Polícia jogou documentos de agentes da Ditadura em sacos de lixo. Nós os abrimos.

  • Publicamos pela primeira vez as fichas funcionais de policiais encontradas em sacos de lixo no antigo prédio do DOPS, no Rio de Janeiro. 
  • Além de poderem ajudar a esclarecer os crimes cometidos durante o regime, os documentos mostram as trajetórias de policiais na instituição, bem como os elogios, as promoções e as reprimendas.
  • Os casos mostram um enorme trânsito entre a polícia política e as delegacias comuns. E desmontam, assim, o argumento de que o DOPS seria uma estrutura apartada do conjunto da Polícia Civil. 

Foi dentro de sacos de lixo e no chão, em meio a poeira, ratos, baratas e pombos, que Felipe Nin viu pela primeira vez as fichas policiais dos prováveis assassinos de seu tio. O engenheiro Raul Amaro Nin Ferreira foi levado à sede do Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, no centro do Rio de Janeiro, em 1º de agosto de 1971. Passou por dois interrogatórios com tortura até precisar ser internado no Hospital Central do Exército.

Foi lá, durante a internação, que o engenheiro foi interrogado uma última vez por dois agentes do DOPS: o comissário Eduardo Rodrigues e o escrivão Jeovah Silva. Raul Amaro morreu no dia seguinte. 

Em seu relatório final, a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, com base em um parecer médico-legal, confirmou que o engenheiro foi torturado dentro do hospital. 

A trajetória de agentes como Jeovah Silva e Eduardo Rodrigues era desconhecida – até agora. Pesquisadores encontraram, no ano passado, documentos históricos da Ditadura Militar esquecidos ao longo de cinco décadas dentro do prédio do DOPS, no Rio de Janeiro. 

O Intercept Brasil já mostrou o estado desses documentos secretos. Agora, revelamos o conteúdo deles na série de reportagens As fichas esquecidas da Ditadura Militar.

São, em sua enorme maioria, fichas funcionais de policiais, que mostram suas trajetórias na instituição, bem como os elogios, as promoções e as reprimendas – e revelam uma face ainda pouco conhecida sobre a Ditadura instaurada após o golpe militar de 1964. 

“A gente sempre teve como contar a história de pessoas que foram perseguidas pela ditadura”, diz Felipe Nin, que integra o Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça e Reparação e ajuda a coordenar um grupo de voluntários que está trabalhando para higienizar e organizar a documentação. “Finalmente, a gente vai poder contar a história de alguns personagens que foram parte importante da repressão”. 

Das delegacias comuns ao DOPS – e vice-versa

Se hoje Felipe Nin ajuda a coordenar o trabalho, pouco mais de dez anos atrás ele produziu, ao lado de seu irmão, Raul Nin, e do pesquisador Marcelo Zelic, uma ampla pesquisa sobre o caso de seu tio. Foi ali que ele reuniu indícios suficientes para justificar que a Comissão da Verdade solicitasse o laudo médico-legal que, afinal, comprovaria as torturas no Hospital Central do Exército. 

Durante as pesquisas, no entanto, um dos obstáculos encontrados foi obter mais informações de Eduardo Rodrigues, policial responsável pelo inquérito instaurado contra Raul. Como se trata de um nome muito comum, a ausência de maiores informações impedia que eles o localizassem em meio a muitos homônimos. 

Recém-descoberta, a ficha funcional de Rodrigues detalha o seu avanço na carreira profissional, com anotações banais como férias e substituições, mas também relatos sobre como a chefia via o seu trabalho.”1ª Div. Exérc. Relevantes serv. presta. à comunid. militar”, diz um elogio de 1982. “Alto espírito público e capacidade incomum de superar as dificuldades”, menciona outra anotação do ano seguinte.

Além de ajudarem a esclarecer casos individuais de mortos e desaparecidos políticos, esses documentos também revelam aspectos mais gerais e estruturais do funcionamento da polícia durante a ditadura militar. 

Trecho da ficha de Eduardo Rodrigues que traz um elogio feito ao policial pelos “relevantes serviços prestados à comunidade militar”. Fotografia: Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça e Reparação

A ficha de Jeovah mostra, por exemplo, como, na década de 1980, após passar anos no DOPS e no órgão que o sucedeu, o Departamento Geral de Investigações Policiais, o DGIE, o agente foi lotado em diversas delegacias comuns de polícia. 

Já a trajetória registrada de Eduardo Rodrigues vai no caminho contrário: ele ingressou na polícia em 1962 e serviu em inúmeros delegacias até ser lotado no DOPS, em março de 1971, poucos meses antes do assassinato de Raul. 

Os casos mostram um enorme trânsito entre a polícia política e as delegacias comuns. E desmontam, assim, o argumento de que o DOPS seria uma estrutura apartada do conjunto da Polícia Civil. 

Essa documentação ainda expõe os intercâmbios, os aprendizados mútuos e a retroalimentação entre as violações aos direitos humanos dos opositores do regime e a violência cotidiana praticada pelos organismos policiais – até hoje. 

Caso exemplar, nesse sentido, é a ficha do delegado Hélio Vígio, que fez uma longa carreira na Polícia Civil do Rio de Janeiro. Num podcast policial, Rubens Paladini, um comissário que atuou com Vígio descreveu como era o trabalho com ele. “Ele era um delegado que não tinha complacência, não. O coro comia”, disse. O policial pensa duas vezes antes de continuar. “Nem vou falar por que, senão embola o meio de campo”, completa. Mas, no final, em meio aos risos, ele fala: “Era muita carnificina”.

Apesar de ter sido investigado por corrupção e envolvimento com o Jogo do Bicho e pelas inúmeras acusações de violência policial, Vígio era celebrado na instituição. Quando ele morreu, em 2016, vários obituários foram publicados, inclusive em jornais de grande circulação. Nenhum deles, no entanto, trazia uma informação que sua ficha funcional agora revela: sua primeira lotação foi no DOPS, no emblemático mês de março de 1964. 

Os documentos mostram que, depois de iniciar sua carreira na polícia política, ele passou por inúmeras delegacias ao longo do tempo. A última entrada de sua ficha mostra que, em 2002, ele foi lotado na Coordenadoria de Recursos Especiais, a Core, a tropa de elite da Polícia Civil – responsável por algumas carnificinas recentes no Rio de Janeiro, como o massacre do Jacarezinho.

A trajetória pessoal que vai do DOPS à Core ajuda a conectar dois órgãos diretamente responsáveis por graves violações aos direitos humanos. Seu caso mostra, assim, o quanto essa documentação, que apenas começou a ser conhecida, pode revelar sobre a estrutura repressiva da ditadura militar e sua permanência até os dias de hoje. 

As fichas de Cecil Borer e Milton Le Cocq

Depois da visita realizada em 2023, em que o Intercept constatou o estado lastimável dos documentos históricos, o Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça e Reparação apresentou uma representação ao Ministério Público Federal pedindo providências. Em março do ano passado, um inquérito civil público foi aberto para investigar o abandono do prédio. 

Uma das primeiras medidas foi uma nova visita ao local em junho de 2024, em que participaram representantes de organizações da sociedade civil, pesquisadores e ex-presos políticos. Na ocasião, ao abrir um dos sacos de lixo, a primeira ficha que apareceu vinha estampada com um nome conhecido: Cecil Borer.

Com um trajetória policial que remetia a década de 1930, Borer era o diretor do DOPS no momento do golpe de 1964. A ficha se refere à sua nomeação ao cargo, após ser promovido “por merecimento”.

Ele comandava o órgão quando, por exemplo, poucos dias após a tomada do poder pelos militares, o operário ferroviário José de Souza, um homem negro, foi encontrado morto no pátio do prédio da Rua da Relação. 

Apesar de a versão oficial apresentada à época ter sido de que houve suicídio, Souza é reconhecido pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão Nacional da Verdade, a CNV, como vítima da ditadura. 

Ao mesmo tempo, Borer, na condição de diretor do DOPS, foi listado pela CNV como responsável pela “gestão de estruturas e condução de procedimentos destinados à prática de graves violações de direitos humanos”. 

Ficha de promoção a delegado de Cecil de Macedo Borer, localizada dentro de um saco de lixo preto no interior do prédio da Rua da Relação. (Foto: Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça e Reparação)

Outra ficha encontrada foi o registro funcional de Milton Le Cocq, policial morto em 1964. Foi em homenagem a ele que se formou a Scuderie Le Cocq, conhecido grupo de extermínio do Rio de Janeiro. O policial, aliás, também é homenageado  institucionalmente pela própria Polícia Civil, que conserva um busto de Le Cocq em seu museu, localizado em um prédio anexo ao edifício da Rua da Relação. 

Fichas funcionais de Milton Le Cocq, agente que deu nome ao principal Grupo de Extermínio do Rio de Janeiro, a Scuderie Le Cocq. (Foto: Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça e Reparação)

A documentação localizada no interior do prédio se refere fundamentalmente às trajetórias profissionais de agentes da polícia. Portanto, ao lado das fichas de policiais conhecidos, como Borer e Le Cocq, os sacos de lixo contêm milhares de outros documentos semelhantes, relativos a inspetores, escrivães, censores, delegados, comissários, papiloscopistas e inúmeros outros profissionais desconhecidos, que serviram aos órgãos policiais entre as décadas de 1930 e 1990.

Apesar de serem fichas de registro funcional, que poderiam ser vistas como uma documentação meramente administrativa, os pesquisadores e militantes do tema ressaltam o interesse histórico dos arquivos. 

“É uma documentação que expõe nomes e localiza os agentes públicos, o que nos permite relacioná-los aos crimes, como os desaparecimentos forçados, e às próprias vítimas”, explica Luciana Lombardo, atual diretora do Memórias Reveladas, divisão do Arquivo Nacional que trata da documentação da ditadura militar.

“Ao mesmo tempo, esses documentos ajudam a esclarecer como funciona a estrutura policial. Quem são os seus sujeitos, quem são os seus agentes, como é que era o sistema de elogio, de reprimenda e de premiação. Tem muita coisa sobre o ethos policial que a gente pode aprender com essa documentação”, complementa.

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Historiadora e autora de diversos trabalhos sobre a história da polícia e de sua documentação, Lombardo aponta ainda como as instituições vinculadas à segurança pública não estão acostumadas a estar sob o escrutínio público – o que apenas reforça a importância e o ineditismo de uma documentação como essa.

Para averiguar a relevância histórica dos arquivos, o MPF criou um grupo de trabalho para acessar a documentação e iniciar um processo de triagem. Uma primeira avaliação sobre o estado geral e as características dos documentos ocorreu em agosto de 2024, com a presença de técnicos do Arquivo Público do Estado, o Aperj, e do Arquivo Nacional. 

No início de novembro, começou a rotina de trabalho diretamente com os arquivos. A proposta é que, ao final do processo, a documentação seja enviada ao Aperj, onde vai se integrar ao restante do acervo do DOPS, sob custódia da instituição desde o início dos anos 1990.

Por enquanto, apesar de divergências entre polícia e pesquisadores sobre a importância dos documentos, a ação do Ministério Público Federal tem permitido um avanço concreto no trabalho de mapear os registros de uma época marcante da história do Brasil. “A gente tem conseguido realizar o trabalho lá dentro do prédio de uma maneira cordial com os agentes”, diz Nin.

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