Aos 71 anos, mulher encara jornada de 1,6 mil quilômetros de mula da Bahia até Barretos


Ao lado de outros tropeiros, Marinalva Carneiro viajou em comitiva da cidade de Pé de Serra até a maior festa do peão da América Latina no que considerou o maior desafio da vida. A baiana Marinalva Carneiro viajou com mulas por 1,6 mil quilômetros até Barretos, SP
Nondas Júnior
Uma comitiva de 11 tropeiros que sai de Pé de Serra (BA) e chega, de mula, à Festa do Peão do Barretos, impressiona qualquer pessoa. Mas essa história consegue ficar ainda mais interessante e curiosa quando se descobre que, entre o grupo, há uma única mulher. Marinalva Carneiro encarou, aos 71 anos, a jornada de 1,6 mil quilômetros e 30 cidades no lombo do animal, enfrentou percalços pelo caminho, colecionou histórias e chegou, orgulhosa, ao maior rodeio da América Latina.
O grupo saiu do município do interior da Bahia no dia 3 de julho e, agora, sonha em fazer uma entrada especial na arena de rodeios mais famosa do país.
Ao g1, Marinalva afirmou que não imaginava que a presença dela na comitiva teria tanto impacto por ser a única mulher e a veterana do grupo. Apesar de reforçar que não havia diferenças e “todo mundo se ajudou”, comemorou as marcas que conquistou e lições que deixou.
“Uma mulher de 71 anos no meio da tropa acaba se tornando um exemplo de resistência e determinação. Esse foi meu sonho realizado”, disse.
Marinalva durante viagem de mula da Bahia até Barretos
Nondas Júnior
O percurso teve algumas dificuldades, como precisar de atendimento médico três vezes por conta de uma foliculite na virilha.
“Os meninos da tropa viraram meus amigos, minha família. Todas as vezes que precisei de atendimento médico, todos paralisavam a tropeada e me aguardavam. Eu não quis desistir e eles foram essenciais nesse processo, pois precisei de ajuda, já que fiquei muito machucada, tomando injeções de antibiótico e necessitando de curativos até me curar”, destacou.
De parteira a tricampeã baiana
A mais velha do grupo de tropeiros é tricampeã baiana de montaria em cavalos. Viúva e mãe de um filho, Marinalva já foi enfermeira e parteira antes de mudar de profissão. “Eu já vivi muitas coisas em minha vida, com 32 anos eu comecei a montar em cavalos. Há cinco comecei a montar em mulas e também competir, mas hoje em dia dei espaço para as meninas novas e não faço mais parte das competições”, revelou.
A um mês de completar de 72 anos, ela considera um presente o convite para participar da “tropeada”. “O convite veio para que eu pudesse realizar um sonho. Eu pude ter ajuda para conseguir fazer parte dessa família. Tenho certeza que levarei todos para a vida, muito além desses dias de viagem que estivemos juntos”, contou “Marinalva do Jegue”, como é conhecida.
“O apelido surgiu porque sempre fui a única mulher montando muares (mulas) nas cavalgadas, eu o adotei com orgulho. Minha motivação para participar da comitiva foi o sonho de conhecer Barretos. Quando soube da viagem, não pensei duas vezes. Pedi férias e segui com o grupo. É a realização de um sonho. Se tivermos a oportunidade de entrar na arena, será mais uma realização”, explicou.
Marinalva durante pausa para alimentação na comitiva que viajou até Barretos
Nondas Júnior
Sonho de Barretos
A ideia da ousada viagem surgiu de Marinho Fernandes, de 52 anos, que é vocalista da banda de forró Sela Vaqueira. Marinho, que já havia participado da Festa do Peão de Barretos em 2019, ficou inspirado por um relato de outro tropeiro que havia percorrido uma longa distância para chegar ao evento.
“Quando vi um senhor entrando na arena após percorrer mais de 2 mil quilômetros, isso tocou meu coração. Eu sabia que precisava fazer o mesmo, então decidi sair de Pé de Serra e vir até Barretos,” contou.
A preparação para essa jornada foi intensa. “Para garantir que as mulas estivessem em ótimo estado, fizemos caminhadas mais curtas e fornecemos a melhor alimentação possível. Consideramos as mulas como atletas e, por isso, é crucial que estejam bem preparadas,” lembrou Marinho.
Além de treinamento físico, as mulas têm recebido acompanhamento veterinário contínuo e descansam por no mínimo 36 horas entre os trechos. Ao todo, foram 19 mulas, oito delas com viajantes montados, e, na volta da viagem, os animais voltarão embarcados.
Marinalva chegou a Barretos depois de viajar 45 dias de mula
Ricardo Nasi/g1
Bastidores
O grupo contou com o chef de cozinha “Baiano da Costela”, que preparou pratos típicos para os tropeiros ao longo da jornada. A cada cidade que passaram, abasteciam a cozinha e todo o preparo ficou por conta dele.
“Comemos comidas como feijão tropeiro, baião de dois, arroz carreteiro, muito cuscuz com carneiro, além da especialidade do chefe, que é o churrasco de costela. Nos momentos de folga, a cozinha ficava por minha conta”, afirmou Marinho.
A logística também incluiu um caminhão de apoio com cozinha completa, redes, colchões e barracas. “Nossa equipe de apoio foi fundamental para garantir que mantivéssemos a qualidade da alimentação e o conforto durante a jornada,” completou.
Foram três carros de apoio com reboque, que ficaram responsáveis por levar os mantimentos, cozinha e acessórios (selas, arreios, feno).
Os custos, segundo a organização, ficaram associados aos cuidados com os animais (remédios, feno, consultas com veterinário e exames), além da alimentação e combustíveis. “Não tivemos a necessidade de pagar pelo pernoite na roça nem pelos pousos e custamos tudo dividindo as despesas entre os membros da comitiva”, pontuou o organizador.
Mesmo sem pouso definido ao longo do percurso, Marinho destaca que o grupo foi bem acolhido durante os mais 1.600 quilômetros. “Sempre que chegávamos a um local e pedíamos espaço para as mulas e um canto para nós, fomos bem acolhidos, mesmo não conhecendo ninguém do lugar”, falou.
Marinho Fernandes, líder da comitiva que viajou da Bahia até Barretos
Nondas Junior
Rumo a Barretos: a trilha percorrida
Os 11 muladeiros que, em sua maioria não se conheciam antes dessa jornada, são de distintas cidades da Bahia: Marinho da Sela Vaqueira e Adriano Rios (Pé de Serra), Natanael Dantas e Adailton Carneiro (Santaluz), Alfredo Leal (Camaçari), Marinalva Carneiro (Itiúba/BA), Junior da Jega (Ipirá), Silvinho (Tanquinho), Paulo Lobo e Nonato (Senhor do Bonfim), e Aion (Muritiba).
“Geralmente, planejamos percorrer cerca de 40 km por dia, mas se houver muita pedra na estrada ou muitas subidas, diminuímos o percurso, se necessário. Sempre paramos para dar água e alimentar os animais, fazendo uma média de 6 km por hora e passando cerca de 7 horas montados por dia, com duas horas de descanso no meio do caminho”, ressaltou Marinho.
O grupo passou por 15 cidades na Bahia e 15 em Minas Gerais e uma em São Paulo, antes de chegar à Barretos. Veja quais foram:
Na Bahia
Pé de Serra
Ipirá
Itaberaba
Iaçu
Marcionílio de Souza
Maracás
Barra de Estiva
Contendas do Sincorá
Tanhaçu
Aracatu
Brumado
Guajeru
Jacaraci
Mortugaba
Em Minas Gerais:
Montezuma
Santo Antônio do Retiro
Mato Verde
Catuti
Porteirinha
Janaúba
Montes Claros
São João da Lagoa
Lagoa dos Patos
Pirapora
Presidente Olegário
Patos de Minas
Guimarânia
Perdizes
Uberaba
Em São Paulo:
Guaíra
Marinho e a comitiva enfrentaram vários desafios durante a viagem, incluindo uma perigosa descida íngreme em Mato Verde (MG). “Os caminhos desconhecidos são sempre um desafio. Andar em estradas movimentadas também é arriscado, pois as mulas podem se assustar facilmente,” contou.
Comitiva viajou de mula da Bahia até Barretos
Nondas Junior
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