Exclusivo: Polícia Civil desconsidera perícia que apontou asfixia e livra barra de PMs por morte de Thainara

A Polícia Civil de Minas Gerais concluiu, após quase sete meses de investigações, que “não é possível afirmar com clareza” qual policial militar teria agredido e matado a jovem Thainara Vitória Francisco Santos durante uma abordagem da Polícia Militar, em novembro de 2024, em Governador Valadares. Por isso, ninguém será indiciado.

Apesar de reconhecer que não é possível excluir a “relação direta” da conduta dos PMs com a morte, a Polícia Civil mineira entendeu que há “indícios de autoria e materialidade” de homicídio culposo — sem a intenção de matar. Na prática, essa conclusão desconsidera o laudo da perícia de que Thainara foi morta por asfixia no pescoço. A investigação, porém, não explica nem detalha como, então, a jovem morreu.

As informações estão no relatório final do caso enviado à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, ao qual o Intercept Brasil teve acesso. Thainara, uma jovem negra de 18 anos, entrou viva em uma viatura da PM no dia 14 de novembro do ano passado e, minutos depois, chegou morta a uma unidade de saúde.

No relatório, recebido com frustração e críticas pela família de Thainara, o delegado Cleriston Lopes de Amorim pontua que, “diante de declarações controversas, não é possível afirmar com clareza qual policial militar teria agredido a vítima a ponto de ceifar sua vida”.

Trecho do relatório final da investigação da Polícia Civil (Foto: Reprodução)
Trecho do relatório final da investigação da Polícia Civil (Foto: Reprodução)

O delegado cita no documento que, ainda que fosse possível determinar o responsável direto pela morte de Thainara, a conduta dos policiais militares não poderia ser enquadrada como homicídio doloso – quando há intenção de matar – “nem sequer” como dolo eventual. Por isso, diz ele, a Polícia Civil “não possui atribuição para o indiciamento dos policiais militares”, o que caberia à Justiça Militar.

Os argumentos do delegado para justificar que não houve dolo são que toda a ação “se deu em pouquíssimos minutos” e que os PMs pediram apoio a outras equipes policiais durante a ocorrência. “O intento dos militares ao pedir apoio incessante com certeza não era de ceifar a vida de ninguém, pelo contrário, era de manter a ordem naquela localidade”, alegou o delegado.

Trecho do relatório final da investigação da Polícia Civil (Foto: Reprodução)
Trecho do relatório final da investigação da Polícia Civil (Foto: Reprodução)

Apesar disso, a Polícia Civil afirmou que as investigações indicam com “contundência” que houve “nítida demora” na prestação de socorro a Thainara e que, depois de ter sido constatada a morte da jovem, era obrigação dos PMs acionar a perícia para fazer laudo no local e na viatura, bem como preservar o corpo e os vestígios. 

Por isso, a investigação concluiu haver indícios de fraude processual e apontou que o homicídio culposo teria o agravante de quando o agente “deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as consequências do seu ato ou foge para evitar prisão em flagrante”.

A exclusão do dolo dos PMs envolvidos na morte de Thainara pode ter impacto direto na punição dos responsáveis pelo crime e afetar os rumos do processo na justiça. Tudo dependerá do que o Ministério Público fará a partir da conclusão do inquérito pela Polícia Civil.

Caso o MP concorde que não houve dolo e denuncie os policiais militares por homicídio culposo, por exemplo, eles serão julgados pela Justiça Militar. Já se forem denunciados por homicídio doloso, a decisão final fica a cargo do Tribunal do Júri, como prevê a lei.

Procurado pelo Intercept, o Ministério Público de Minas Gerais informou que ainda “não é possível” se manifestar, “em análise preliminar”, a respeito das conclusões da Polícia Civil. “O MPMG irá analisar o inquérito para definição das medidas cabíveis”, declarou. 

Thainara Vitória Francisco Santos, de 18 anos, morta durante uma abordagem policial em Governador Valadares, Minas Gerais, em 14 de novembro de 2024. Foto: Arquivo pessoal
Thainara Vitória Francisco Santos, de 18 anos, morta durante uma abordagem policial em Governador Valadares, Minas Gerais, em 14 de novembro de 2024. Foto: Arquivo pessoal

A conclusão da Polícia Civil foi recebida por familiares com frustração, preocupação e medo de que o caso acabe em impunidade. “Como pode um relatório produzido pela Polícia Civil determinar que ocorreu um homicídio culposo e ainda com causa de aumento de pena pela omissão, mas não consegue identificar quem são os autores? Ficou extremamente vago”, avaliou Matheus Lopes Santos, um dos advogados da família.

Para a defesa, a ausência de identificação dos responsáveis pode comprometer o caso. “Relatar que ocorreu o fato, a natureza do fato, a conduta praticada, mas não conseguir identificar sequer o autor, coautor ou partícipe deixa margem para o arquivamento. E um arquivamento no caso Thainara é privilegiar a impunidade”, completou Santos, que antecipou que a família exigirá providências do MP, incluindo novas diligências e ouvir novamente algumas testemunhas.

PM admite que não afastou policiais do serviço

Enquanto a investigação avançou, os PMs envolvidos na abordagem que resultou na morte de Thainara seguem na ativa. A confirmação foi feita por um representante da própria corporação durante audiência pública da Comissão de Direitos Humanos na Assembleia Legislativa sobre o caso, realizada na sexta-feira passada, 30 de maio.

Essa foi a primeira vez que a Polícia Militar de Minas Gerais admitiu o que o Intercept revelou ainda em fevereiro: os agentes envolvidos na abordagem nunca foram afastados. Eles apenas foram transferidos de cidade, mas seguem atuando normalmente.

“Eles estão lotados em outras unidades”, disse o corregedor-geral da PMMG, coronel PM Edgard Antônio de Souza Júnior, sem mencionar qualquer tipo de processo ou medida disciplinar que tenha sido tomada em relação aos policiais. Ele ainda afirmou que a previsão é de que o inquérito militar que apura o caso seja concluído até a próxima terça-feira, 10 de junho.

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A legislação brasileira não obriga o afastamento automático de agentes de segurança pública envolvidos em mortes sob custódia. A decisão cabe ao comando da corporação, como medida de cautela administrativa. Ainda assim, em março deste ano, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia informou que pediria o afastamento dos policiais militares.

Após a declaração do corregedor-geral da PM na audiência pública sobre o caso, a presidência da comissão protocolou um novo pedido para que os policiais envolvidos na abordagem sejam afastados imediatamente, além de solicitar acesso integral ao inquérito militar e reafirmar seu compromisso em fiscalizar a atuação da corporação no estado.

Deputados defendem PMs em audiência pública

A audiência na Assembleia Legislativa também foi marcada por deputados da extrema direita saindo em defesa dos PMs. Logo no início da sessão, o deputado estadual Lincoln Drumond, do PL, disse que o caso estava sendo “politizado” e alertou o pai de Thainara para que não deixasse “isso acontecer”. Ele também questionou se havia “alguma prova cabal e robusta” de que os policiais asfixiaram a jovem.

Reginaldo Francisco, pai de Thainara (à direita, sentado), se indignou ao ouvir deputados como Lincoln Drumond, do PL (sentado, à esquerda) defenderem os PMs durante audiência pública sobre o caso (Foto: Daniel Protzner/ALMG)
Reginaldo Francisco, pai de Thainara (à direita, sentado), se indignou ao ouvir deputados como Lincoln Drumond, do PL (sentado, à esquerda) defenderem os PMs durante audiência pública sobre o caso (Foto: Daniel Protzner/ALMG)

Já o deputado e ex-policial militar Sargento Rodrigues, também do PL, declarou que os agentes “jamais tiveram qualquer intenção” de que a vítima morresse. “Eles fizeram tudo o que estava dentro dos manuais e fizeram tudo com respeito, cumprindo o que a lei determina”, afirmou.

As declarações causaram revolta na família. “A minha filha se enforcou sozinha? É isso? Eu vi minha filha com hematomas no pescoço, toda roxa de botinada, e você vem falar que ela se enforcou, que ela se machucou, que os policiais não têm culpa?”, desabafou Reginaldo Francisco, pai de Thainara. “Se ela morasse num condomínio de rico, eu tenho certeza que no outro dia os policiais estavam todos afastados”, completou.

Logo em seguida, a presidente da comissão, deputada Bella Gonçalves, do PSOL, decidiu suspender a sessão. “Constrangimento ao pai da vítima é inadmissível. Eu peço que o senhor [deputado Lincoln] seja respeitoso aqui nas suas falas. A Comissão de Direitos Humanos está cumprindo a sua atribuição de fiscalização”, declarou.

Um fato que chamou atenção na audiência foi a ausência de representantes do Ministério Público, apesar de a comissão confirmar ter enviado convite a representantes do órgão. Perguntamos ao MPMG por que nenhum promotor participou da audiência, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.

Governo Zema finalmente paga pensão à filha

Outro destaque da audiência pública na Assembleia Legislativa foi a participação do advogado-geral do estado de Minas Gerais, Sérgio Pessoa. Ele foi convocado a participar da reunião após o Intercept mostrar que, apesar de ordem judicial expedida ainda em fevereiro, o governo de Romeu Zema, do Novo, não pagou a pensão provisória determinada à filha de Thainara, de cinco anos, e recorreu da decisão.

No dia 29 de maio, véspera da audiência, a Advocacia-Geral enviou à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia um ofício informando que o pagamento da pensão provisória seria finalmente iniciado. 

Segundo o documento, o primeiro pagamento de um salário mínimo mensal, referente ao mês de maio, estava previsto para ser depositado até 11 de junho. A pensão foi paga nesta sexta-feira, 6, diretamente à avó materna da criança, que é a sua representante legal — ela confirmou ao Intercept que o dinheiro já entrou na sua conta.

Advogado-geral do estado de Minas Gerais, Sérgio Pessoa de Paula Castro prometeu durante audiência que pensão será paga à filha de Thainara nos próximos dias (Foto: Daniel Protzner/ALMG)
Advogado-geral do estado de Minas Gerais, Sérgio Pessoa de Paula Castro prometeu durante audiência que pensão será paga à filha de Thainara nos próximos dias (Foto: Daniel Protzner/ALMG)

“A compreensão que tive nesse momento processual era de que se estabilizasse o pagamento da pensão provisória, que se efetivará já com primeiro pagamento no mês de junho. E isso, a meu juízo e avaliação em conjunto com o colega procurador do Estado que atua diretamente no processo, apresentamos uma petição ao Tribunal de Justiça com a desistência deste recurso [para questionar a decisão que ordenou o pagamento da pensão]”, disse o advogado-geral na audiência pública.

Durante a reunião, diante de relatos feitos por familiares sobre a preocupação com sua segurança, o Ministério dos Direitos Humanos também se colocou à disposição para incluir a família de Thainara no Programa de Proteção a Testemunhas.

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