
Não é fácil analisar o perfil dos golpistas de 8 de Janeiro. Enquanto a extrema direita usa a imagem de “velhinhas com bíblia na mão” e a “moça do batom”, a verdade é que os detidos na invasão e depredação dos prédios públicos têm perfis muito distintos. Como ocorreu o processo de radicalização que levou essas pessoas a cometerem esses crimes?
Para entender e discutir o fenômeno, Caio Almendra e Thalys Alcântara, do Intercept Brasil, receberam em uma live as pesquisadoras Ana Penido, especialista em ideologia militar, e Letícia Cesarino, antropóloga que estuda cibernética e nova direita. Spoiler: não há respostas fáceis, tampouco soluções simples para o golpismo.
O ponto de partida da conversa foi a reportagem do Intercept que revelou que um dos presos do 8 de Janeiro, Wesley Bedel participou de uma sabotagem a mando do Comando Vermelho.
“Encontramos o nome dele na tabela do STF com ações penais dos mais de 2 mil presos de 8 de janeiro”, explicou Thalys Alcântara, um dos autores da reportagem. Segundo a apuração, Bedel chegou a fazer um acordo para escapar da prisão pela tentativa de golpe – porém, o combinado foi rompido após ele ter sido preso e condenado por ajudar a cometer o incêndio de um carro a mando da facção, que cobra taxas de comerciantes na região amazônica.
Para Letícia Cesarino, professora de antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, o perfil dos golpistas não pode ser traçado por dados simples. Até porque, apesar de mais de 2 mil golpistas terem sido presos, nem todos os que participaram da ação violenta foram detidos — dificultando também uma análise demográfica.
“Não existe um preditor demográfico consistente pra esse processo de radicalização”, disse Cesarino. “Qualquer tipo de pessoa está, em tese, passível de entrar num rabbit hole conspiratório.”
Os discursos de golpe e intervenção se estruturaram a partir da crença coletiva de que o Brasil vivia sob “uma ditadura do Judiciário e da esquerda”. Segundo Cesarino, essa construção não aconteceu de forma repentina: “As pessoas foram se radicalizando, não foi de uma hora pra outra. […] Elas achavam que não tinha mais o que fazer a não ser participar de um plano maior que envolvesse ação direta para induzir as Forças Armadas a agir”.
E, então, se fortaleceu a conexão entre a extrema direita e os militares. Ana Penido, pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional, GEDES, explicou que a raiz do problema é profunda — e pontuou que críticas sugerindo que ‘os militares deveriam voltar aos quartéis’ não refletem o problema.
“Eles estavam nos quartéis quando tudo isso começou. O que precisa mudar é o que acontece dentro dos quartéis”, Penido afirmou. A redemocratização após a ditadura militar brasileira foi incompleta, e permitiu que os militares mantivessem privilégios, autonomia ideológica e proteção.
Penido também apontou que o verdadeiro seguro contra novos golpes é um Exército que represente a diversidade da sociedade. “Quanto mais o que acontece no quartel reflete a população — ideologicamente, regionalmente, etnicamente, em termos de gênero — menor a chance de golpe. Não tem por que dar golpe se você está junto com a maioria.”
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A relação da população com os militares também passa por vínculos afetivos. “No Brasil, é difícil não ter conexão com algum militar, seja um parente próximo ou distante. Em lugares como o Centro-Oeste e a Amazônia, isso é ainda mais forte”, observou Cesarino.
A live também explorou o papel das redes digitais na radicalização. Cesarino revelou que a pesquisa no Telegram mostrou a atuação de usuários com enorme capacidade de articulação, possivelmente ligados às Forças Armadas. “Havia um tipo muito ativo de usuário nesses grupos, com um nível de agência muito maior […] A gente desconfia que muitos eram militares camuflados como usuários comuns.”
Penido ainda detalhou os pilares do “casamento” entre militares e a nova direita: o revisionismo histórico, o discurso igualitarista do quartel (uma falsa ideia de meritocracia), o alinhamento com o pensamento neoliberal e o uso de símbolos nacionais como ferramenta de mobilização. “A gente faz piada, mas essa ideia de lutar pela pátria mobiliza sentimentos profundos. E quem ocupou esse terreno simbólico foi a extrema direita.”
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