Do campo à gravadora: como um ‘causo’ do folclore do Brasil virou a 1ª moda sertaneja em disco e criou o maior mercado musical do país


Na semana em que se inicia a Festa do Peão de Barretos e em homenagem aos 95 anos de sertanejo, g1 publica uma série de reportagens para contar a história da 1ª canção caipira gravada no Brasil e como ela moldou o estilo. Como Cornélio Pires gravou a primeira música sertaneja no Brasiil e inaugurou um gênero
Da roda da fogueira às multidões. Das comitivas de boiadeiros às grandes festas de peão. Da viola às guitarras até chegar à mistura com o eletrônico. Do campo às grandes indústrias fonográficas. De “Jorginho do Sertão” aos hits com centenas de milhões de ouvintes. Espera aí: “Jorginho do Sertão”? Mesmo se você for um grande fã de música sertaneja talvez você não saiba que a história do seu estilo preferido deve muito a essa composição.
Bem distante de verdadeiros fenômenos sertanejos que se tornaram a assinatura do gênero, como “Menino da Porteira”, “Saudade da Minha Terra”, “Boate Azul” e “Evidências”, “Jorginho do Sertão” tem a discrição da música caipira do Brasil dos anos 1920, quando era apenas uma manifestação popular do interior e ainda tateava para onde iria.
A “desconhecida” canção inaugurou, com a 1ª gravação em disco em 1929, o estilo musical que se tornou o maior mercado musical do país.
Na semana em que começa a Festa do Peão de Barretos, considerado o maior rodeio da América Latina, e em homenagem aos 95 anos de música sertaneja no Brasil, o g1 publica, a partir desta segunda-feira (12), uma série de quatro reportagens para contar a história da 1ª gravação de uma música caipira em disco no país e como ela formou o gênero que moldou gerações em todas as décadas a seguir.
Na primeira reportagem, você confere como a música caipira – que depois passou-se a chamar de sertaneja – nasce no Brasil do fim do século XIX e como aquele movimento, com origens em festas religiosas importadas da corte portuguesa, chega até maio de 1929, quando o compositor e ativista cultural Cornélio Pires bateu na porta da gravadora americana Columbia e convenceu o proprietário, que nunca tinha ouvido algo parecido com aquilo, a gravar “Jorginho do Sertão”, uma canção criada por ele com fragmentos dos “causos” do folclore brasileiro.
Veja, abaixo, em três perguntas, e confira detalhes no vídeo acima.
Antes de 1929: como nasce a música caipira?
Como se chegou à gravação de 1929?
Como essa gravação influenciou tudo o que se fez a seguir na música sertaneja?
Na última reportagem da série, na quarta-feira (14), você confere um conteúdo especial com um clipe de uma versão exclusiva para o g1 de “Jorginho do Sertão”, na voz de Edson e Hudson.
Cornélio Pires e a Turma Caipira, pioneiros da música sertaneja
Acervo/Pedro Massa/Instituto Cornélio Pires
Antes de 1929: como nasce a música caipira?
Pesquisador de cultura popular e autor do livro “Moda Inviolada”, Walter de Sousa afirmou ao g1 que o primeiro sinal do que viria se tornar a música sertaneja começa a partir da ocupação de territórios do interior do Sudeste do Brasil e do surgimento da figura do caipira.
Mas o que era, efetivamente, esse personagem tão presente no imaginário do brasileiro até hoje? O caipira era nada mais do que o trabalhador das roças que se ocupava de terrenos para produzir ou trabalhava em grandes fazendas do fim do século XIX e início do XX.
Em meio à essa expansão de território, que acontecia principalmente em São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul – estados que reúnem a efervescência do sertanejo até hoje – esse trabalhador começa a dividir a rotina entre o trabalho árduo e os momentos de lazer, que eram, basicamente, conversas ao redor da fogueira e tradições religiosas com inspiração em Portugal, como a Folia de Reis e a Festa do Divino.
É neste momento que começa a nascer um movimento diferente entre esses moradores do campo. Ao presenciar as festas durante a noite após o dia de serviço, o caipira tem o primeiro contato com o instrumento que mudaria a sua história e seria um vetor essencial para a criação da música sertaneja: a viola, também uma herança europeia com referências na Península Ibérica – o fado, maior gênero musical de Portugal, tem a base na viola até hoje.
Viola do século 21: inovações mantêm sentimento caipira vivo no Brasil
Reprodução
“E aí se desenvolve uma musicalidade própria, muito ancorada no instrumento da viola, um instrumento ibérico, que, apesar de ter uma origem erudita, ter vindo com os padres, chega aqui como instrumento dado do clero para liturgias e, de repente, por conta dessas festas, acaba virando um instrumento popular. E aí ela acaba tendo expressões que são bem típicas da cultura caipira. A própria formação das duplas vem dessa tradição, porque na dança de São Gonçalo, por exemplo, você tem duas fileiras, uma de frente para a outra e cada qual encabeçada por um violeiro. Então aí se forma essa constituição típica das duplas”, revelou Sousa.
A junção da sonoridade da viola com os causos que eram contados por esses trabalhadores rurais inicia o desenvolvimento das primeiras modas, ainda apenas como um instrumento de celebração popular e não como um gênero. E como essas canções foram sendo criadas? É aí que entra outra figura importante na criação da música sertaneja: o peão de boiadeiro como um contador de histórias.
A relevância do boiadeiro no surgimento do sertanejo foi evidenciada por outro pesquisador que se debruça no universo da cultura caipira, Romildo Santana. Ao g1, o professor afirmou que, no início do século XX, a ligação entre as pessoas era muito difícil de ser feita porque não havia estradas e, por isso, quem fazia o transporte das notícias e da cultura era o peão.
“Ou seja, o primeiro jornalista acaba sendo o boiadeiro, o peão de carreira, o peão de carga, de carro de boi, que trazia as mercadorias, os farnéis que as pessoas necessitavam ilhadas pelo sertão afora.Tem até uma informação de que na década de 30 e 40, uma pessoa que nascia num determinado lugar permanecia em um raio de 30 quilômetros do lugar onde ela nasceu. Então, era muito difícil se deslocar”, explicou Santana.
Neste contexto, o boiadeiro se torna uma figura de muito prestígio entre as populações dos sertões do interior do Brasil e, com a viola nas mãos, começa a percorrer as cidades musicando os “causos” que presenciavam ou escutavam durante as comitivas.
“Não havia televisão. Então, as pessoas se reuniam para ouvir histórias. Isso aconteceu também nos Estados Unidos. Havia até uma profissão de contadores de histórias. Existe até a arquitetura caipira no Brasil, em que o fazendeiro tem um lugar, um oratório, tem uma série de coisas preparadas para a chegada do boiadeiro. E lá as pessoas se reúnem, as pessoas em volta do lugar, se reúnem para saberem das notícias, para saberem das novidades”, completou o professor.
Como se chegou à gravação de 1929?
Os “causos” musicados que eram criados pelo homem do campo e o boiadeiro tinham uma estrutura narrativa com referências nos contos épicos da alta idade média, ou seja, com começo, meio e fim por se tratarem de histórias, sejam elas reais ou elaboradas pela imaginação do caipira. Por se tratarem de poemas orais ou romances que contavam uma trajetória heróica, essas primeiras músicas caipiras eram muito extensas e chegavam a durar uma noite inteira.
Com o passar dos anos, emerge na sociedade de São Paulo a figura de Cornélio Pires. Por ser de Tietê, no interior de São Paulo, o empresário, escritor, folclorista e jornalista nutre uma grande admiração por essa cultura caipira das modas de viola que surgia nos sertões do Brasil e enxerga um potencial para que aquilo virasse profissional, invadisse o centro urbano e deixasse de ser apenas algo enraizado dentro dos rincões do país.
Cornélio Pires, conhecido como ‘criador da música sertaneja’
Acervo/Pedro Massa/Instituto Cornélio Pires
A partir disso, ele reúne violeiros que conhecia, a maioria deles de Piracicaba (SP) e cria, em 1924, o que se chamou de “Turma Caipira do Cornélio Pires” para percorrer as cidades compondo musicas, se apresentando para plateias e tentar que aquilo se tornasse um gênero musical a partir de uma gravação, considerando que, à época, as grandes indústrias fonográficas já se instalavam no Brasil.
Mas, surge um problema: Como colocar em uma gravação em disco uma música que durava três horas ou noites inteiras?
“Ele [Cornélio Pires] se embate com a questão da indústria fonográfica. A indústria fonográfica tem formatos específicos. Os ‘bolachões’ [discos de vinil] têm uma limitação técnica de registro. E aí aquilo que virava uma noite inteira acaba tendo que caber num lado de três minutos. Então, aí você tem que recortar e adaptar para poder caber no formato. E aí vira música de fato industrial, comercial, por conta dessas adaptações”, pontuou Walter de Souza.
Para promover essa adaptação, Cornélio Pires, com muito improviso, une fragmentos de causos que ouvia, das trovas e do folclore brasileiro, e compõe, em uma faixa de pouco mais de três minutos, a música “Jorginho do Sertão”, que contava a história de um homem que vai trabalhar em uma roça de café e, ao invés de receber o pagamento, ouve a proposta do patrão para se casar com as filhas dele.
Mariano e Caçula, primeira dupla a gravar um disco de música sertaneja no Brasil
Reprodução
Cornélio então decide convidar uma dupla de Piracicaba, a qual era amigo e fazia parte da “Turma Caipira”, para gravar a canção. Se trata de Mariano e Caçula – Mariano, inclusive, é pai de Caçulinha, emblemático músico brasileiro que morreu no último dia 5 de agosto aos 86 anos.
Com a música em mãos, o empresário bate, em 1929, na porta de Alberto Jackson Byington Jr., proprietário do selo da gravadora Columbia no Brasil, e pergunta se seria possível gravar um disco com a música. Ao receber a negativa do industrial, ele resolveu ir para o “tudo ou nada”, ofereceu pagar as cópias do bolso e ousou na proposta.
Ele foi até a Praça da República, numa joalheria de um japonês que era amigo, emprestou uma quantidade de dinheiro, voltou, colocou dois sacos de dinheiro na mesa do Byington e falou assim: ‘Olha, eu estou pagando aqui cinco mil cópias. O Byington falou: Rapaz, você tá louco? Não existem cinco mil vitrolas no Brasil pra tocar seus discos.
O dono da frase acima conhece a biografia de Cornélio Pires como ninguém. Responsável pelo acervo e pelo instituto que mantém viva a obra do escritor, Pedro Massa contou que a música foi um sucesso logo de início. Convencido por Byintgon a gravar só mil cópias, ele começou a percorrer o interior de São Paulo para divulgar o disco e a tiragem acabou tão rápido que ele precisou voltar à gravadora e pedir mais cópias.
Anúncio do primeiro disco de música sertaneja gravado no Brasil
Acervo/Pedro Massa/Instituto Cornélio Pires
Os caras acharam tudo uma grande maluquice, um grande capricho de um caipira que veio do interior. E no fim, deu muito certo. Está aí até hoje”
Como essa gravação influenciou tudo o que se fez a seguir na música sertaneja?
A partir da primeira gravação e do sucesso do disco não só na capital como também no interior, Cornélio descobriu um formato que começou a ser replicado em vários aspectos diferentes. O primeiro, na temática das letras. Nas décadas seguinte, o que se viu foi uma avalanche de canções que exaltam a vida no campo, as histórias épicas do caipira, as vivências do boiadeiro, o amor pela roça e outros temas típicos do sertão do Brasil.
Em meio a isso, começou-se também a se desenhar letras com contextos românticos, o que fez a música sertaneja subir degraus e extrapolar fronteiras. A partir da viola incorporada por Cornélio às canções, vieram as misturas de ritmos, principalmente os latinos, como mexicanos e paraguaios, trazendo ao gênero outros estilos como guarânea, bolero, rancheira, chamamé, entre outros.
A estrutura narrativa de como organizar as estrofes e poder incorporar o humor às modas de viola também só pôde ser construída nas décadas de 1930 e 1940 por conta de “Jorginho do Sertão”, que é uma história cômica do caboclo que arruma três casamentos ao mesmo tempo e no fim não aceita nenhum.
“A questão do chapéu, a questão do lenço, a camisa branca, então, o Cornélio, além de um incentivador, ele era um inovador, ele tinha um olhar talvez empresarial sobre o negócio, no entanto que em 1929, com essa história da gravação dos discos da música caipira, ele criou um mercado, que é o mercado sertanejo, que até hoje existe e hoje é o que mais fatura dentro do cenário musical brasileiro”, afirmou Pedro Massa.
Além disso, o formato consagrado de que música sertaneja é, na maioria das vezes, cantada em dupla, também foi pavimentado por Cornélio Pires. De acordo com Walter de Sousa, quando ele cria um gênero musical, automaticamente toda uma estrutura de composição, gravação e formato precisou ser criada em seguida.
“Acho que dificilmente outro gênero teve uma peculiaridade tão forte como essa do canto, você fala em música sertaneja, você já lembra, é a música que dois cantam, não é a música que um canta. Acho que a partir do Tonico e Tinoco que descobriram a grande fórmula, que eles eram irmãos, tinham um registro muito similar, e aí davam uma harmonização perfeita, e aí todo mundo começa a copiar o jeito deles cantarem”, finalizou o pesquisador.
Cornélio Pires ao lado de dupla caipira
Acervo/Pedro Massa/Instituto Cornélio Pires
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