Brasileiros escravizados em Mianmar fogem de ‘fábrica de golpes’ e agora tentam voltar para casa

Vítima de tráfico humano, Luckas Viana dos Santos conseguiu fugir da fábrica de golpe em Mianmar onde estava há quatro meses. A história dele, revelada em outubro pelo Intercept Brasil, trouxe à tona a realidade de pessoas que são mantidas escravas na região da Tailândia, Mianmar e Laos para aplicar golpes virtuais internacionalmente, em escala massiva, sob a mira de homens armados.

Santos fugiu na madrugada do último sábado, 8 de fevereiro, acompanhado de dezenas de estrangeiros mantidos nas mesmas condições. Entre eles, estava outro brasileiro: Phelipe de Moura Ferreira, que teria chegado ao local em 20 de novembro. 

No dia da fuga, Ferreira fez contato com seu pai para avisar que tentariam fugir em breve. Seriam 85 pessoas e a fuga envolveria atravessar um rio. “Se acontecer algo comigo, saiba que eu tentei ao máximo”, escreveu ele para o pai. 

Na terça-feira, 11, veio a confirmação de que ambos haviam conseguido fugir e tinham sido detidos pelo DKBA, o Exército Democrático Karen Budista, um grupo rebelde de Mianmar. Desde então, aguardam transferência para a Tailândia. Lá, passarão por uma verificação feita pela polícia para atestar que foram vítimas, de fato, de tráfico humano, explicou Cintia Meirelles, diretora da ONG The Exodus Road Brasil, que tem atuado junto ao governo tailandês para pressioná-los a agir para resgatar vítimas de tráfico humano no país vizinho.

Meirelles conta que houve um acordo entre grupos rebeldes de Mianmar, autoridades do país e representantes dos grupos criminosos que operam as fábricas de golpes. “A sociedade civil apresentou uma carta exigindo a liberação de 371 vítimas de tráfico de pessoas. São vítimas que nós tínhamos conhecimento que estavam traficadas, em situação de exploração laboral e também de tortura, e nós conseguimos incluir o nome do Luckas e do Phelipe na lista”, disse ela ao Intercept.

Vítima de tráfico humano em Mianmar, Luckas Viana dos Santos e Phelipe de Moura Ferreira conseguiram fugir no último sábado, 9 de fevereiro (Foto: Divulgação)
Vítima de tráfico humano em Mianmar, Luckas Viana dos Santos e Phelipe de Moura Ferreira conseguiram fugir no último sábado, 9 de fevereiro (Foto: Divulgação)

A diretora da ONG destaca que o processo de verificação pelas autoridades tailandesas pode levar até 15 dias. Após a liberação, Santos e Ferreira deverão ser encaminhados à embaixada brasileira em Bangkok. “O governo brasileiro tem a obrigação de fazer o repatriamento do Luckas e do Phelipe”, afirma Meirelles. 

Segundo a diretora da ONG, familiares dos dois brasileiros já haviam submetido à Defensoria Pública da União, no ano passado, uma carta de hipossuficiência para repatriamento de vítimas de tráfico de pessoas no exterior — requisito para que o Ministério das Relações Exteriores, o MRE, pudesse fazer o repatriamento assim que eles estivessem aos cuidados das autoridades brasileiras. 

Mas, desde sábado, familiares relatam que têm enfrentado dificuldades de contatar as autoridades brasileiras em Bangkok ou em Yangon. Eles afirmam que, ao saber da fuga, tentaram avisar as embaixadas, mas não tiveram resposta. 

O Intercept questionou o Ministério das Relações Exteriores sobre qual é o apoio que está sendo dado às famílias dos brasileiros e quais esforços estão sendo feitos para viabilizar o retorno deles ao Brasil. Em nota, o Itamaraty disse que “tomou conhecimento, com grande satisfação” da liberação de dois brasileiros.

LEIA TAMBÉM:

  • Brasileiro é vítima de tráfico humano e trabalho escravo por ‘fábrica de golpes financeiros’ em Mianmar
  • Manter um trabalhador em situação análoga à escravidão custa apenas R$ 4.115,89 a empregadores
  • Governo topa fazer negócio com 18 empresas cujos donos estão na lista suja do trabalho escravo

Também informou que, “por meio de suas Embaixadas em Yangon, no Myanmar, e em Bangkok, na Tailândia, vinha solicitando os esforços das autoridades competentes, desde outubro do ano passado, para a liberação dos nacionais”. O texto ainda cita que a pasta esteve em “contato permanente” com as famílias, mas não detalha como atuará para repatriar Santos e Ferreira. 

Em janeiro deste ano, a Exodus Road, junto de outras organizações de sociedade civil e representantes de outros países, interviu junto ao governo tailandês para tentar resolver a situação. O governo brasileiro não se posicionou a respeito do tema, conforme Meirelles. 

“Nós, como sociedade civil, representamos o Brasil nessa reunião junto ao parlamento tailandês”, disse a diretora da ONG. Segundo ela, a reunião foi feita para pedir que o governo tailandês fosse mais rigoroso no controle de fronteiras, visto que as vítimas de tráfico geralmente saem da Tailândia em direção aos outros países. 

Como resultado desta reunião, o governo tailandês cortou, no início de fevereiro, o fornecimento de eletricidade na região fronteiriça e para áreas em Mianmar que abrigam os campos da indústria de golpes financeiros. 

‘Eu vou morrer aqui’, escreveu brasileiro a amigo

O pesadelo de Luckas Viana dos Santos começou no início de outubro, quando ele buscava um novo trabalho na Ásia após ter sido demitido da área de atendimento ao cliente em plataformas de apostas nas Filipinas. 

Santos decidiu, então, postar que procurava emprego em um grupo no Telegram focado em vagas de trabalho na região. Logo conseguiu duas entrevistas. Em uma delas, para uma vaga em atendimento ao cliente em aplicativos de relacionamento, recebeu uma proposta que considerou interessante: salário de US$ 1,5 mil – aproximadamente R$ 8,5 mil – além de moradia no local para um contrato de seis meses. 

A empresa tinha sede em Mae Sot, uma cidade no oeste da Tailândia que faz fronteira com Mianmar. Ficou acordado que, em 7 de outubro, um representante da empresa buscaria Santos, de 31 anos, em Bangkok para a viagem de seis horas. 

No percurso, porém, ele percebeu que algo poderia estar errado. E avisou pelo Telegram um amigo. “No meio do nada, entramos numa selva, pegamos um barco e tenho que esperar mais um carro”, disse Santos, em mensagens às quais o Intercept teve acesso. “Parece tráfico”, acrescentou. 

O amigo de Santos contou ao Intercept em outubro que recebeu mais algumas mensagens em que ele dizia já estar em Mianmar. A mensagem seguinte dizia apenas uma frase: “chama a polícia”. 

Mensagem compartilhada por Santos com um amigo depois de ser vítima de tráfico humano (Foto: Reprodução)

Santos voltou a se comunicar 30 minutos depois. Disse que estava tentando resolver a situação, mas que havia muitas pessoas armadas. Pediu ao amigo para que ele não chamasse a polícia porque podiam matá-lo. 

Depois disso, nas raras mensagens que conseguiu enviar ao amigo, Santos falou sobre as condições do complexo onde estava. Disse que o dia de trabalho durava 16 horas, das 17h30 até as 8h da manhã seguinte. Havia três pausas para comer. Ele não podia tomar banho todos os dias.

Também contou que só era pago caso conseguisse aplicar o golpe com sucesso. Para cada pessoa que fizesse uma transferência, recebia US$ 100. Mas para cada cliente perdido, eram descontad os US$ 100 — situação que configura servidão por dívida, em que pessoas são obrigadas a trabalhar para pagar uma dívida que lhes foi imposta. “Eu vou morrer aqui, eu só quero ir embora. Isso não é vida”, escreveu.

Fábrica de golpes

A região da tríplice fronteira entre Tailândia, Mianmar e Laos é justamente o epicentro dos “complexos” ou “fábricas de golpes”. Em agosto de 2023, a ONU estimou que, só em Mianmar, cerca de 120 mil pessoas estariam sendo mantidas em condições análogas à escravidão após terem sido traficadas.

As fábricas de golpes são operadas por grupos de crime organizado transnacionais. Na prática, funciona assim: pela internet, pessoas são ludibriadas a acreditar que estão sendo contratadas para trabalhos legítimos e, então, acabam traficadas para estes complexos, onde são mantidas sob abusos e condições desumanas.

As vítimas são obrigadas a aplicar golpes pela internet, frequentemente tendo como suas vítimas pessoas que estão a milhares de quilômetros, em países como os Estados Unidos.

O post Brasileiros escravizados em Mianmar fogem de ‘fábrica de golpes’ e agora tentam voltar para casa apareceu primeiro em Intercept Brasil.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.