Ao menos nove médicos tornam a nova gestão do CFM mais conservadora e negacionista

A nova gestão do Conselho Federal de Medicina, o CFM, foi escolhida na última semana. A eleição foi marcada pela polarização – com denúncias inclusive de disparo de fake news – e o resultado não surpreendeu: ganhou o conservadorismo no meio médico. 

Mais de 60% dos conselheiros se reelegeram, e novos representantes, ainda mais à direita, também conseguiram espaço. São esses médicos que, nos próximos cinco anos, estarão à frente de normas e resoluções que afetam diretamente as condutas dos profissionais de medicina e o tipo de atendimento que recebemos.

Neste ano, por exemplo, o conselho resolveu emitir uma norma que tenta dificultar o acesso ao aborto legal no país, proibindo médicos de realizarem a assistolia fetal. Esse procedimento, que evita o nascimento de um feto com sinais de vida, é recomendado pela Organização Mundial da Saúde em casos de aborto realizado em vítimas de estupro que estejam com mais de 22 semanas de gestação.

A resolução do CFM sobre o aborto foi o prenúncio do PL do Estupro. O projeto de lei, que queria equiparar o aborto acima de 22 semanas ao homicídio, repetia os argumentos “de proteger a vida de qualquer um”, como declarou então presidente do órgão, José Hiran da Silva Gallo em sessão no Senado sobre o tema.

Não por acaso, a resolução rendeu ao CFM uma homenagem da ala conservadora da Câmara e do Senado – promovida pelo bolsonarista Paulo Bilynskyj, do PL paulista.  

Essa não foi a única vez que o CFM deu as mãos para a extrema direita: na pandemia aconteceu o mesmo. Segundo o relatório da CPI da Covid, o conselho teve atuação criminosa e antiética no período, ao defender que médicos poderiam receitar tratamento com cloroquina e outros remédios de eficácia não comprovada.

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A nova gestão deve seguir o mesmo padrão. Dos 27 conselheiros, um para cada estado mais o Distrito Federal, identificamos ao menos nove que têm posicionamento público conservador, negacionista, homofóbico ou misógino – quatro já foram citados em reportagens do Intercept Brasil.

Há até uma defensora dos atos golpistas de 8 de janeiro, um indiciado na CPI da Covid e um médico contrário ao aborto, mesmo quando garantido por lei, como em casos de estupro.

Veja quem são.

  • Mauro Luiz de Britto Ribeiro – Mato Grosso do Sul

Presidente do CFM em 2021, o cirurgião-geral Mauro Ribeiro foi indiciado na CPI da Covid pelo crime de epidemia com resultado de morte. Foi ele quem entregou nas mãos do ex-presidente Jair Bolsonaro um parecer favorável à prescrição de hidroxicloroquina.

  • Francisco Eduardo Cardoso Alves – São Paulo

Bicha, viado, baitola, são xingamentos que aparecem com certa recorrência no perfil do X do infectologista Francisco Cardoso. As ofensas que distribui aos críticos na rede social já lhe renderam processos criminais por injúria, difamação, ameaça e danos morais. 

Reprodução X

Em 2022, ele foi condenado, em primeira instância, a três meses de prisão em regime aberto por propagar informações falsas e injúrias contra o médico César Eduardo Fernandes na eleição para a Diretoria da Associação Médica Brasileira, em 2020. 

Cardoso é um ultraconservador. Na pandemia, defendeu uso de medicamentos sem eficácia comprovada e foi contra a vacinação de crianças com menos de cinco anos de idade.

A chapa com a qual concorreu este ano na eleição para conselheiro federal se auto intitulava a “única chapa de direita para o CFM”. 

Em 2023, ele foi firme na luta contra os conselheiros de esquerda no Conselho Regional de Medicina de São Paulo. Em um vídeo publicado no Instagram, em junho do ano passado, Cardoso alertou os colegas para a formação de chapas que vão “tomar de assalto” o conselho e “impor goela abaixo dos médicos a sua nefasta ideologia socialista sobre a medicina”.

Neste ano, médicos paulistas relataram ter recebido mensagens enviadas por SMS, imitando comunicados institucionais do CFM, com pedido de voto para a chapa de Cardoso. O caso está sendo investigado pela Polícia Federal. 

  • Raphael Câmara Medeiros Parente – Rio de Janeiro

O ginecologista é um ativista contra o aborto, mesmo quando garantido por lei. Autor de frases como “no Brasil basta a pessoa alegar o estupro e pode abortar”, ele já defendeu, no Supremo Tribunal Federal, que o estupro só acontece quando envolve “pênis na vagina, com ejaculação”. 

Parente foi quem escreveu a resolução do CFM que proibiu o procedimento de assistolia fetal para abortos em gestações acima de 22 semanas.

Em 2020, ele escreveu um artigo defendendo a abstinência sexual como política contra a gravidez para jovens, seguindo um posicionamento da então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.

Parente caiu nas graças do governo Bolsonaro e assumiu o cargo de secretário de Atenção Primária à Saúde no Ministério da Saúde naquele mesmo ano. Lá, defendeu a investigação de mulheres vítimas de estupro e lançou uma cartilha que relativiza a violência obstétrica.

  • Rosylane Nascimento das Mercês Rocha – Distrito Federal

A médica do trabalho Rosylene Nascimento estava como presidente interina do CFM quando aconteceram os atos golpistas em janeiro de 2023. 

Na ocasião, ela compartilhou imagens da depredação do Congresso Nacional, como a da escultura Justiça, que ficava em frente ao prédio do STF e foi vandalizada com a frase “Perdeu mané”. A médica também postou vídeos dos invasores subindo a rampa do prédio e usou a legenda “Agora vai”.

  • Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti – Alagoas

Em 2020, durante uma reunião online sigilosa com um órgão do Ministério da Saúde, o psiquiatra Emmanuel Fortes apresentou normas e manuais de conduta médica para orientar profissionais a receitarem medicamentos de eficácia não comprovada, sem risco de sofrerem punições éticas. 

Na época, Fortes era terceiro vice-presidente do CFM e disse na reunião que estava “representando os médicos de Alagoas interessados e empenhados em implantar o tratamento precoce”. Nós contamos essa história aqui no Intercept.

A favor da ‘autonomia médica’

Vários outros médicos eleitos estão entre aqueles que defenderam a “autonomia médica”, para decidir sobre vacinação, por exemplo, ou a prescrição de medicamentos comprovadamente ineficazes como a cloroquina durante a pandemia de covid-19.

Um deles é o anestesiologista Diogo Leite Sampaio, eleito pelo Mato Grosso, que fez essa defesa como vice-presidente da Associação Médica Brasileira e membro do Comitê de Crise da Covid-19 do governo federal na gestão do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, em 2020.

Outra defensora do tratamento precoce e da autonomia médica, a dermatologista Yáscara Pinheiro Lages Pinto, eleita pelo Piauí, queria dificultar, em 2021, em meio a uma pandemia, a validação de diplomas estrangeiros. Ela também se articulava, desde 2019, para barrar projetos de lei que apontavam caminhos para a revalidação. 

Já José Hiran da Silva Gallo, ex-presidente do CFM e reeleito conselheiro por Rondônia, era um contumaz defensor de Bolsonaro. Para o médico, as falas do presidente na pandemia eram apenas “deslizes na comunicação” do governo federal.

Em agosto de 2020, quando o Brasil contabilizava mais de 100 mil mortos pela covid-19 e o ex-presidente Bolsonaro já tinha dito que não era coveiro e que tudo não passava de uma gripezinha, o ginecologista José Gallo saiu em defesa do ex-presidente.

Ele disse que eram injustas as tentativas de culpá-lo pela situação do país, pois Bolsonaro “se desdobrou” para aumentar a oferta de leitos, além de contratar médicos e repassar recursos aos estados.

O negacionismo antivacina, no entanto, não terminou. Em fevereiro de 2024, o médico Estevam Rivello, eleito pelo Tocantins, participou de uma sessão temática no Senado para debater a recomendação da vacina contra a covid-19 em crianças de até quatro anos.

Todos os participantes da sessão foram contra a inclusão de crianças nessa faixa etária no Calendário Nacional de Vacinação Infantil.

União das chapas para combater a extrema direita nas próximas eleições

O sentimento da maioria dos médicos progressistas sobre o resultado geral das eleições para a nova gestão do CFM é o de retrocesso – 60% dos conselheiros se reelegeram. Além disso, haverá novos representantes ultraconservadores, como Francisco Cardoso.

Para Rubens Cavalcanti, um dos apresentadores do podcast Medicina em Debate, o que estava ruim, piorou. “A grande vitória foi da ala conservadora, negacionista, ultra-direita”.

Por outro lado, a vitória da chapa Movimento e Ética, no Pernambuco, é vista como esperança. O representante do estado no CFM será o pediatra Eduardo Jorge da Fonseca Lima, considerado progressista.

O representante nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia, Arruda Bastos, destacou também o bom resultado na Paraíba, onde se elegeu o médico Bruno Leandro de Souza.

“A presença de conselheiros que são a favor da ciência, da ética e da democracia vai fazer diferença, mesmo que eles não sejam a maioria”, afirmou Bastos. 

O médico defende que o desafio para as próximas eleições, daqui a cinco anos, é unificar as chapas progressistas, para conseguir candidaturas mais fortes.

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