
- Documentos inéditos sobre operação policial que matou 12 milicianos em Itaguaí, no Rio de Janeiro, em 2020, revelam que a munição usada pelos criminosos contra os policiais tem origem em lotes comprados pelo próprio estado.
- Encontramos lotes que haviam sido comprados originalmente pelas polícias Militar e Civil do Rio de Janeiro, pelo Exército, Marinha, Aeronáutica e até mesmo da Acadepol do Ceará e da Força Nacional de Segurança Pública. Mas, em tese, só poderiam ser utilizadas por essas instituições. Ou seja: foram desviados em alguma parte do caminho.
- Havia até mesmo balas de um lote que já havia sido identificado em reportagem do Intercept de 2019. Parte dos desvios não é reconhecida pelas instituições – e as investigações são arquivadas ou ficam em sigilo.
- Essa reportagem é parte da investigação que deu origem ao livro “Como nasce um miliciano”, de Cecília Olliveira, que narra a vida de Carlos Eduardo Benevides, o Cabo Bené, um dos 12 mortos na operação policial.
Milicianos mortos em uma operação no Rio de Janeiro para combater interferência nas eleições de 2020 usaram munições das próprias polícias, Forças Armadas e até Força Nacional contra os policiais. Os documentos da investigação sobre a operação, até agora inéditos, revelam os caminhos dos desvios da munição comprada pelo estado: saem das forças armadas e policiais para balear a própria polícia.
O Intercept Brasil teve acesso à investigação sobre a operação conjunta da força de elite da Polícia Civil do Rio de Janeiro, a Coordenadoria de Recursos Especiais, Core, e Polícia Rodoviária Federal, em outubro de 2020, a poucos dias do primeiro turno das eleições municipais, contra milicianos do Bonde do Ecko que estariam interferindo nas eleições municipais.
Na operação, os agentes trabalharam em conjunto para impedir que um comboio de milicianos, que se deslocavam pela região em quatro veículos clonados, prosseguisse. De acordo com os policiais, os milicianos desceram de seus carros portando fuzis e roupas táticas, levando a um tiroteio. Um policial tomou um tiro no peito. Todos os 12 milicianos morreram na operação: 11 no local e outro a caminho do hospital.
Agora, os documentos mostram que a munição usada pelos criminosos veio das próprias polícias Militar e Civil do Rio de Janeiro, do Exército, Marinha, Aeronáutica e até mesmo da Acadepol do Ceará e da Força Nacional de Segurança Pública. Especialistas ouvidos pelo Intercept foram categóricos: as munições de uma polícia só são usadas por esta polícia – ou deveriam.

“Se a operação foi conduzida pela Polícia Civil e pela PRF, então essas munições da PM, Exército e Marinha certamente estavam nas mãos da milícia”, observou Bruno Langeani, analista de dados na Conflict Armament Research e consultor sênior no Instituto Sou da Paz. “Especialmente porque várias destas munições tinham data de fabricação antiga, fortalecendo a confirmação de desvios criminosos.”
De todas as cápsulas recuperadas na cena do tiroteio, ao menos 22 lotes foram perdidos, roubados ou extraviados – o que nenhuma das instituições confirma, apesar das evidências que encontramos.
Um dos cartuchos coletados pela perícia, de munições compradas pela Marinha que foram disparadas pelos milicianos contra os policiais, já tinha sido identificado pelo Intercept em 2019. Só naquele lote, originalmente comprado pela Marinha, há registro de 47 casos de extravios. Foram abertas nove investigações para apurar os sumiços – todas classificadas como sigilosas.
As novas descobertas sobre a operação em Itaguaí acontecem no momento em que o Brasil pode dar um passo importante no controle de armas. A partir de julho, a fiscalização do arsenal dos CACs, os caçadores, atiradores e colecionadores, hoje sob responsabilidade do Exército, passará para a Polícia Federal.
Atual modelo de fiscalização já deu sinais claros de esgotamento: munições e armamentos militares são desviados com frequência.
O atual modelo já deu sinais claros de esgotamento: munições e armamentos militares são desviados com frequência; o próprio Exército admite que não sabe quantas armas estão nas mãos dos CACs – e investigações já revelaram militares que usaram o sistema para ‘esquentar’ armas ilegais.
A unificação dos bancos de dados e a centralização da fiscalização nas mãos da PF, se bem executadas, devem facilitar o rastreamento de armas, reduzir desvios e aumentar a transparência – o que, mostra o caso de Itaguaí, são mecanismos centrais na indústria que abastece o crime.
Algumas munições utilizadas pelos milicianos naquela operação sequer foram identificadas. A bala que atingiu o colete e quase tirou a vida do policial da Core João Victor Ravizzini nunca teve sua origem identificada pela perícia – deixando aberta a possibilidade de saber de onde ela veio e, assim, quebrar a cadeia fornecedora da milícia.
Como o projétil não transpassou o colete e só gerou vermelhidão no peito do policial, a poucos centímetros de seu coração, a probabilidade maior é que João Victor tenha sido atingido por tiro de pistola calibre 9mm, .40, ou .45, mas jamais saberemos qual pistola e de onde veio a munição. Essa investigação não foi feita.


A marca de tiro próxima ao coração do agente da Core: a julgar pelas outras munições, é provável que tenha sido comprada pelo próprio estado – só não sabemos de qual força.
Instituição nega furto ou extravio – mas a munição estava com miliciano
O que começou como uma operação policial de alto risco, nos acessos da rodovia Rio-Santos, na altura da cidade de Itaguaí, região metropolitana do Rio de Janeiro, acabou evidenciando uma questão bem mais ampla.
Segundo o inquérito, os milicianos – que eram em sua maioria civis – estavam “vestidos com roupas táticas, praticamente todos com vestimentas escuras, cabelos cerrados, alguns de coturno militar, coletes balísticos, coldres de perna e de cintura, denotando se tratar de um grupo miliciano com táticas de guerrilha urbana, tendo em vista a padronização de sua conduta”.
Além das roupas, portavam armas municiadas com balas compradas pelo estado brasileiro, em diferentes esferas.
O Intercept fez uma análise minuciosa de todos os lotes de munição recuperados pela polícia na cena do tiroteio. A investigação identificou a procedência de oito lotes – e nós fomos atrás do restante. Encontramos outros 15 lotes. Um deles é o BMK95, cujas munições também já foram apreendidas em uma operação contra traficantes do Comando Vermelho, na Comunidade do Preventório, em Niterói, em 2018.
Entre as munições dos 23 lotes rastreados, que estavam com os milicianos, as de calibre .40 do lote BEN98 foram compradas pela Polícia Civil do Rio em 2015, enquanto o lote CDV59 foi adquirido pela PM do Rio em 2018.

Vieram do Ceará o lote ARN39, adquirido pela Secretaria de Segurança Pública em 2015, e o AXL74, pela Academia de Segurança Pública, a Aesp.
A fabricante das munições, a CBC, Companhia Brasileira de Cartuchos, recomenda o uso da munição em até seis meses. Isso porque, em condições ideais – fechada com controle de temperatura e umidade no depósito –, o material pode durar mais. Por isso, as polícias e forças compram e renovam as munições todo ano.
“Munições muito antigas, portanto, aumentam a suspeita de desvio, especialmente quando combinadas com lotes vendidos por instituições que não estavam presentes na operação do tiroteio”, explica Langeani.
A Aesp disse ao Intercept que “desconhece qualquer extravio, roubo ou furto” de seu paiol. Mas nós identificamos que, além das munições que aparecerem em Itaguaí, balas do mesmo lote já haviam sido apreendidas em fevereiro de 2020, na Baixada Fluminense.
Na ocasião, estavam com o miliciano Leandro Pereira da Silva, vulgo Léo do Rodo, apontado como um dos líderes do Bonde do Ecko em Santa Cruz – mesmo grupo dos milicianos mortos em Itaguaí.
Questionamos a polícia sobre o destino das munições. A resposta? Censura.
O restante das cápsulas com identificação do lote apreendidas na operação eram de calibres 7,62 e 5,56. O lote AJB27, comprado pela Aeronáutica, ficava sob responsabilidade da Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro. O Comando da Força Aérea informou que foi aberto um Inquérito Policial Militar, ainda em 2018, para apurar o furto de 500 munições.
No ano seguinte, o Ministério Público Militar pediu o arquivamento por falta de provas. Se as provas não foram suficientes para que os militares responsáveis pelo furto das munições fossem julgados pelos seus crimes perante o Tribunal Militar, não faltaram evidências que expuseram as fragilidades existentes no controle de munições dentro da caserna.
Embora a investigação tenha sido aberta em outubro de 2018, quando se identificou que 34 de 37 caixas de munições chegaram a pesar quase 20 quilos a menos que o volume completo, militares confessaram, em seus depoimentos, que já haviam dado falta de munições desse lote durante as Olimpíadas do Rio, em 2016.
Em depoimento, um deles disse que comunicou ao seu superior, que mandou usar as munições mesmo assim, sem apurar o furto.
A investigação só foi aberta quando as munições foram enviadas a outra base aérea, que conferiu o peso das caixas e notou que estavam faltando 500 cartuchos. O inquérito do caso indiciou dezenas de militares e concluiu, a partir dos depoimentos, que foi trazida “à tona a prática de um esquema de acobertamento de irregularidades, o que pode ser a motivação para a existência de militares acumpliciados”.
Uma das linhas de investigação era se os lacres das caixas de munição poderiam ser removidos e reinstalados sem deixar rastros de adulteração, e a perícia concluiu que sim, de fato era possível manipular os lacres e colocá-los de volta sem deixar marcas. O juiz decidiu pelo arquivamento, mas deixou aberta a possibilidade de reabertura do caso, se novas provas surgirem.
É bem verdade que o caso não puniu os envolvidos, mas ainda tem gerado repercussão no mundo militar. Um dos indiciados no caso se sentiu injustiçado por não ter sido promovido e impetrou um mandado de segurança ao Superior Tribunal de Justiça, que foi negado. Um dos motivos foi justamente a suspeita de sua participação no sumiço dos 500 cartuchos.
Outras quatro cápsulas de calibre 5,56 eram de munições para fuzis compradas pelas polícias do Rio. Um dos lotes – o BFS49 – foi adquirido pela Polícia Civil em 2014, e os outros — CHZ31, CHZ80 e CJJ18 — foram comprados pela PMERJ.
Procurada, a Polícia Civil do Rio se recusou a fornecer informações sobre os lotes que comprou, afirmando de forma vaga que os dados solicitados poderiam comprometer investigações.
Mas piora: após nosso pedido, a polícia apostou na censura e classificou as informações como reservadas por cinco anos. A falta de transparência é praxe na corporação. Durante toda a investigação que deu origem ao livro que embasou também esta reportagem, a Polícia Civil se negou a fornecer informações e a autorizar entrevistas.
Encontramos uma velha conhecida entre as balas do Bonde do Ecko
Duas cápsulas calibre 7,62, dos lotes BNS23 e o CEB93, nos chamaram a atenção. O Intercept já havia identificado cápsulas do lote BNS23, comprado em 2007, na reportagem Balas S.A., em que analisamos munições usadas em vários tiroteios ocorridos pelo Rio em 2018.
A munição daquele lote foi disparada no dia 3 de julho de 2018 em um tiroteio entre policiais da UPP e traficantes do Comando Vermelho, em Manguinhos, na zona norte do Rio. Ela é parte do maior lote já produzido pela CBC, com mais de 19 milhões de munições compradas pela Marinha.
Das milhares dessas munições com esse código de rastreabilidade, 4,7 milhões eram calibre 7,62. Parte delas foi doada às polícias do Rio – 6 mil para a Civil, em 2011, e 7 mil para a PM, em 2015. Outra parcela a Marinha doou para a Guarda Costeira de São Tomé e Príncipe.
Na época da apuração da reportagem, a Marinha respondeu que “não constavam” no seu banco de dados informações quanto ao “roubo ou extravio significativo” para qualquer tipo de munição com o código BNS23.
Passados cinco anos, a resposta mudou. Em novo pedido que fizemos pela Lei de Acesso à Informação, a Marinha assumiu que as munições deste lote foram extraviadas um total de 47 vezes – a maioria no Espírito Santo, em 2016, quando 463 munições desapareceram. Do total das 1.038 munições extraviadas deste lote, apenas 36 foram recuperadas, todas no Rio de Janeiro.
Já o CEB93 é um lote também excessivamente grande. A Força Nacional, composta por policiais cedidos pelas policiais estaduais, comprou 372.100 munições deste lote em 2017 – mais de 98% das munições foram doadas.
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Segundo a Força Nacional, 367.640 unidades foram distribuídas entre 12 órgãos estaduais e federais, incluindo secretarias de segurança de Tocantins, Acre, Ceará, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Bahia e Goiás, além das polícias militares da Bahia e do Amazonas e até o Ibama.
A maioria, 200 mil, foi destinada à secretaria do Rio, enquanto a menor parcela ficou com a PM do Amazonas – cerca de 200. A Força Nacional informou não ter conhecimento do extravio de munições deste lote, evidenciando mais uma vez o controle falho e as dificuldades de rastreamento após a distribuição. O órgão consultou o seu depósito de suprimentos e disse que não tem conhecimento de casos de desaparecimento que envolvam o seu lote.
O repasse das munições não é ilegal, mas, como podemos ver, deixa ainda mais difícil a rastreabilidade. E ainda há outro porém. Um regulamento de 2004 do Exército estipula que, obrigatoriamente, os lotes de munição devem ter até 10 mil unidades. A ideia era fortalecer o controle – o que é flagrantemente desrespeitado pela fabricante, CBC, que produziu as munições deflagradas pelos milicianos contra os policiais na operação em Itaguaí.
Munições 7,62 de outros 11 lotes foram compradas pela Polícia Militar do Rio de Janeiro e Exército. As cápsulas das balas marcadas com os códigos BKK82, APY13, AIA17, CGU25, CJN47, CMZ19 e APU61 eram da PM do Rio; o Exército comprou os lotes APX34, APT82, AYJ05, ANM09. Todos caíram nas mãos da milícia do Bonde do Ecko. Entramos em contato com a PMERJ, que sequer respondeu o email.
A perícia identificou de onde vieram algumas das munições, mas não determinou a origem da bala que feriu o policial da Core no peito, revelando lacunas importantes na investigação.
De acordo com o perito criminal federal Lehi Sudy dos Santos, para se identificar a origem de um projétil que atinge um colete, é preciso recolher vestígios da munição que ficou agarrada na vestimenta logo após a ocorrência. Depois, faz-se um cruzamento dessas informações do tipo de metal colhido na vestimenta com as munições apreendidas. Ou seja, era possível saber de onde a bala que quase matou João Victor foi desviada – e fechar essa porta da milícia. Mas isso não aconteceu.
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