Olimpíadas: todas as controvérsias da edição mais política desde a Guerra Fria.

Desde 1896, a cada quadriênio – com quatro exceções por motivos de guerra e pandemia – boa parte da comunidade internacional se concentra em uma determinada localidade, escolhida com critérios não tão objetivos, mas quase sempre no verão do Hemisfério Norte, para a disputa dos Jogos Olímpicos.

O maior evento poliesportivo do planeta é uma extensão da política desde a Grécia Antiga, quando as batalhas cessavam e os homens das diferentes cidades-estados se enfrentavam nas arenas para atestar quais eram os mais rápidos, mais altos e mais fortes.

Esse é o lema olímpico da Era Moderna – Citius, Altius, Fortius – que completou 100 anos de sua introdução, feita pelo barão Pierre de Coubertin, na oitava edição das Olimpíadas, também realizada em Paris.

O climão entre as colônias, as ex-colônias e as metrópoles

Muita água correu no rio Sena de lá pra cá; a própria França foi responsável indiretamente pela formação de diversos comitês olímpicos pelo Sul Global, com o processo de descolonização da África e Sudeste Asiático em meados do século passado.

Já em maio deste ano, observamos diversos protestos na Nova Caledônia, uma de suas últimas colônias remanescentes – chamadas eufemisticamente de departamentos ultramarinos – nos quais os revoltosos foram às ruas por maior autonomia, somadas às crises de ordem étnica e econômica, que deixaram um rastro de dez mortes, centenas de feridos e detidos.

Um impacto mais simbólico desses atos foi o cancelamento da passagem da tocha olímpica pelo arquipélago, localizado no Pacífico Sul.

Esta é a 3a edição dos Jogos a contar com uma delegação formada exclusivamente por pessoas refugiadas.

A delegação argelina fez questão de lembrar o passado colonialista francês durante a cerimônia de abertura dos Jogos, na sexta-feira, 26 de julho, ao jogar flores no rio que corta a antiga capital metropolitana, em memória às centenas de mártires afogados pela polícia francesa em 1961.

O último país a declarar sua independência foi o Sudão do Sul, emancipando-se do seu homônimo ao norte no começo da década passada, após duas longas guerras civis com recortes étnico-religiosos.

Esta é a terceira Olimpíada  que os sul-sudaneses participam, aumentando em sete vezes o número da delegação, atualmente em 14 atletas, em relação à Olimpíada de Tóquio, quando apenas dois atletas representaram o país.

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Esse aumento se deu pela participação da seleção masculina de basquete, em um projeto encabeçado e financiado pelo ex-jogador Luol Deng, com passagens por cinco equipes da NBA e também pela seleção britânica, quando inclusive participou dos Jogos sediados em Londres em 2012.

Dos 12 jogadores de basquete convocados, apenas cinco nasceram ao sul da fronteira com o Sudão, sendo a maioria filhos da diáspora das últimas sete décadas.

Antes da estreia e vitória por 90 a 79 contra Porto Rico, os Bright Stars passaram pelo constrangimento de ouvir o hino sudanês ao invés do hino sul-sudanês “South Sudan Oyee”, em uma das tantas gafes cometidas pela organização parisiense.

O Sudão do Sul é vizinho da República Democrática do Congo, cujo conflito armado interno nos últimos 25 anos é o mais letal desde a Segunda Guerra Mundial, com mais de 5 milhões de vítimas fatais no coração da África.

Os esportes num mundo em guerra

Tentando chamar atenção para a situação do seu país, a pugilista congolesa Marcelat Sakobi repetiu o ato do compatriota Cédric Bakambu na última edição da Copa Africana de Nações, disputada na Costa do Marfim no começo do ano.

Os comitês olímpicos bielorrusso e russo estão suspensos desde o ano passado pelo COI, por conta da Guerra da Ucrânia.

Ela tapou a boca com a mão esquerda e simulou uma arma com dois dedos da mão direita, apontados para a sua cabeça com lágrimas nos olhos, após a derrota por decisão dividida para a uzbeque Sitora Turdibekova, na categoria até 57kg.

No ano passado, ainda havia 59 conflitos armados ao redor do mundo, sendo 28 deles no continente africano, de acordo com uma pesquisa do Instituto de Investigação da Paz de Oslo, o Prio. Essa soma é a maior registrada desde 1946, atingindo 34 países e resultando em mais de 120 mil mortes.

Como é de se imaginar, o número de pessoas refugiadas também aumentou em 2023, passando de 117 milhões, um acréscimo de 8% em relação ao ano anterior, segundo um relatório da Agência da ONU Para Refugiados, a ACNUR.

Em meio à crise humanitária, esta é a terceira edição dos Jogos Olímpicos a contar com uma delegação formada exclusivamente por pessoas refugiadas, totalizando 36 atletas. A primeira vez em que uma equipe de refugiados participou dos Jogos foi no Rio de Janeiro, em 2016.

Nesta edição, a pugilista de origem camaronesa Cindy Ngamba fez história ao se tornar a primeira refugiada a conquistar uma medalha olímpica, ao se classificar para a semifinal da categoria até 75kg, onde enfrentará a panamenha Atheyna Baylon.

Outros cinco atletas conquistaram medalhas sem representar a bandeira de seus países, sendo três de Belarus e duas da Rússia, neste caso a dupla feminina vice-campeã do tênis.

Ao todo, foram 32 atletas individuais neutros que competiram em Paris, já que os comitês olímpicos bielorrusso e russo estão suspensos desde o ano passado pelo COI, por conta do envolvimento de ambos os países na Guerra da Ucrânia. Vale lembrar que em Tóquio os atletas russos também não puderam competir pelo seu país por conta de um escândalo de doping em diversos eventos esportivos na década passada.

Dois pesos, duas medidas

Essas duas punições revelam um duplo padrão por parte do Comitê Olímpico Internacional e da Agência Mundial Antidopagem.

No primeiro caso, é latente o apoio de diversos atletas israelenses ao conflito armado na Faixa de Gaza, visto que a própria estruturação do esporte em Israel é intrinsecamente ligada às Forças de Defesa.

A África do Sul foi suspensa das edições de 1964 a 1988, por conta do regime do Apartheid.

Um dos porta-bandeiras da delegação israelense foi o judoca de origem ucraniana Peter Paltchik. Ele havia tuitado a foto de um carregamento de bombas customizadas com os dizeres em inglês “From me to you with pleasure”(de mim para vocês, com prazer), acompanhado de um emoji sorridente e das hashtags #HamasisISIS e #IsraelAtWar(“Hamas é o Estado Islâmico” e “Israel em Guerra”, respectivamente).

O caso foi denunciado pela embaixada palestina no Chipre dois dias antes da abertura das Olimpíadas. Ainda assim, o atleta pôde disputar normalmente a competição e ainda conquistou a medalha de bronze na categoria até 100kg.

No século passado, o Comitê Olímpico da África do Sul foi suspenso das edições de 1964 a 1988, por conta do regime do Apartheid no país. Se as vítimas daquele período denunciaram uma situação análoga à da comunidade palestina em Israel, por que o COI não age com o mesmo rigor atualmente?

Outro judoca israelense, Tohar Butbul, da categoria até 73kg, também foi manchete por questões extra-tatame. Pelo sorteio, ele deveria enfrentar o argelino Messaoud Dris na primeira rodada.

Como a Argélia não reconhece o estado de Israel, Dris “forçou o peso” no dia anterior para ser desclassificado da competição, mas não sofrer penas maiores pela Federação Internacional de Judô, como já ocorreu em outras oportunidades com atletas de países sem laços diplomáticos com Israel.

E como não podia faltar no mundo de hoje: o pânico moral da extrema direita

A Argélia também esteve envolvida na maior polêmica desta edição dos Jogos, desta vez com a pugilista Imane Khelif. Nascida na província de Laghouat, no norte do país, onde o monte Atlas e o deserto do Saara se encontram, a lutadora tem tentado garantir sua participação em Paris desde o ano passado, quando foi suspensa pela Associação Internacional de Boxe.

A IAB é presidida pelo russo Umar Kremlev, aliado de Vladimir Putin, que lhe concedeu o monopólio das casas de apostas na Rússia. Na ocasião, Khelif havia derrotado a sensação russa Azaliia Amineva, protegida de Kremlev, nas oitavas de final do Mundial da organização, realizado em Nova Déli.

Após superar a uzbeque Navbakhor Khamidova e a tailandesa Janjaem Suwannapheng na sequência, ela faria a final com a chinesa Yang Liu, quando foi desqualificada por critérios de elegibilidade, pois supostamente teria altos níveis de testosterona no seu organismo.

Porém, a versão da IAB não se sustentou até a semana passada, quando o COI emitiu uma nota na qual acusava a outra organização de má governança e arbitrariedade, destacando que no boxe olímpico o gênero da atleta é baseado nas declarações contidas no passaporte, visto que na Argélia a transexualidade é criminalizada.

Em sua primeira luta na categoria até 66kg em Paris, Khelif viu a oponente Angela Carini, da Itália, abandonar a luta no segundo assalto. A pugilista italiana ganhou o apoio de diversas lideranças da direita chauvinista como sua conterrânea Giorgia Meloni, além de Donald Trump, Javier Milei e outras personalidades reconhecidamente transfóbicas como a escritora J.K. Rowling e o magnata Elon Musk.

Antes do duelo seguinte, a húngara Luca Hámori compartilhou em seu perfil no Instagram um meme no qual comparava a argelina à figura mitológica do Minotauro. Khelif venceu novamente a tailandesa Suwannapheng, como ocorrera no Mundial do ano passado, e agora enfrentará pela medalha de ouro a chinesa Yang Liu, que passou por um processo muito similar de achincalhamento público.

Em resumo, Paris, fazendo jus à sua tradição, testemunhou a edição mais politizada dos Jogos desde os anos 80, quando tivemos boicotes em maior (Moscou e Los Angeles) ou menor grau (Seul), por conta do zeitgeist da Guerra Fria.

E também registrou imagens históricas nos pódios, como as duplas mistas do tênis de mesa com as duas Coreias presentes ou a premiação do solo individual da ginástica artística com três mulheres negras, pela primeira e única vez em quase cem anos, para desespero dos racistas…

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