Quando o mandato do presidente Ronald Reagan ameaçou milhares de funcionários do governo com exames de polígrafo, também conhecido como ”detector de mentiras”, supostamente para proteger dados confidenciais (mas provavelmente para controlar vazamentos de informações para a imprensa), o secretário de Estado da época, George Shultz, ameaçou renunciar.
Dado esse acontecimento, a Casa Branca de Reagan recuou e concordou em impor os testes apenas para suspeitos de espionagem, de acordo com uma reportagem do New York Times de 1985. Já em termos da captura desses espiões, o método falhou drasticamente em alguns momentos-chave.
Já no atual mandato do presidente Donald Trump, 50 anos depois de Reagan deixar o cargo, o Departamento de Segurança Interna está recorrendo ao teste do polígrafo. Mas, o teste não será utilizado para pegar supostos espiões, mas sim para intimidar e descobrir quem vazou informações internas da administração governamental.
“O polígrafo foi transformado em arma e está sendo usado contra indivíduos que nunca tiveram a exigência do teste, seja antes do emprego ou na área de segurança, em toda a sua carreira federal”, disse Mark Zaid, advogado especializado em representar pessoas que trabalham na segurança nacional.
Os testes são frequentemente usados durante “conversas não confidenciais sobre políticas ou decisões que se tornaram boatos ou chegaram diretamente à mídia” completou Zaid. Além disso, o advogado já testemunhou perante o Congresso sobre o uso de polígrafos, e processou agências federais por suas práticas.
No FBI, relata o New York Times, o uso crescente de polígrafos “intensificou uma cultura de intimidação” para os agentes.
Uso do polígrafo no governo atual
No Pentágono, autoridades ameaçaram publicamente a realização de testes de polígrafo como parte de um esforço para descobrir como a imprensa soube que Elon Musk receberia um briefing confidencial sobre a China. Essa informação era algo que um bilionário com interesses comerciais no país oriental provavelmente não deveria receber.
Não está claro se os testes de polígrafo foram, em última análise, administrados como parte da investigação, de acordo com a reportagem da CNN.
No Departamento de Segurança Interna, de acordo com a CNN, testes de polígrafo foram utilizados em funcionários da Agência Federal de Gestão de Emergências e da Administração Federal de Aviação, além daqueles em funções mais tradicionais de segurança nacional.
Funcionários do governo defenderam a prática como forma de proteger informações governamentais.
A secretária do DHS, Kristi Noem, também defendeu o uso de testes de polígrafo durante uma entrevista na CBS em março. “As autoridades que tenho sob o Departamento de Segurança Interna são amplas e abrangentes”, disse ela.
Anteriormente, segundo Zaid, os polígrafos eram usados como uma espécie de “dispositivo de seleção”, semelhante a um teste de aptidão física para grandes grupos de candidatos a cargos de segurança nacional e aplicação da lei.
Depois disso, alguns funcionários, principalmente na comunidade de inteligência, podem ser submetidos a exames a cada cinco ou dez anos, como um teste aleatório de drogas.
Mas, o que está acontecendo agora é algo diferente. Os testes de polígrafo estão “sendo usados contra indivíduos que nunca tiveram a exigência de um polígrafo, seja para pré-emprego ou segurança, em toda a sua carreira federal”, disse Zaid.
Milhões de americanos costumavam ser submetidos a testes de polígrafo todos os anos
A maioria dos americanos nunca foi submetida a um teste de polígrafo, em grande parte porque o Congresso proibiu o uso no setor público em 1988, época em que milhões de americanos eram submetidos ao teste todos os anos.
As empresas também utilizavam o método para impedir pessoas de conseguirem empregos e conduzir investigações internas coercitivas.
Um exemplo do por que os testes de polígrafo eram problemáticos, é a abordagem utilizada no antigo programa “60 Minutes”, em que a jornalista Diane Sawyer se submete a um exame e câmeras escondidas são usadas para mostrar como a parcialidade do examinador afeta os resultados.
“Se você estiver tentando encontrar um único vazador em uma organização de 100 pessoas, poderá acabar acusando falsamente dezenas de pessoas”, segundo Amit Katwala, autor da história do polígrafo “Tremors in the Blood: Murder, Obsession and the Birth of the Lie Detector”.
“E você pode nem mesmo pegar o culpado. Não há evidências que sugiram que um detector de mentiras de verdade seja cientificamente possível”, disse o autor através de um e-mail.
Os polígrafos foram mantidos para o serviço público
A Lei de Proteção ao Polígrafo foi sancionada em 1988 por Ronald Reagan, anos depois do confronto com Shultz. Mas os polígrafos foram mantidos no setor público, especialmente para a segurança nacional e a aplicação da lei.
“No mundo da segurança nacional, o princípio de proteger os inocentes é invertido. Preferimos arruinar a carreira de 99 pessoas inocentes do que deixar que um novo Ed Snowden, Aldrich Ames ou Robert Hanssen sobreviva”, disse Zaid.
Quando os polígrafos falharam terrivelmente
Além de terem têm um histórico irregular na detecção de mentiras, os polígrafos também têm um histórico horrível na detecção de espiões.
Um relatório do Comitê de Inteligência do Senado de 1994 explora como o agente da CIA, Aldrich Ames, que espionava para a KGB, escapou da detecção por anos, em parte porque foi aprovado em vários exames de polígrafo.
Ao mesmo tempo, o mesmo relatório descreve como outro funcionário da CIA que auxiliou a KGB, Edward Lee Howard, o fez em parte porque se sentiu abandonado pela inteligência americana após ser demitido por ser reprovado em um exame de polígrafo.
Em seguida, houve o julgamento chocante do agente do FBI e espião russo Robert Hanssen, que nunca havia usado um polígrafo em sua carreira. Houve um aumento no uso do instrumento em algumas agências, incluindo o FBI e o Departamento de Energia.
Por que os polígrafos não são confiáveis?
Na virada do século XXI, o governo dos EUA encomendou um relatório em larga escala sobre a eficácia do polígrafo, realizado por um comitê especial do Conselho Nacional de Pesquisa.
Eles constataram que as evidências científicas sobre os polígrafos eram mais do que insuficientes.
“Como nação, não devemos nos permitir continuar a ser ofuscados pela aura do polígrafo”, declarou Stephen Feinberg, professor da Carnegie Mellon que liderou o estudo, perante o Congresso.
Como funcionam os polígrafos?
A ideia por trás do polígrafo, desenvolvido pela primeira vez na década de 1920, é que mentir causa estresse.
O examinador conecta a pessoa a monitores que medem fatores como pressão arterial e suor nas pontas dos dedos. Uma pré-entrevista ajuda a formular perguntas comuns que criam uma linha de base, e as reações a perguntas mais investigativas são comparadas a essa linha de base.
Mas não é um processo científico e pode ser falsificado ou enganado, já que, em sua essência, a máquina está simplesmente medindo respostas fisiológicas. Frequentemente, informações incriminatórias são oferecidas por pessoas que não entendem exatamente como o processo funciona.
Ames apresentou sua avaliação do polígrafo em uma carta da prisão publicada em 2000, chamando-o de “ciência lixo que simplesmente não morre” e afirmando que ele é mais útil como instrumento de coerção.
“Depende da coercitividade geral do ambiente. Você será demitido, não conseguirá o emprego, será processado e irá para a prisão, além do medo crédulo que o dispositivo inspira”, escreveu ele.
Os polígrafos são frequentemente usados em investigações criminais, mas raramente em tribunais.
A cultura pop frequentemente sugere que, quando uma pessoa é conectada a um polígrafo, suas mentiras serão detectadas. Mas isso não é exatamente verdade.
“O polígrafo funciona porque achamos que funciona. É uma ferramenta de coerção psicológica em um ambiente já intimidador, principalmente quando tem o peso do governo federal por trás”, disse Amit Katwala.
Mas a intimidação provavelmente é o objetivo.
Como o polígrafo foi desenvolvido?
O homem a quem se atribui o desenvolvimento completo do polígrafo, um policial de Berkeley chamado John Larson, que também tinha doutorado em psicologia, mais tarde consideraria sua invenção pouco confiável, de acordo com Katwala.
Larson, que também era psiquiatra, foi inspirado pela máquina de contar a verdade de William Marston, mas com uma imaginação fértil e talento para o teatro. Zaid o descreveu como o “PT Barnum da poligrafia”.
Em vídeo gravado na época, Marston usa uma máquina semelhante a um polígrafo e afirma identificar as diferentes emoções de mulheres loiras, morenas e ruivas. Sua conclusão foi que ruivas gostam de jogar, morenas buscam amor e loiras são as mais fáceis de assustar.
Além disso, foi Marston quem inventou a heroína dos quadrinhos Mulher-Maravilha, com seu ‘Laço da Verdade’. O objeto obrigava o indivíduo amarrado a dizer a verdade absoluta.
“Usar o polígrafo pode não ajudar a capturar os vazadores, mas a ideia dele pode muito bem assustar qualquer potencial futuro vazador, fazendo-o ficar de boca fechada”, disse Katwala.
O que vem a seguir?
Katwala alerta que há novas tecnologias sendo desenvolvidas com a ajuda da IA ou girando em torno de ondas cerebrais, mas argumenta que elas devem ser vistas com o mesmo ceticismo que o polígrafo.
“Nenhuma delas supera o problema do nariz do Pinóquio. Cada pessoa é diferente, e algo que funciona para uma pessoa pode não funcionar para todas”, disse ele.
Mas todas elas podem ser usadas da mesma forma opressiva que o polígrafo.