Empreender para resistir: LGBTQIA+ do Cariri transformam exclusão em oportunidade


Em meio ao preconceito e à falta de vagas no mercado formal, pessoas LGBTQIA+ de Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha apostam no empreendedorismo como forma de autonomia, resistência e geração de renda. Empreendedores da região do Cariri, no Ceará, apostam nos próprios negócios como forma de autonomia, resistência e geração de renda.
Arquivo pessoal
O desemprego é maior na comunidade LGBTQIA+. De acordo com uma pesquisa do Datafolha, 15,5 milhões de brasileiros pertencem à comunidade LGBTQIA+ no Brasil, o equivalente a 7% da população, mas essa parcela ocupa apenas 4,5% dos postos de trabalho.
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O levantamento feito em quase 300 empresas, com 1,5 milhão de trabalhadores, mostra que eles ocupam apenas 4,5% dos postos de trabalho. Além de desafios comuns a qualquer candidato a uma vaga de trabalho, essas pessoas enfrentam o preconceito. Para abrir espaço no mercado, o empreendedorismo tem sido uma alternativa em municípios da região metropolitana do Cariri.
Em Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha, os três maiores municípios da região, o perfil desses empreendedores é de pessoas com idade entre 20 e 40 anos que têm o ensino médio incompleto e um relato comum: afirmam ter criado o próprio negócio por falta de oportunidade no mercado formal.
De acordo com uma pesquisa do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Ceará (Sebrae), mais da metade da comunidade LGBTQIA+ no Brasil está envolvida com empreendedorismo. A pesquisa mostra que cerca de 55% dessas pessoas empreendem ou têm um potencial empreendedor.
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“Enfrentamos barreiras, é muita luta e muita resistência. Mas, por querer ser independente e não gostar de depender de ninguém, a minha força para empreender só cresce. Amo o meu trabalho, o que faço e sonho em ser referência na minha área “, diz a empreendedora Ayza Teles.
Ela faz parte dos 3,7 milhões de pessoas LGBT que lideram o próprio negócio no país, o que representa 24% dos 15 milhões de brasileiros com 16 anos ou mais e que se identificam como integrantes dessa parcela da população, de acordo com pesquisa do Sebrae. Atento ao crescente mercado desse tipo de empreendedorismo, o Sebrae desenvolve projetos de fortalecimento da área.
“É importante que eles busquem o conhecimento para que a gente possa se fortalecer e driblar os preconceitos, discriminações e as desvalorizações, para que possamos ter mais força para pleitear melhorias no acesso ao crédito. O Sebrae formaliza o negócio, forma uma rede de apoio que vai ajudar tanto profissionalmente, como o lado pessoal. É uma vasta programação aberta que pode atender a esses empreendedores e ajudá-los a desenvolver todo o seu potencial”, afirma o analista e coordenador do Programa Sebrae Plural, Jefferson Cavalcante.
Força de mulher
A empreendedora Ayza Teles trabalha com produtos personalizados na região do Cariri.
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“Empreender sempre foi um sonho, então a partir do momento em que eu consegui levar adiante, eu saí do mercado formal para viver esse desafio”, afirma a empreendedora Ayza Teles, que se identifica como preta e lésbica.
Aos 27 anos e com o negócio próprio há quase 6, ela trabalha com produtos personalizados, como brindes, fardamentos e outros insumos gráficos.
Ela iniciou com uma loja virtual que aos poucos foi migrando para o espaço físico. Durante a pandemia houve uma pausa, mas o retorno em 2024 veio com bastante esforço e com a vontade de apoiar outras pessoas.
“A nossa loja é 100% composta por mulheres. Também temos serviços terceirizados com apoio de outras mulheres, na costura e confecção de nossas peças. Empreender é um desafio para todas as pessoas diariamente. Acredito que há falta de apoio aos empreendedores, seja LGBT ou não, as portas não são fáceis de serem abertas.”
Empreender com ‘alma livre’
Elania Calixto, de 26 anos, saiu de um emprego formal para investir no ramo da moda
Arquivo pessoal
Elania Calixto, de 26 anos, saiu de um emprego formal para investir no ramo da moda. Iniciou um trabalho autônomo em 2019, como revendedora de camisas. A criatividade desabrochou, e ela pensou nas próprias estampas. Para formalizar o negócio, virou microempreendedora individual (MEI).
“Anos atrás, eu vi uma camisa linda, daí minha mente começou a imaginar várias outras personagens estampadas e comecei a colocar minhas ideias em prática. Comecei a pesquisar sobre todo o processo de produção própria e hoje eu tenho tudo: design, costureira, o pessoal que faz a sublimação, as entregas”, conta Elania, que se identifica lésbica.
Elania tem loja virtual e perfil em várias redes sociais para alavancar as vendas, trabalha também com uma plataforma asiática. O empreendedorismo não fica somente no mundo virtual: mostrar as peças em feiras livres tem sido também uma saída.
“Empreender foi a melhor coisa que fiz na minha vida. Eu acho que o LGBT empreende porque tem a alma livre. Somos muitos criativos, então acho que é onde a gente se encontra. A vida do empreendedor tem muitos desafios, mas é muito gratificante o reconhecimento do nosso trabalho.”
Espaço para todos
Saymo Luna, de 31 anos, criou um espaço colaborativo para divulgar produtos criativos.
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Em plena pandemia da Covid, Saymo Luna, de 31 anos, viu uma oportunidade: um espaço colaborativo para divulgar produtos criativos junto com a mãe. Foi o que fez o empresário, que se identifica como gay. Eles produziam geleias, bolsas, mochilas, entre outros itens. Com o tempo, Saymo ampliou do artesanato para a gastronomia. O local também ganhou palco para linguagens artísticas e virou ponto de encontro no Crato.
“No início, promovemos um espaço de formação artística, de plateia para a arte das drag queens da região. Foi um momento crucial para a cena drag do Cariri. Nosso espaço é também de resgate, para preservar memória. É um espaço de efervescência cultural, que guarda muitos saberes. Não é 100% ocupado por LGBT, mas é um espaço pensado por LGBT para todas as pessoas”
Em 2023, a casa virou ponto de cultura, reconhecida pela Rede Estadual Cultura Viva do Ceará. O ponto de cultura desenvolve ou articula atividades culturais em suas comunidades. O espaço gerido por Saymo também recebeu um selo da diversidade do município do Crato.
Apoio ao empreendedor LGBTQIA+
Em 2023, a casa criada por Saymo Luna no Cariri virou ponto de cultura.
Arquivo pessoal
O Sebrae Ceará faz parte do Comitê de Empregabilidade e Empreendedorismo LGBTI+ do estado e tem atuado junto à Secretaria Estadual da Diversidade para estruturar e desenvolver os empreendedores LGBTQIA+. O comitê é composto por 14 entidades, incluindo representantes da sociedade civil, poder público e setor privado.
Uma das iniciativas do comitê é o Mapeamento Estratégico dos Empreendedores. Por meio dele, o comitê busca compreender as necessidades desse grupo e como pode contribuir de maneira mais direta.
“Por meio do mapeamento estamos buscando compreender as necessidades específicas desse grupo e como podemos contribuir de maneira mais direta. Por meio do Programa Sebrae Plural, tem-se buscado agir para minimizar o distanciamento da população LGBTI+. Para aqueles que ainda não se sentem confortáveis no atendimento presencial, o Sebrae oferece uma gama de cursos gratuitos e consultorias on-line, tem atendimento multicanal, permitindo que o conhecimento empreendedor chegue até essa população”, reforça o analista e coordenador do Programa Sebrae Plural Jefferson Cavalcante.
Jefferson lembra ainda que todas as portas dos escritórios estão abertas para receber esse público, com capacitações mensais na Escola de Negócios Sebrae, na sede Cariri, por exemplo. “Procurem o Sebrae para formalizar o seu negócio, formar uma rede de apoio que vai ajudar no fortalecimento pessoal e profissional”, diz.
Políticas públicas e inclusão
O Bar Tropicanos é um dos milhares de estabelecimentos no Ceará que fixou a placa de combate ao preconceito.
Kid Junior/SVM
Para o pesquisador e doutor em Psicologia Clínica, Júnior Linhares, a região do Cariri ainda é marcada pela exclusão do público LGBT no mercado de trabalho.
“Daí a necessidade de pensar outras oportunidades. O empreendedorismo é uma das estratégias, onde eles começam a desenvolver atividades para que possam conseguir suas subsistências”.
O pesquisador ouviu pessoas trans e travestis durante o doutorado e a pesquisa se tornou parte de um livro, intitulado “Vem cá que eu te conto! Trajetórias profissionais de travestis e transexuais: intersecções entre corpo, gênero, sexualidade e raça”.
O livro revela trajetórias de vidas de pessoas que encontram muitos desafios na inserção e permanência no mercado de trabalho. As marcas do constrangimento, do preconceito, discriminação e estigmatização estão presentes nas narrativas. Assim como outras formas de vulnerabilidade, as violências e a marginalização que trazem sofrimento para essa parcela da população.
Para que haja mudança nesse mercado de trabalho, o pesquisador acredita que novas políticas públicas devem ser implementadas.
“Mas para que esse empreendedorismo possa ser consistente é necessário que haja políticas afirmativas e de incentivo. Para que tenham acesso a formações, melhores possibilidades na estruturação dos seus objetos de venda, de comércio. E também conseguir melhorar de vida. Precisam ser ouvidas para que possamos compreender os vários desafios que elas se deparam para afirmação no mundo”, diz.
“O mercado de trabalho necessita desse processo de formação. Tem se falado muito na ideia de letramento para a diversidade: capacitações, rodas de conversa, etc. É preciso interferir nas empresas e organizações para que haja uma modificação nessa cultura da discriminação, para que se possa instituir uma cultura organizacional voltada para inclusão, isso é muito importante”, continua.
Bar Tropicanos foi inserido em mapa LGBT de Fortaleza.
Os empreendedores LGBTQIA+ afirmam que é preciso mais apoio ao negócio local. Como também mais espaços para mostrar trabalhos. Gilney Matos, presidente da Associação Cearense de Diversidade e Inclusão (Acedi), diz que é preciso avançar nas políticas públicas:
“Eles tentam emergir de maneira autônoma ou através de feiras coletivas. Hoje temos alguns espaços para diversificar a economia criativa e a geração de renda. Porém, falta avançar para linhas de crédito, capacitações para outras áreas da administração do negócio, como controle de estoque, precificação”.
No Ceará, existem programas criados para o público LGBTQIA+. Iniciativas do governo estadual e de instituições do terceiro setor que têm como objetivo promover a autonomia econômica. Mas o incentivo é menor no Interior.
“Carecem de um olhar específico, sem estereótipo, mas com cuidado e respeito. Entender qual o caminho dessa população, como essas políticas podem fortalecer esse público que já é marginalizado”, reforça o empresário Saymo Luna.
Iniciativas nos municípios
Em Juazeiro do Norte, existe uma lei municipal que destina cotas para pessoas trans e travestis em seleções temporárias. De acordo com o Núcleo de Diversidade e Gênero do município, o público LGBTQIA+ também recebe encaminhamento para cursos profissionalizantes em parceria com instituições e empresas, assim como atualizam os currículos e os enviam para as seleções. Há também a busca por empresas que trabalham no combate à LGBTfobia.
Em Barbalha, ainda não há conselho LGBTQIA+, está em processo de criação. A Secretaria de Assistência Social busca incluir pessoas LGBTQIA+ em programas municipais e estaduais.
O município do Crato realiza capacitações de enfrentamento à LGBTfobia pela Secretaria Municipal de Segurança e Saúde, assim como ações de empregabilidade, casamento igualitário, cursos para esse público, conferências e seminários.
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