O caso de amor entre Trump e as big techs

O Vale do Silício, nos EUA, aderiu a Donald Trump e sua corrente política, MAGA, “Make America Great Again” (Torne a América Grande Novamente).

O vice-presidente eleito, J.D. Vance, do Partido Republicano, é um ex-investidor de capital de risco que tem profundos vínculos com o meio tecnológico conservador, e sua escolha incentivou vários nomes importantes do setor a declararem apoio a Trump. Inicialmente, Elon Musk havia prometido centenas de milhões de dólares em apoio à campanha, antes de pensar melhor e lançar um site potencialmente fraudulento de registro de eleitores, posteriormente validado pela justiça, e coletar dados para a campanha de Trump. Outros, como os investidores Marc Andreessen e David Sacks, também se comprometeram plenamente.

Tudo isso contraria os estereótipos do setor como um bastião dos libertários contrarianos e liberais da “costa esquerda” (uma brincadeira com a costa oeste do país), mas não há nenhuma novidade nos poderosos conservadores do Vale do Silício. Na verdade, eles estavam no vale muito antes do silício.

Mas em meio à atenção que Vance e sua claque da região de São Francisco vêm recebendo, a imprensa deixou passar uma coisa importante: Trump não apenas atrai bilionários de tecnologia, ele também é um deles.

O começo da campanha de Trump em 2016 deve agradecimentos relevantes ao conservador magnata da tecnologia Peter Thiel, ex-aluno da Universidade de Stanford, na Califórnia, que fez uma aposta aparentemente peculiar ao apoiar o ex-astro de reality shows. Durante seu tempo em Stanford, Thiel era um conservador questionador, um estudante universitário em meio à enorme conspiração de direita que depois Hillary Clinton acusou (com razão) de tentar derrubar seu marido. À medida que foi galgando degraus no mundo das empresas de tecnologia, Thiel levou junto sua rede centrada em Stanford. Depois de enriquecer com o PayPal, Thiel conseguiu assento nos conselhos de administração do Facebook e da Instituição Hoover, sendo que esta serviu de plataforma para suas teorias políticas.

‘Trump foi um investimento de longo prazo do tipo que os investidores do Vale do Silício apreciam, e Thiel tirou a sorte grande.’

Trump foi um investimento de longo prazo do tipo que os investidores do Vale do Silício apreciam, e Thiel tirou a sorte grande. Ele conseguiu espaço de fala na Convenção Nacional do Partido Republicano, mas mais importante, ele organizou uma reunião entre Trump e os maiores nomes do Vale do Silício. Desde essa reunião com Trump, as empresas do Vale do Silício foram avançando lentamente no papel de principais contratadas do governo, algo que até então pertencia a empresas como Verizon e Boeing.

Nesa reunião, no começo de seu mandato, Trump prometeu que ajudaria a indústria de tecnologia a “ir longe”, e ajudou, inflando até um tamanho descomunal o que o New York Times chamou de “bolha de tecnologia que nunca estoura”.

Simplesmente com base no desempenho passado, não deveria ser uma surpresa vermos os bilionários de tecnologia apoiarem Trump. Foi isso que Nick Bilton, da revista Vanity Fair, concluiu,  escrevendo que os líderes pró-Trump do Vale do Silício mantêm um foco “concentrado nas políticas que afetam diretamente seus resultados: tributação, regulação, e políticas de imigração que beneficiem suas empresas.”

Trump viu que os magnatas da tecnologia estavam imprimindo dinheiro, e decidiu entrar no jogo também, com sua própria marca de NFTs. As janelas mal tinham sido substituídas no prédio do Capitólio após a tentativa fracassada de golpe em 6 de janeiro de 2021, e o ex-presidente já estava mudando o curso. Sempre em sintonia com o que poderia trazer maior retorno do setor com o menor esforço, Trump se valeu das mesmas ferramentas financeiras que inflaram a instável bolha tecnológica. Como inspiração e principal acionista da empresa da redes sociais Truth Social, ele se transformou em um empresário de tecnologia. Em 2024, com o ressurgimento da sorte política de Trump, a Truth Social se lançou no mercado de ações. Agora, segundo a Forbes, a maior parte do patrimônio líquido de Trump — 5,6 bilhões de dólares (32,3 bilhões de reais) de um total de 7,5 bilhões (43,3 bilhões de reais) — decorre de ações fundadoras de uma empresa de rede social, assim como Mark Zuckerberg.

Como se vê, Trump se encaixa perfeitamente como bilionário de tecnologia. Anteriormente pouco interessado em criptomoedas, ele acabou adotando a farsa como sua, e chegou a ser a atração principal de uma recente conferência Bitcoin 2024. Lá, Thiel garantiu aos participantes que a mineração de bitcoin “floresceria” em um segundo mandato de Trump. Esse apoio declarado encorajou a turma das criptomoedas a apoiar o Partido Republicano, sob o comando dos gêmeos Winklevoss, conhecidos por serem os perdedores do Facebook. A Truth Social abriu o capital tão rapidamente graças a um truque do mercado de ações conhecido como SPAC (companhias com propósito específico de aquisição), que foi criado e promovido pelo veterano e chato da tecnologia Chamath Palihapitiya, que também estava ao lado de Trump.

Sempre em sintonia com o que poderia trazer maior retorno do setor com o menor esforço, Trump se valeu das mesmas ferramentas financeiras que inflaram a instável bolha tecnológica.

Para encontrar um propósito em comum com os oligarcas da tecnologia, Trump não precisou aprender a diferença entre silício e silicone. Embora os líderes do setor gostem de ser vistos como um bando de gênios da ciência, com grande frequência são só uns enroladores como Trump. Sacks, um dos maiores apoiadores do presidente eleito no meio tecnológico, investiu em uma startup de saúde digital chamada Done Global, cujos executivos estão respondendo a acusações de operarem uma glamourosa distribuidora irregular de comprimidos da anfetamina Adderall.

As negociações de Trump com autocratas e oligarcas estrangeiros dificilmente pesariam contra ele. Sam Altman, o garoto prodígio do Vale do Silício, vem tentando levantar literalmente trilhões de dólares em recursos do petróleo no Golfo Pérsico para seu novo projeto, a partir da onda em torno de sua empresa OpenAI, que tem um prejuízo de bilhões — o que é um plano perfeitamente digno de Trump.

Mesmo que Trump tenha se tornado o primeiro bilionário da tecnologia a ser presidente dos EUA, acompanhado por um vice-presidente que é investidor de risco, ele não é o primeiro superconservador na Casa Branca com fortes vínculos e apoio na região de São Francisco.

O primeiro presidente dos EUA oriundo do Vale de Santa Clara foi eleito em 1928, e ajudou a transformar sua instituição de origem, a Universidade de Stanford, em uma força motriz do conservadorismo americano, que continua a impulsionar o movimento. Herbert Hoover era um engenheiro de minas, não de computação, e era tão jovem, rico e bem-sucedido que se tornou uma figura nacionalmente reconhecida por suas investidas de negócios. Como Thiel, quase um século depois, Hoover levou sua rede de Stanford para ajudá-lo a implementar seu projeto político, primeiro como secretário de comércio, depois como presidente, e por sua vez, retribuiu a Stanford. Após sua derrota para Franklin Delano Roosevelt, em 1932, Hoover construiu uma imponente cidadela do conservadorismo estadunidense dentro do campus. A Instituição Hoover permanece firme até hoje como um bastião do pensamento e da estratégia da extrema-direita.

Stanford passou a se especializar nos engenheiros ricos e famosos que navegam entre os mundos da indústria e da política conservadora. David Packard, que sem dúvida prefere ser lembrado como um dos fundadores da Hewlett Packard, foi vice-secretário de defesa de Richard Nixon entre 1969 e 1971, durante a Guerra do Vietnã, e fez parte do conselho da Instituição Hoover, trocando cartas com o ex-presidente sobre formas de combater o marxismo.

William Schockley Jr., que foi criado em Palo Alto, filho de engenheiros de minas de Stanford e integrantes da Instituição Hoover, foi o homem que levou o silício para o vale, como um dos inventores do transistor. Ele também ficou conhecido como um racista delirante que usou sua posição pública e seu cargo em Stanford para promover o Repositório de Escolha Germinal, um banco de esperma eugenista para gênios. Mesmo sem saber, Musk não está lidando exatamente com material novo, digamos assim.

Não faltam figuras desse tipo na breve história da Califórnia. Basta pensar em Alexander M. Poniatoff, que combateu os bolcheviques como piloto do Exército Branco contrarrevolucionário na Guerra Civil Russa, e fundou uma das primeiras empresas do Vale do Silício, a Ampex. Poniatoff ainda estava vivo no final dos anos 70, quando a Ampex contratou um programador chamado Larry Ellison, cuja empresa própria, a Oracle, o tornaria um dos homens mais ricos do mundo. Entre os interesses que Ellison já teve estão o Japão, o iatismo, e a anulação das eleições de 2020 para reempossar Donald Trump. A Oracle vem aparecendo no noticiário como a empresa por trás do banco de dados de pessoal do Projeto 2025 da Fundação Heritage, que foi anunciado pela fundação como fundamental para o próximo governo republicano.

‘Os planos de Hoover para um mundo de direita, liderado pelos EUA de direita, liderados pelos direitistas de Stanford vêm sendo espantosamente bem-sucedidos ao longo do último século.’

Não é só que os atuais conservadores da tecnologia seguem inadvertidamente os passos de Hoover (embora eles o façam); as lideranças do Vale do Silício estão a apenas um ou dois graus de distância do próprio  sujeito. Houve alguns imprevistos na rota — a Grande Depressão, o New Deal, a Revolução Chinesa, a Revolução Cubana, a derrota no Vietnã, a derrubada do apartheid na África do Sul, etc — mas os planos de Hoover para um mundo de direita, liderado pelos EUA de direita, liderados pelos direitistas de Stanford vêm sendo espantosamente bem-sucedidos ao longo do último século. E os discípulos de Hoover sempre souberam recrutar um bom testa de ferro.

Ronald Reagan buscou dezenas de autoridades públicas de alto escalão na Instituição Hoover e na comunidade empresarial da região de São Francisco. Ao se reunir com George Schultz — um figurão republicano que na época era secretário de Estado, mas atualmente talvez seja mais conhecido nos EUA como o nome de peso por trás dos estelionatários da empresa de exames Theranos —, o governante soviético Mikhail Gorbachev disse uma vez que o governo Reagan era só uma fachada para a Instituição Hoover. Schultz foi uma das figuras políticas mais poderosas do Partido Republicano até sua morte, em 2021, aos 100 anos de idade, em sua casa que era como um complexo no campus de Stanford.

George W. Bush também acenou para a região quando concorreu à presidência em 2000, e seus grandes apoiadores do Vale do Silício se organizaram sob o rótulo “B2K”. Ele foi a Stanford para obter a aprovação de Shultz, levando sua discípula, Condoleezza Rice, então reitora da Universidade de Stanford. Ela ganhou espaço durante o governo Bush, de assessora de política externa a assessora de segurança nacional, e depois, a secretária de Estado. Rice está de volta a Palo Alto atualmente, como diretora da Instituição Hoover. Dentre os outros recrutas de Bush no Vale do Silício estava o presidente da empresa de biotecnologia Gilead Sciences, que ele nomeou secretário de Defesa: Donald Rumsfeld.

Se formos associar um dos partidos com o setor de tecnologia, provavelmente será o Partido Democrata — é daí que vem a surpresa com todo o apoio a Trump. Al Gore e os outros “democratas Atari” levaram crédito por financiarem as pesquisas que levaram à internet, e o governo de Barack teve uma grande intersecção com o Vale do Silício, recrutando funcionários da área de tecnologia e contribuindo com decisores políticos que passaram a fazer o lobby do setor. Mas embora seja verdade que os trabalhadores da área de tecnologia tendem a apoiar o Partido Democrata, seus chefes enxergam de outra forma.

No Vale do Silício, o interesse econômico privado não é apenas o interesse econômico privado; há de 100 anos, ele vem sendo transformado pela comunidade em uma filosofia política. É um mito que a direita tecnológica seja libertária; eles acreditam no estado, mas sempre pensaram que o estado deveria trabalhar para eles. E qual a melhor forma de garantir que o estado trabalhe para você, que não se tornar presidente?

Donald Trump aderiu à tecnologia como um sapo pula na água, porque é um setor comandado por direitistas bélicos e enganadores. Ele agora não é apenas como eles: ele é um deles. Assim como Thiel, Musk, Altman, ou qualquer outro, Trump é um avatar do Vale do Silício — independentemente de já ter usado um computador.

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