Sem apoio, indígenas usam regador de jardim para tentar conter queimadas no Maranhão

Em meio ao incêndio que desde outubro atinge a Terra Indígena Alto Turiaçu, no Maranhão, onde vive o povo Ka’apor, uma árvore chama a atenção. Ela está queimando de dentro para fora, e o fogo que atinge a copa vai descendo pelo interior do tronco. A cena impressionou e entristeceu os indígenas que tentavam combater as chamas na região, como se o fogo da árvore em brasa também estivesse queimando dentro deles.

A árvore queimando por dentro.

São tantos os focos de queimada que os Ka’apor formaram um grupo de combate aos incêndios, composto por pelo menos 25 indígenas, inclusive meninos de 12 anos.

O Intercept Brasil acompanhou o trabalho incansável dos indígenas. Nenhum deles tinha treinamento nem equipamentos adequados. Vestindo camisetas e bermudas, sem luvas e botas apropriadas, eles usavam regadores de jardim para apagar o fogo. Para transportar a água, era preciso percorrer a pé 12 quilômetros mata adentro, subindo e descendo os morros da região, carregando os garrafões.

Muitos tentavam combater o fogo usando apenas sandálias ou até mesmo descalços. Um adolescente de 13 anos chegou a sofrer queimaduras no pé. Riba Ka’apor caiu em um buraco escondido pelas cinzas do fogo e se queimou enquanto acompanhava o pai, Hira Ka’apor, nas ações para tentar controlar o fogo.

Durante o trajeto, as lideranças indígenas chamavam a atenção não apenas para as árvores carbonizadas, mas também para os animais. No caminho, havia tartarugas, cobras e outros bichos mortos pelo fogo. 

Diante da dificuldade para controlar os múltiplos focos de incêndio, cansados e feridos, o Tuxa Ta Pame, como é conhecido o conselho de gestão Ka’apor, se reuniu e decidiu pedir ajuda ao Prevfogo do Maranhão, braço do  Ibama responsável por combater incêndios. No entanto, o órgão minimizou a gravidade da situação e culpou os próprios indígenas pelo fogo. 

Em uma mensagem de WhatsApp obtida pelo Intercept Brasil, a coordenadora do Prevfogo, Francinete Pacheco, afirma que o Alto Turiaçu “tem focos de incêndios gerados pela queima de roças dos próprios indígenas, que não estão tomando os devidos cuidados para uso do fogo”. “Mas não é verdade que esteja ‘pegando fogo’, como se a terra toda estivesse em chamas”, ela disse. 

A mensagem foi enviada por Pacheco ao Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Ministério de Desenvolvimento Agrário, que havia sido acionado pelos Ka’apor, por meio do advogado Diogo Cabral, para pedir apoio no combate aos incêndios.

Foto: João Paulo Guimarães/Intercept Brasil

A coordenadora informou que o Ibama tem equipes do Prevfogo trabalhando na área desde 6 de setembro, que só deixaram a região justamente no final de semana em que eu estive no local, por conta da exaustão. Afirmou ainda que a Funai já havia autorizado a entrada do Corpo de Bombeiros e que eles já estariam no local trabalhando junto ao Ibama.

Pacheco também colocou em xeque a queimadura do adolescente. “Essas informações não correspondem a toda verdade. Esse indígena que machucou o pé não foi no fogo, tem relação apenas porque o acidente aconteceu quando ele voltava do campo pilotando uma moto e furou o pé em um toco”, disse. Quando confrontada pela reportagem, ela voltou atrás e alegou que teria se confundido.

Questionado pela reportagem, o Ibama também afirmou, por meio da assessoria de imprensa,  que “desde o início de setembro, o Prevfogo atua no combate aos incêndios no Maranhão, inclusive na região do Alto Turiaçu”, porém, não deu detalhes dos dias ou locais exatos onde atuaram. 

Informou ainda que, “em relação à equipe de reportagem não ter encontrado os brigadistas no Turiaçu, é possível que tenha havido desencontro entre a equipe do Intercept e o Prevfogo, visto que a região apresenta vários focos de incêndio para combater”. 

Apesar de a Terra Indígena Alto Turiaçu ter mais de 500 mil hectares, a reportagem esteve na região entre 29 de outubro e 3 de novembro e, ao longo destes cinco dias, não viu nenhuma equipe de bombeiros, Ibama ou Prevfogo apoiando diretamente os indígenas Ka’apor a conter as chamas. Os indígenas também afirmam que não avistaram brigadistas em seu território no último mês.

Foto: João Paulo Guimarães/Intercept Brasil

Percorremos estradas pelos municípios de Presidente Médici, Centro do Guilherme, Maranhãozinho e Santa Luzia do Paruá, e, em alguns trechos, tivemos dificuldade de prosseguir, já que paredes de fumaça tornavam impossível ver o que havia do outro lado. Em certos pontos, as chamas chegavam a sete metros de altura. Em nenhum deles, porém, foram avistadas equipes de órgãos governamentais combatendo o fogo.

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Questionado se estava alinhado com a acusação da coordenadora do Prevfogo, o Ibama afirmou: “A origem dos incêndios pode ser múltipla e, para uma confirmação precisa, é necessária a análise pelos órgãos competentes. É importante ressaltar que, como a chegada das chuvas no estado, os povos indígenas, de acordo com sua cultura tradicional iniciam a prática de queima de roçados. […] Essas queimadas, embora possam ser registradas como focos de calor em monitoramento por satélites, não necessariamente configuram incêndios florestais”.

Quando o Intercept insistiu em um posicionamento, o órgão afirmou que “a resposta é essa mesma. Por conta da cultura do fogo, muitas vezes esses focos de queima de roça podem sair do controle. Não podemos afirmar que nesse caso em questão foi o que ocorreu”.

Foto: João Paulo Guimarães/Intercept Brasil

Sobre a fala da coordenadora, a Funai respondeu à reportagem: “De acordo com a fala transcrita no e-mail e atribuída à gestora do Prevfogo, não identificamos qualquer ‘acusação’ contra os indígenas, de que estariam queimando seu próprio território”. 

O órgão afirmou ainda que estão envolvidos, “na Operação de Combate aos Incêndios Florestais no Maranhão 225 servidores do Prevfogo/Ibama, dois do Ibama e dois da Funai”.

João Paulo Guimarães/Intercept Brasil

Há indícios de que focos de fogo começaram em fazendas vizinhas

O fogo que rapidamente queimou parte do território dos Ka’apor no fim de outubro pode ter se originado em pastagens de ao menos três propriedades que fazem fronteira com a Terra Indígena, de acordo com cruzamento de dados realizado pelo biólogo Antônio Marcos Pereira. Juntamente com os Ka’apor, ele desenvolve um mapeamento da região para que os próprios indígenas possam fazer a gestão e proteção territorial.

Cruzamento de dados mostra as datas dos primeiros focos (à direita, em amarelo), em propriedades rurais no entorno da terra indígena.

A partir de informações do Acervo Fundiário, do Sistema de Gerenciamento de Áreas, ambos do Incra, e do programa de queimadas do INPE – que fornece dia e hora dos focos de incêndio –, Pereira identificou a possível origem dos primeiros focos de fogo: Fazenda da Alegria,Fazenda São Francisco e Fazenda Santa Maria. O Prevfogo e o Ibama foram questionados sobre a origem dos incêndios, mas não houve resposta. Os proprietários das fazendas não foram localizados.

Para um dos Tuxa (como são chamados os caciques na língua ka’apor), que não pode ser identificado porque está em um programa de proteção diante das ameaças que já sofreu, é preciso identificar e responsabilizar os fazendeiros que vêm provocando os incêndios.

Foto: João Paulo Guimarães/Intercept Brasil

Não foi só ao Prevfogo que os Ka’apor pediram ajuda. Eles também entraram em contato com a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular, que  informou os órgãos competentes a respeito dos incêndios e das invasões dentro da Terra Indígena.  

A partir disso, em 1º de novembro, a procuradora da República Anne Caroline Aguiar Andrade Neitske encaminhou um ofício para o superintendente regional da Polícia Federal do Maranhão, Sandro Rogério Jansen Castro, solicitando providências no prazo de 72 horas. 

Também foram emitidos ofícios com o mesmo prazo para a superintendente do Ibama no Maranhão, Ciclene Maria Silva de Brito, e para a coordenadora Regional da Funai, Edilena Erroure Torino. Após vencido o prazo, o Intercept Brasil questionou os órgãos oficiados, mas nenhum respondeu.

Legado de violência e resistência

As ameaças e as invasões ao território do povo Ka’apor são constantes. Em um dos últimos episódios, ocorrido em outubro, os indígenas flagraram um grupo de seis homens que havia derrubado árvores de grande porte próximo à Aldeia Ywy Ãhurenda e já estava com a madeira dentro de um caminhão, para vender a serrarias locais. O roubo de madeira é uma das principais práticas responsável por impactos socioambientais e conflitos agrários na região.

Os indígenas exigiram a devolução da madeira, sob ameaça de queimar o caminhão, e os invasores aceitaram descarregar a carga, deixando o local. Human Ka’apor contou que os invasores foram avistados por um indígena que passava de moto, viu a ação e acionou os guardiões. Há mais de uma década, diante da inação das autoridades, parte dos Ka’apor resolveu criar uma guarda para defender o território por conta própria.

Foto: João Paulo Guimarães/Intercept Brasil

O histórico de resistência desse povo se intensificou após a morte de um de seus líderes, o cacique Sarapó, em 14 de maio de 2022. No caminho para a Aldeia Ararorenda, os Ka’apor pararam diante do túmulo para prestar homenagens. O local é um símbolo da violência e impunidade perpetradas durante anos contra sua etnia.

Sarapó era conhecido por toda comunidade. Protetor da floresta, foi morar com sua família na área de proteção Ararorenda, onde daria início à nova aldeia e expulsaria os invasores e agressores de seu povo. Ele morreu aos 45 anos e até hoje o motivo de sua morte não foi esclarecido. 

‘Houve mudança de governo, mas a situação de invasão, a ameaça e a violência seguem’.

“A gente está acreditando que não é a morte natural, porque saiu muita espuma pela boca e muito roxo aqui (aponta para o pescoço). Acho que o veneno prendeu o estômago, né?”, disse um dos Tuxa.

Mesmo assim, os Ka’apor resistem, através do tempo, contra a violência e o abandono das autoridades. “Todas as situações de conflito e de violência territorial e violência contra os Ka’apor decorrem de uma violenta omissão do estado em proteger a etnia nos últimos anos”, afirma Cabral, o advogado dos Ka’apor. 

João Paulo Guimarães/Intercept Brasil

“Houve mudança de governo, mas a situação de invasão, a ameaça e a violência seguem. O Conselho de Gestão Ka’apor, Tuxa Ta Pame, por mais de uma década vem denunciando o Estado brasileiro, buscando sua autonomia face aos desmandos dos órgãos de Estado e fazendo denúncias no âmbito internacional, tanto na ONU quanto na Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, completa Cabral.

Quando chega a noite no Alto Turiaçu, a temperatura cai para abaixo dos 20ºC e o céu fica bem escuro na aldeia Ararorenda. Mesmo assim, é difícil enxergar as estrelas. A fumaça não deixa.  

Esta reportagem foi produzida com o apoio da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, dentro do projeto Defensores Ambientais. Também é apoiada pela Agence Française de Développement. As ideias e opiniões aqui expressas são de responsabilidade exclusiva dos autores e não refletem necessariamente as opiniões da Agence Française de Développement.

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