Nicarágua: como um herói nacional virou líder de uma das piores autocracias eleitorais do mundo


Nicarágua voltou ao noticiário brasileiro depois de expulsar embaixador brasileiro, o que acentuou o desgaste entre os dois países. Episódio reforça autoritarismo de Daniel Ortega, no poder há 17 anos. Daniel Ortega, presidente da Nicarágua
Leonardo Fernandez Viloria/Reuters
O ex-guerrilheiro Daniel Ortega, de 78 anos, deixou o papel de herói nacional e líder de uma revolução para, décadas depois, transformar a Nicarágua em um país classificado como uma das piores autocracias eleitorais do mundo.
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Na quarta-feira (7), a Nicarágua de Ortega expulsou o embaixador brasileiro após o Brasil não ter enviado representante para o aniversário de 45 anos da Revolução Sandinista.
A data celebra a queda do ditador Anastasio Somoza Debayle em 1979 por um grupo de revolucionários do qual Ortega foi um dos líderes. A família de Somoza governava a Nicarágua desde 1936, impondo ao país um dos regimes mais violentos da América Latina.
Daniel Ortega em 1981, quando coordenava a Junta de Reconstrução da Nicarágua
La Prensa/AP
Mais de quatro décadas depois, o herói do passado é o presidente de um país que ocupa uma das últimas posições em um ranking de autocracias eleitorais. A lista é elaborada pelo V-DEM, da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, que mede o status das democracias pelo mundo.
Autocracias eleitorais são países nos quais não há liberdade de expressão; eleições existem, embora não sejam livres nem justas. No índice de democracias liberais do V-DEM, a Nicarágua está no 176º lugar entre 179 países, à frente apenas de Mianmar, Eritréia e Coreia do Norte. A Venezuela, em que Nicolás Maduro foi declarado reeleito em uma eleição sob suspeita da comunidade internacional, está em 164º lugar.
País com pouco mais de 6,6 milhões de habitantes, o equivalente à população do estado de Santa Catarina, a Nicarágua é governada por Ortega desde 2007 —reeleito em 2011, 2016 e 2021. Ele já havia dirigido o país de 1984 até 1990, quando promoveu reforma agrária e atuou para distribuição de riquezas, com grande apoio popular, até perder a eleição para a ex-aliada Violeta Chamorro.
“A Nicarágua é o país com o processo mais duradouro de autocratização”, diz o relatório de 2024 do V-DEM. A piora coincide com o retorno ao poder de Ortega.
Sob o governo dele, aponta o V-DEM:
As eleições não são livres nem justas;
Não há limite para reeleição;
Os partidos de oposição foram eliminados de uma disputa séria;
Reformas foram feitas para minar os freios ao poder Executivo.
Piorou a censura à imprensa, em um nível equivalente ao do Afeganistão, Hong Kong e Mianmar.
Perseguição política aos críticos ao regime;
Violações de direitos humanos.
“Praticamente todas as melhorias democráticas que o país havia alcançado desde 1990 foram desfeitas. Em duas décadas, a Nicarágua caiu de uma democracia eleitoral para o nível mais baixo no índice”, de acordo com o documento.
Relatório de 2024 da ONG Human Rights Watch lista que o ex-guerrilheiro fechou veículos de mídia, ONGs e universidades, violando as liberdades de expressão e associação e restringindo o direito à educação. O documento, publicado em 2024, revela que o atual presidente é responsável pela perseguição aos críticos do regime, inclusive a Igreja Católica, “desmantelando o espaço cívico”.
Embaixador do Brasil na Nicarágua é expulso do país
Ortega hoje comanda o país ao lado da esposa, a vice-presidente Rosario Murillo. Foi ela, aliás, que confirmou nesta quinta-feira (8) que o embaixador brasileiro Breno Souza Costa deixou o país.
Tanguy Baghdadi, professor de política internacional e apresentador do podcast Petit Journal, disse ao g1 que Ortega governa para se manter de forma perene no poder, com um regime centralizado na figura dele.
“Com o passar do tempo, há o fechamento cada vez maior do regime. Ele domina de forma cada vez mais absoluta setores cada vez maiores da economia. Ele reprime opositores”, diz. “É um país que tem um nível de violência muito elevado, e ele acaba usando isso, inclusive, a seu favor, uma vez que as forças policiais, obviamente ao seu mando, acabam tendo um poder ainda maior.”
Escalada de autoritarismo
O regime de Ortega endureceu aos poucos ao longo das últimas duas décadas. Um dos episódios emblemáticos dessa escalada de violência são as manifestações populares contra o presidente por causa de um decreto que regulamentava a reforma da Previdência Social, em abril de 2018.
Na época, os protestos contra casos de abuso e de corrupção foram violentamente reprimidos pelo governo. Um relatório da Associação Nicaraguense dos Direitos Humanos (ANPDH) apontou que cerca de 450 pessoas foram mortas. Mais de 100 mil pessoas também foram exiladas.
As primeiras manifestações envolveram trabalhadores, indígenas e estudantes. Quando o movimento cresceu, já exigindo a renúncia de Ortega, os universitários se destacaram e se tornaram também as maiores vítimas de violência, mas diversos setores da sociedade continuam participando dos atos.
Manifestantes se abraçam perto de memorial ao estudante universitário Jonathan Morales durante protesto contra o presidente Daniel Ortega em Manágua, na Nicarágua
Oswaldo Rivas/Reuters
O ano de 2018 é um marco da repressão, diz. “O país já tinha uma liberdade política muito pequena, e, no ano de 2018, isso fica explicitado.”
As eleições de 2021 são outro indicativo do esvaziamento da democracia na Nicarágua. Ortega conquistou o quarto mandato consecutivo, ao receber 75% dos votos. As eleições não tiveram uma real concorrência: 7 pré-candidatos da oposição foram detidos para que não pudessem concorrer.
A Human Rights Watch, no relatório publicado em 2024, aponta Ortega como responsável pela perseguição aos críticos do regime, inclusive a Igreja Católica, “desmantelando o espaço cívico”.
Em novembro do ano passado, as autoridades já haviam fechado mais de 3.500 ONGs, incluindo organizações de mulheres, religiosas, de ajuda internacional e de cuidados médicos. Entre 2018 e 2022, o governo fechou pelo menos 57 veículos de imprensa, segundo a Plataforma Nicaraguense de Redes de ONGs.
Ortega ainda é responsável por retrocessos no direito das mulheres, como a proibição do aborto em todas as circunstâncias desde 2006. Quem pratica o aborto enfrenta sentenças de prisão de até dois anos. A proibição obriga mulheres e meninas a levarem adiante uma gravidez mesmo em caso de estupro.
Em março, o Grupo de Especialistas em Direitos Humanos da ONU ainda divulgou um relatório apontando ter encontrado “motivos razoáveis para acreditar que autoridades haviam cometido crimes contra a humanidade, incluindo assassinato, prisão, tortura, violência sexual, deportação forçada e perseguição política”.
Lula e Ortega, da proximidade ao afastamento
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, no Palácio Itamaraty em Brasília, nesta quarta-feira (28)
Wilson Pedrosa/Agência Estado
Antigo aliado de Ortega, o presidente Lula (PT) decidiu congelar as relações com o governo nicaraguense por um período de um ano em retaliação justamente à prisão de padres e bispos no país.
Em 2022, o governo da Nicarágua iniciou uma ofensiva contra a Igreja Católica do país, confiscando imóveis, dissolvendo ordens jesuítas e prendendo padres e bispos que denunciavam a guinada autoritária do líder esquerdista.
O Brasil tentava atuar como mediador entre o Vaticano e Manágua, e pedia ao governo da Nicarágua que soltasse bispos presos .
Segundo Baghdadi, “chega um determinado momento em que a autocracia se torna tão fechada que qualquer tipo de dissidência se torna um problema. Nem um antigo aliado como é o presidente Lula pode fazer qualquer tipo de pedido de mediação que seja”.
Para ele, a tendência é o autoritarismo piorar. “O Ortega já entrou naquele ponto naquele modo em que o isolamento não incomoda mais. O isolamento já está na conta e faz parte do cálculo político da Nicarágua.”
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