Como a Coca-Cola ajudou a enterrar PL que proíbe refrigerante em escolas

Um projeto de lei que visa impedir a venda de refrigerantes em escolas está prestes a ser engavetado. Nem o apoio do Ministério da Saúde e de várias entidades de promoção de alimentação saudável e de defesa do consumidor foi o suficiente para emplacar a votação do PL 1755/07 no Plenário. Do outro lado, em oposição ao projeto, estava a Coca-Cola. 

A gigante do setor passou anos atuando nos bastidores para convencer deputados brasileiros a desistirem da ideia. Agora, e-mails inéditos obtidos pelo Intercept Brasil mostram como essa movimentação aconteceu – e dão pistas sobre como funciona a articulação da indústria alimentícia para emplacar suas vontades no parlamento brasileiro. 

Atualmente, nenhuma lei federal proíbe a venda de refrigerante em escolas. Em 2021, a Comissão de Assuntos Sociais do Senado chegou a aprovar o projeto 9/2017, mas a proposta foi arquivada em 2022. Apenas alguns estados e municípios têm legislações locais.

Já o PL 1755 tramita desde 2007 na Câmara. Em 2017, foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e dependia apenas de votação no plenário. Mas, mesmo com requerimento de 13 deputados ao longo de dois anos, o projeto nunca foi colocado na pauta de votação. E os defensores do PL atribuem o congelamento à ação eficiente do lobby da Coca-Cola. 

Em abril de 2017, Vitor Bicca Neto, ex-diretor de alianças estratégicas da empresa, enviou um e-mail no qual estavam copiados assessores parlamentares e entidades que acompanhavam a tramitação do projeto. 

Ele afirmava que a Coca-Cola concordava com a proibição da venda de refrigerantes em escolas – desde que excluísse estudantes a partir dos 13 anos. 

“Acreditamos que até os 12 anos, as crianças ainda não têm maturidade para tomar decisões de consumo. Neste sentido, devemos auxiliar pais e responsáveis a moldar um ambiente em escolas que facilite escolhas mais adequadas”, escreveu o responsável por defender interesses da Coca-Cola no Congresso.

O texto original do projeto dizia, objetivamente, que ficava “proibida a venda de refrigerantes nas escolas de educação básica públicas e privadas”. Mas o lobista não gostou dessa redação e, um mês depois, foi mais enfático no e-mail para o mesmo grupo de pessoas: “A questão do limite de idade de 12 anos é fundamental para nós”.

Representantes de ONGs de promoção da saúde e direitos do consumidor, contrários à proposta da Coca-Cola, propuseram uma alternativa: retirar do projeto de lei as escolas que oferecessem exclusivamente o Ensino Médio, desde que o texto ampliasse a proibição de venda para outras bebidas açucaradas nas instituições de ensino fundamental. Novamente, a proposta não agradou o lobista.

Além de inserir no texto que a proibição valeria apenas para as escolas “cuja maioria dos alunos seja composta de crianças até 12 anos de idade”, a empresa queria que as escolas mistas fossem as responsáveis por “criar mecanismos” para evitar que os estudantes mais novos comprassem a bebida. Este e-mail foi enviado em 18 de abril de 2017.

Paula Johns, da ONG ACT Promoção da Saúde, discordou. “Sob a ótica da saúde pública e da proteção da infância e adolescência […] a segunda metade do parágrafo único [escrito pela Coca-Cola] é bastante problemática, pois permite a venda em escolas mistas, o que tornará complicada a aplicação e a fiscalização da lei”, escreveu no dia 26 de abril de 2017, em resposta ao e-mail de Bicca Neto. 

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Igor Britto, diretor de relações institucionais do Idec, me disse que a lei seria impraticável se fosse aprovada nos termos que a indústria queria. “Escolas de crianças de até 12 anos têm adolescentes mais velhos também. Na prática, seria uma lei sem eficácia alguma”.  

Para Luiz André Gomes, que era assessor do relator do projeto, o deputado federal Luiz Couto, do PT, ficou evidente que a indústria de refrigerantes fugia da responsabilidade pela venda da bebida para estudantes, mesmo os menores de 12 anos. Dizer-se contrária à comercialização do produto para essa faixa etária, afirmou Gomes, não passava de marketing.  

“É uma mentira da indústria. Ela continua vendendo para representantes, que vendem para as cantinas das escolas. Na prática, não há responsabilidade solidária”, ele disse ao Intercept.

Atualmente, Bicca Neto ocupa um cargo mais importante na Coca-Cola – diretor sênior de políticas e relações governamentais. Ele também é presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e Bebidas não Alcoólicas, a Abir.

Procurada por meio da assessoria de imprensa, a Coca-Cola não se pronunciou. 

Empresas se anteciparam à proibição como estratégia de marketing

Em junho de 2016, a Coca-Cola, Ambev e PepsiCo chegaram a anunciar um acordo para não vender mais refrigerante em escolas para crianças de até 12 anos, ou com maioria de estudantes nessa faixa etária. 

Naquela ocasião, o projeto de lei que proibia venda em todas as escolas tinha acabado de ser aprovado na Comissão de Saúde da Câmara. Para Johns, esse acordo era um recado de que o setor não aceitava ser regulado pelo estado. “Sem uma lei, apenas com autorregulação, nada mudaria de verdade”, ela me disse.

Naquele mesmo ano, o Estudo de Riscos Cardiovasculares em Adolescentes, realizado pelo Ministério da Saúde e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com 75 mil estudantes de 12 a 17 anos, já tinha mostrado que refrigerantes eram o sexto produto mais consumido por estudantes nessa faixa etária. 

O estudo ainda havia identificado a ingestão elevada de bebidas açucaradas e alimentos ultraprocessados. As frutas sequer apareceram na lista de preferência dos jovens. 

Uma lei proibindo venda de refrigerantes nas escolas brasileiras desestimularia um mercado de 26 milhões de crianças e adolescentes.

A Coca-Cola é a maior fabricante de bebidas não alcoólicas do Brasil. Além de refrigerantes, produz sucos, lácteos e chás. Seu lucro global foi de quase 2 bilhões de dólares no último trimestre de 2023. Somente na América Latina as receitas da gigante americana aumentaram 16%. 

O Brasil é o quarto maior mercado da empresa, que pretende investir R$ 4 bilhões este ano no país. A medida faz parte da estratégia da Coca-Cola para crescer até 7% em 2024. 

Uma lei proibindo venda de refrigerantes nas escolas brasileiras não ajudaria esses planos porque desestimularia o consumo de um mercado em potencial formado por cerca de 26 milhões de crianças e adolescentes de 6 a 14 anos de idade. Esse é o número de matrículas realizadas no Ensino Fundamental, segundo o último Censo Escolar.   

A proposta também vai contra os princípios do setor, que não aceita ser regulado. O “respeito à concorrência, ao livre mercado e à auto-regulação” está entre os valores inegociáveis da Abir, presidida por Bicca Neto.

Lobista diz que sua proposta foi ‘alinhada’ com o Ministério da Saúde  

Em um e-mail de 13 de abril de 2017, Bicca Neto disse que a proibição limitada às crianças de até 12 anos de idade já tinha sido “alinhada” com a “área técnica do Ministério da Saúde”. 

Naquele ano, no governo de Michel Temer, o ministro da Saúde era Ricardo Barros, do Progressistas, atual secretário de Indústria, Comércio e Serviços do Paraná.

Em nota, o Ministério da Saúde do atual governo afirmou que é favorável ao projeto de lei. “A proibição de bebidas e alimentos ultraprocessados nas instituições de ensino é fundamental para a garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável, com proteção da saúde de crianças e adolescentes no ambiente escolar”.

Para Britto, é possível que a indústria tenha convencido até o autor da proposta, Fábio Ramalho, do MDB de Minas Gerais, a abandonar seu projeto. Ele não foi reeleito deputado federal. Porém, um novo mandato do parlamentar talvez não fizesse diferença. 

‘Pode ter sido coincidência, mas ele se virou de costas e, literalmente, correu. O apelidamos de deputado fujão’.

Segundo me disseram integrantes da ONG ACT Promoção da Saúde e do Instituto de Defesa do Consumidor, o Idec, Ramalho já tinha desistido do projeto. As duas organizações da sociedade civil defendem a proibição de refrigerante em escolas e trabalharam pela aprovação do projeto de lei.

Igor Britto, do Idec, lembra que abordou o ex-parlamentar para tratar do assunto, na época da discussão na CCJ, mas o então deputado fugiu correndo pelos corredores da Câmara.

“Ele estava com pressa para ir a uma reunião, mas gentilmente parou para me ouvir. Quando entreguei meu cartão e disse que era do Idec, foi o suficiente para ele dizer que não tinha tempo. Pode ter sido coincidência, mas ele se virou de costas e, literalmente, correu. O apelidamos de deputado fujão”, contou.

O ex-assessor parlamentar Luiz André Gomes também avalia que Ramalho pode ter cedido a pressões das gigantes de bebidas. “O lobby é bastante presente. A indústria está tendo um controle maior pela não inclusão desse tema no plenário”.

Ramalho não respondeu às perguntas enviadas por e-mail e por WhatsApp.

Arquivamento de PL representa vitória para a Coca-Cola

Britto, representante do Idec, confirma que há uma grande pressão da indústria de refrigerantes em Brasília, especialmente da Coca-Cola. “Nós já estivemos em discussão com eles. Manifestaram muito claramente que não desejam que esse projeto de lei avance, se não tiver a questão da faixa etária”, disse.

Até agora, a vontade da empresa prevaleceu. De acordo com as novas regras da Câmara, aprovadas em 2022, uma proposta parlamentar é arquivada após ser discutida por pelo menos 12 anos. 

Porém, devido a uma regra de transição, os projetos que já estavam em tramitação até janeiro de 2023 serão arquivados ao fim da atual legislatura. É o caso do PL que contraria os interesses da Coca-Cola. 

Se não for votado nos próximos dois anos, o arquivamento da proposta, após quase duas décadas de discussão, será inevitável.

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