando água de locais sensíveis com a alta demanda por processamento provocada pela inteligência artificial. Em seus relatórios de sustentabilidade de 2024, a Microsoft informou que 42% da sua água era proveniente de áreas sob “estresse hídrico”, enquanto o Google disse que 15% de seu consumo de água se dava em áreas com “alta escassez hídrica”.
Empresas de tecnologia usam data centers para armazenamento e processamento de informações. À medida que a inteligência artificial cresce, no entanto, a demanda por essas instalações aumenta. Outros tipos de data center têm incentivos para converter suas instalações para IA.
Os data centers dedicados à inteligência artificial usam uma quantidade elevada de energia e água. O uso de energia se dá por conta do processamento massivo de dados: quanto mais complexo é o processamento, mais o consumo aumenta.
A água, por sua vez, é necessária para manter os computadores e máquinas sempre resfriados, evitando o superaquecimento. Mas uma parte dela se perde na evaporação, o que pode agravar ainda mais o cenário climático nos locais em que eles são instalados.
À medida que os modelos de IA se aprimoram, a capacidade de processamento também aumenta, o que exige ainda mais energia e mais resfriamento. Isso significa que o consumo de água e energia só tende a crescer.
A Agência Internacional de Energia tem uma estimativa conservadora de que o consumo de energia de data centers irá dobrar até 2030, alcançando 945.000 GWh – o equivalente ao consumo anual de energia do Japão hoje. Países em desenvolvimento, como o Brasil, responderão por 5% do crescimento projetado no período.
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O consumo de água também deverá crescer vertiginosamente. Entre 4,2 e 6,6 bilhões de metros cúbicos de água serão utilizados para suprir a demanda global por IA em 2027, segundo uma projeção de pesquisadores da Universidade da Califórnia, Riverside, e da Universidade do Texas, Arlington, em um artigo publicado em março de 2025. Isso é mais do que a utilização anual de água de metade do Reino Unido.
Mas existe uma diferença importante entre retirada e consumo quando falamos de água e data centers, disse ao Intercept Shaolei Ren, pesquisador da UC Riverside e co-autor do artigo. Retirada é tudo que a empresa extrai do sistema para seu funcionamento, enquanto consumo se refere à parte que evapora da retirada total de água.
“Enquanto usuários residenciais tipicamente não consomem muito da sua retirada de água, data centers frequentemente consomem de 60% a 80% da água que retiram”, disse Ren. Ou seja: a água se perde para sempre.
Existem diferentes maneiras de resfriar um data center. Uma delas é com ar condicionado, uma solução pouco eficiente para grandes instalações porque acarreta em um alto uso de energia.
Resta, então, usar a água. Uma das técnicas é com radiadores com ventiladores em um circuito fechado de água, semelhante a motores de carros. Nesse método, a água retorna ou é reutilizada para outros fins.
Outra opção são torres de resfriamento, que reduzem a temperatura do ar ao trocar calor com água fria, o que resulta na evaporação da água como forma de dissipar calor. Por fim, a última forma envolve a pulverização de água no ar para torná-lo mais úmido e diminuir a temperatura.
“O grande problema está nos dois últimos métodos: tanto a evaporação quanto a pulverização resultam em perda de água”, disse ao Intercept Emilio Francesquini, professor adjunto na Universidade Federal do ABC, Ufabc.
Segundo ele, estima-se que um data center de pequeno porte, com capacidade de 1 megawatt, consuma 25,5 milhões de litros de água por ano. Projeta-se que 1% desse volume se perca na utilização dos métodos de evaporação, o equivalente a 255 mil litros de água.

Segundo a Semace, o projeto da Casa dos Ventos que obteve a licença prévia prevê o consumo de água de 30m³/dia em circuito fechado, com abastecimento por poço artesiano, o que seria equivalente a 10,9 milhões de litros ao ano.
No caso do data center no Pecém, alternativas à extração de água seriam a dessalinização de água do mar devido à proximidade com a costa ou compra de água de reuso de Fortaleza, explicou ao Intercept Francisco Assis de Souza Filho, professor da Universidade Federal do Ceará e diretor do Centro Estratégico de Excelência em Políticas de Águas e Secas da UFC, o Cepas.
Tudo dependerá da capacidade de investimento da empresa em alternativas como estas. Segundo ele, cabe ao governo estadual, como parte do licenciamento ambiental, conceder a um data center a outorga pelo uso da água.
Especialista alerta para uma potencial fragilização da caatinga e aumento da insegurança alimentar na região.
Para Ronildo Mastroianni, diretor técnico da Esplar, organização não governamental que atua há 50 anos no semiárido cearense, a instalação de um empreendimento que demanda um consumo intensivo de água no semiárido já é uma contradição. “Nesse contexto, para ficar árido, é só um empurrãozinho”, disse ao Intercept.
Mastroianni alertou que a implementação de projetos do tipo na região pode criar desvios e reconfigurar bacias hidrográficas. “Isso para um abastecimento em detrimento de comunidades e de territórios que dependem daqueles cursos de água”, explicou.
Ele alerta para uma potencial fragilização da caatinga, ecossistema que já é, por natureza, vulnerável, e para um aumento da insegurança alimentar na região devido à falta de água em zonas rurais.
Segundo a Superintendência de Meio Ambiente do Ceará, o projeto da Casa dos Ventos já obteve a licença prévia, uma das três necessárias para entrar em operação. O Intercept solicitou a documentação técnica pela Lei de Acesso à Informação, mas teve o pedido e o recurso negados sob a justificativa de segredo comercial.
Segundo Mastroianni, da Esplar, nem sociedade civil e nem representantes das dezenas de comunidades quilombolas e indígenas do município foram chamados para participar de discussões sobre o empreendimento.

Movimento social barrou data center do Google no Chile
Ainda que o Brasil esteja no começo da explosão de mega data centers, não faltam exemplos de países que já convivem com essas estruturas há mais tempo. E não é preciso ir longe. O Chile possui hoje 22 data centers, dos quais 16 estão na região metropolitana da capital Santiago.
Em dezembro, o governo anunciou um plano nacional que inclui 30 novos projetos. Isso enquanto o país atravessa uma seca que tem previsão de durar até 2040.
Mas governo e empresas têm enfrentado resistência. Em 2019, quando o Google anunciou o plano de construir um segundo data center em Santiago, um grupo de ativistas ambientais chamado Movimento Socioambiental pela Água e Território, Mosacat, analisou a documentação e calculou que o data center obteve autorização para extrair 7 bilhões de litros por ano.
“Virou extrativismo, acabamos virando o quintal do mundo”, disse Tania Rodríguez, do Mosacat, em entrevista ao Rest of World.
Entre 2019 e 2023, o grupo realizou uma série de manifestações que levaram um tribunal de Santiago a analisar o projeto. No início de 2024, a Justiça suspendeu o projeto até que o Google reveja o impacto ambiental.
Essa reportagem foi publicada em parceria com o jornal The Guardian, e foi produzida com apoio da AI Accountability Network do Pulitzer Center.
O post TikTok construirá mega data center em cidade com histórico de seca no Ceará apareceu primeiro em Intercept Brasil.