‘O brasileiro não aguenta mais impostos’ e outros mitos

Nas redes sociais, memes sobre o suposto ímpeto tributador de Fernando Haddad, ministro da Fazenda, geram risos e compartilhamentos. Quem realmente gargalha, no entanto, é o 0,1% mais rico.

Em reuniões privadas, apresentadores de TV, banqueiros e políticos de extrema direita riem abertamente da montagem do “Taxadd”, cuja atuação ainda não afeta suas carteiras. É uma versão ultraprocessada para as redes da máxima anarcocapitalista:  “imposto é roubo”.

Mito 1: ‘O brasileiro não aguenta mais impostos’

A questão é: para quem o brasileiro não aguenta mais impostos? Pesquisas de percepção realizadas pela Oxfam Brasil e Datafolha desde 2017 mostram que os brasileiros apoiam mais impostos sobre os muito ricos para financiar políticas sociais como saúde, educação e moradia.

Na edição mais recente dessa pesquisa, 85% dos brasileiros apoiam mais impostos sobre os endinheirados. O apoio é ainda maior entre estratos sociais específicos: 88% das mulheres negras, 89% dos beneficiários de programas de transferência de renda e 91% das pessoas com renda familiar de até um salário mínimo.

Esses números se alinham com pesquisas internacionais, indicando grande apoio social a sistemas tributários progressivos.

Nos últimos anos, o vínculo entre tributação e financiamento de políticas públicas tem se fortalecido, com 56% da população apoiando aumento de impostos para financiar saúde, educação e moradia, mesmo quando não especificado que seja apenas para os ricos, segundo a Oxfam Brasil (2022).

Mito 2: ‘Todo mundo sabe que o brasileiro paga muito imposto’

A resposta é: depende. Em países como o Brasil, com sistemas tributários altamente regressivos, os pobres pagam mais imposto proporcionalmente que os ricos. Aqui, 44% da receita tributária vem de impostos indiretos (sobre o consumo), enquanto 27% são de impostos diretos (sobre renda e patrimônio).

Já nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE, que concentra alguns dos países mais desenvolvidos do mundo, impostos indiretos representam 30% da carga tributária, enquanto impostos sobre renda e patrimônio perfazem 40%.

Nos impostos indiretos, o valor do tributo é baseado no valor do produto, não na renda ou patrimônio de quem compra. Por exemplo, uma pessoa beneficiária do Bolsa Família paga o mesmo imposto sobre uma lata de leite que um proprietário de uma Ferrari.

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Mito 3: ‘Todo mundo paga muito imposto no Brasil, inclusive os muito ricos’

Sabemos que a carga tributária no Brasil está concentrada em impostos indiretos, que pesam mais no bolso de quem tem menor renda. Para os endinheirados, os tributos mais relevantes são os diretos, como o Imposto de Renda.

Por conta de uma tabela desatualizada e pouco progressiva, além de diversos tipos de exceções, os muito ricos são altamente privilegiados e pagam muito menos imposto do que seria justo.

Por exemplo, a alíquota máxima do Imposto de Renda sobre Pessoa Física, o  IRPF, é de 27,5%, que incide sobre rendas mensais a partir de R$ 4.664,68, fazendo com que uma pessoa que receba pouco mais de três salários mínimos tenha a mesma alíquota de alguém que receba R$ 300 mil por mês.

Desde 1995, lucros e dividendos de empresas não são taxados na pessoa física, permitindo que o 1% mais rico tenha recebido R$ 412 bilhões sem recolher um centavo no IRPF (2021). Gastos com educação e saúde podem ser deduzidos da base de cálculo do Imposto de Renda – no caso da saúde, sem limite –, algo amplamente utilizado por pessoas de maior renda.

O resultado: o grupo de 0,01% de maior renda no Brasil, ao invés de recolher o teto do IRPF (27,5%), paga uma alíquota efetiva de apenas 1,76% (2022).

Mito 4: ‘Se taxar os super ricos eles saem do país e levam todos os bens’

Imaginem se, diante de levantamentos que apontam que apenas ⅓ dos assassinatos são resolvidos no Brasil, defendêssemos que o crime de homicídio deveria ser retirado do Código Penal. É um argumento similar achar que maior tributação sobre os mais ricos é má ideia porque será descumprida de toda forma.

Além de representar uma submissão à lei do mais forte, essa postura minimiza o fato de que parte considerável do patrimônio dos multimilionários não pode simplesmente ser transportada para fora do país, como é o caso dos imóveis, alguns deles com extensão equivalente a países europeus.

Há medidas que poderiam ampliar a tributação sobre os muito ricos, como o aprimoramento do Imposto Territorial Rural, o ITR, de responsabilidade municipal, que hoje arrecada em todo o Brasil menos do que São Paulo aufere de IPTU em quatro bairros da cidade.

Sobre ativos financeiros, que podem ser transferidos além das fronteiras, medidas recentes propostas pelo governo federal e aprovadas pelo Congresso têm tentado fechar tais brechas, como o regime de tributação de investimentos offshore.

Para restringir ainda mais a transferência de ativos, o Brasil tem defendido, na condição de presidente do G20, regras uniformes de tributação internacional sobre os super-ricos, com mecanismos de controle e transparência de dados no plano transnacional.

Às vésperas do 36º aniversário da Constituição Federal de 1988, o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) segue não regulamentado em um momento no qual cada centavo importa para fechar as contas públicas.

‘Ok, tudo bem. Nada disso muda o essencial: o ímpeto taxador de Haddad/Lula’

Parte-se da premissa de que todos os tributos podem ser decididos unicamente por meio de uma canetada do Poder Executivo, o que, em regra, não procede.

A dificuldade em levar adiante propostas de reformas tributárias é um exemplo disso: por envolver competências concorrentes de entes federativos, mudanças de tributos sobre o consumo requerem aprovação de Proposta de Emenda Constitucional pelo Congresso Nacional – o que, aliás, foi realizado em 2023, um feito inédito sob o regime da CF/88.

Outras alterações requerem a aprovação via Lei Complementar, como é o caso da regulamentação da reforma tributária atualmente sob análise da Câmara, que demanda um processo mais rígido de análise. Ou seja, mudanças sobre impostos serão, quase sempre, resultado da atuação dos Poderes Executivo e Legislativo, envolvendo por vezes a interação entre União, estados e municípios.

Atribuir a ação de uma única pessoa é algo que serve apenas como anedota. Tomemos como exemplo o debate sobre a desoneração da folha de pagamento, cuja prorrogação foi vetada pelo planalto e, posteriormente, reafirmada pelo Congresso com a derrubada dos vetos.

Para compensar a perda de receitas, o planalto propôs Medida Provisória com alterações no PIS/Cofins que, após pressão de empresários, foi parcialmente devolvida pela Mesa do Congresso Nacional. São casos que mostram como o Executivo está longe de ter poder absoluto de agenda em termos tributários.

O sorriso largo e feliz do 0,1% mais rico com os memes do Haddad taxador faz sentido. Manter o status quo beneficia os abastados, para os quais o atual sistema tributário regressivo serve para manter privilégios. 

Acabar com meio bilhão recebido em dividendos no IRPF? Criar alíquotas no Imposto de Renda para quem recebe seis dígitos por mês? Cobrar efetivamente o ITR do proprietário da fazenda do tamanho de Manhattan? “Tem que pôr um freio nisso, um grande acordo nacional”, diria um conviva da reunião apolítica. “Aí parava tudo”. Um meme de cada vez.

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