‘Quero que pessoas brancas me tratem como senhora’, avisa Conceição Evaristo


Atração da Bienal do Livro, escritora fala com exclusividade sobre vida comum no Morro da Conceição e respeito aos idosos negros Conceição Evaristo na janela de casa, no Morro da Conceição
GNT/Reprodução
Conceição Evaristo está de pé no meio da sala, arrumando os cabelos da filha Ainá, enquanto a acompanhante da menina aguarda sentada em meio às centenas de livros empilhados no espaço.
Na rua de paralelepípedos, a manhã passa sem pressa. Um senhor que pedala uma bicicleta com um enorme cesto na garupa é parado por 2 moradores em frente à mercearia da esquina. Com uma pequena buzina, ele vai do Morro da Providência até o Morro da Conceição vendendo pães. Por volta das 9h, só restam farelos na cestaria.
Vasos de espadas-de-são-jorge na calçada das casas vizinhas à Igreja de Nossa Senhora da Conceição parecem combinar com portas e janelas coloridas que, quando abertas, permitem que quem passa do lado de fora veja um pouco da rotina de quem vive do lado de dentro.
É assim que os moradores da ladeira veem Conceição: a senhora que mora na casinha azul e branca com a filha. De vez em quando, passa subindo ou descendo a rua para algum compromisso. Quando conto que ela é escritora, um vizinho se surpreende: “Eu conheço ela! Mas ela é escritora, escritora mesmo?”
Imortal da Academia Mineira de Letras e colecionadora de prêmios importantes como o Jabuti e o Juca Pato, Conceição Evaristo gosta da possibilidade de não ser reconhecida.
“Eu não trago estrela na testa. Na verdade, no frigir dos ovos, eu sou como toda e qualquer mulher negra”, diz, antes de reconhecer, também, as vulnerabilidades raciais.
“Quando eu chego num supermercado, eu sou vigiada como qualquer mulher negra e gorda é. Eles imaginam que uma mulher negra pode esconder uma lata de óleo na calcinha, na barriga. Então qualquer lugar que eu chego, se as pessoas não me conhecem, por exemplo, num supermercado, num shopping, eu sou tão vulnerável quanto qualquer outra mulher negra é”.
Conceição Evaristo
Reprodução/GNT
Aos 78 anos, a autora convidada para debater memória e resistência na Bienal do Livro do Rio tem dedicado os discursos à reflexão sobre a idade: “Também quero ser respeitada como uma mulher mais velha. Não quero que as pessoas esqueçam da minha idade, esqueçam do respeito que tem que ser dado às pessoas mais velhas”.
Criadora do conceito de escrevivência, que abarca produções literárias marcadas pela experiência histórica e coletiva dos povos afro-brasileiros, Conceição Evaristo destaca como o racismo atravessa o trato social com mulheres negras idosas.
“Eu quero que as pessoas brancas me tratem de senhora e vou explicar por quê: toda pessoa mais velha, a gente chamava de senhora. Vizinhos, todo mundo. Porque eram pessoas contemporâneas de minha mãe, de minha tia, então a gente sabia que eram pessoas mais velhas e a gente chamava de senhora. Quando eu chegava na casa das patroas, as filhas das patroas, que tinham a minha idade, chamavam a minha mãe de você. Eu não entendia. Até eu entender que esse senhor e senhora era uma marcação social. Mesmo que uma empregada seja mais velha, o filho da patroa se sente no direito de chamá-la de você”.
A ancestralidade é tema frequente nas reflexões da ilustre moradora do Morro da Conceição. A comunidade fica na região conhecida como Pequena África, onde milhões de escravizados desembarcaram e habitaram no Rio de Janeiro.
É em um dos pontos mais agitados da Zona Portuária, no Largo de São Francisco da Prainha, que um mural de 30 metros de altura por 20 de largura leva o retrato de Conceição Evaristo em direção ao céu. Foram gastos mais de 200 litros de tinta para colorir o rosto da escritora que, do alto, observa o território histórico.
“É um trabalho muito significativo porque é o rosto de uma mulher negra que, com o olhar, parece que ela está dominando toda aquela região. Ela está buscando as marcas visíveis e as marcas invisíveis que estão aqui. Essa região é uma região de mistérios, tem muita coisa aqui que eu acho que a história como ciência ainda não dá conta. Tem muita coisa que as palavras não dão conta, não dizem. Acho que esse mural representa isso, é um olhar que está buscando e, com certeza, está captando aquilo que a visão comum não vê”.

Mural do projeto NegroMuro em homenagem a Conceição Evaristo no Largo da Prainha, no Rio
Douglas Dobby
Entre os detalhes no grafite do Projeto NegroMuro estão 2 pequenas fotografias: da filha da escritora, Ainá, e da mãe, Joana Josefina. Atrás dos retratos que simbolizam a ancestralidade e a continuidade de Evaristo, o mural traz figuras santas como Oxum e Nossa Senhora da Conceição, de quem a mãe da escritora era devota.
“Sou protegida por essas duas senhoras”, conta Conceição, que há mais de 5 anos tem endereço na rua da Igreja da Imaculada. “Morar aqui, estar nessa região, é também me sensibilizar para a escrita. Aqui tem muita coisa para escrever. É estar num lugar que me fornece muitos elementos para ficcionalizar”.
Para a autora, foi o destino que a levou ao Morro do qual é xará.
Conceição Evaristo é a primeira mulher negra a ingressar na Academia Mineira de Letras

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