
O presidente Lula prometeu criar oportunidades de trabalho e emprego e garantir a soberania alimentar por meio da reforma agrária. Mas o compromisso feito durante a campanha de promover a redistribuição de terras no Brasil está longe de ser alcançado.
É o que aponta a nota técnica “Política Territorial, Fundiária e Ambiental no Brasil: Balanço do governo Lula 3”, publicada por organizações da sociedade civil integrantes da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e da Via Campesina.
O documento obtido pelo Intercept Brasil é categórico ao dizer que, se mantiver o ritmo apresentado nos dois primeiros anos de gestão, o governo Lula não tem “chance alguma de cumprimento da meta prevista” no Programa Nacional de Reforma Agrária, o PNRA.
A nota afirma que os números de assentamentos e famílias assentadas por meio do PNRA foram “absolutamente pífios e muito distantes das metas” estabelecidas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, o MDA, para 2024. A pasta é chefiada pelo ministro Paulo Teixeira, do PT de São Paulo.
Nesses dois primeiros anos de mandato, segundo a nota, o governo acabou prejudicado por fragilidades de sua própria gestão, como a demora na reformulação da estrutura do MDA e de seus programas, a baixa execução orçamentária e a falta de recomposição dos recursos na Lei Orçamentária Anual, que garante o planejamento e gerenciamento das verbas públicas.
De acordo com as organizações que produziram a nota, a reforma agrária segue paralisada e há uma notável falta de sintonia entre os ministérios envolvidos na pauta — além do MDA, o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas e o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.
A integração com os órgãos estaduais, ambientais e fundiários também não avançou, especialmente fora da Amazônia Legal, diz o relatório. E, embora a questão climática tenha alcançado protagonismo e se inserido como uma agenda transversal em diversas pastas, segue subestimando a importância da questão agrária e fundiária, afirma a nota.
‘Não há indicativo de que partirão do governo propostas de alterações legislativas para redução de danos do período Temer-Bolsonaro’
Do ponto de vista das entidades, o governo enfrenta ambiguidades e contradições no próprio diagnóstico fundiário e ambiental, sendo apontado como incapaz de mapear a realidade de terras a serem redistribuídas. A gestão Lula também não entrou em consenso para evitar a tendência de desregulamentação das políticas fundiária e ambiental, cita o relatório.
A nota técnica ainda pontua que “não há indicativo de que partirão do governo propostas de alterações legislativas para redução de danos do período Temer-Bolsonaro” e classifica a postura da liderança do governo no Senado como “absolutamente covarde” por ações como, por exemplo, liberar o voto dos parlamentares da base ao votar a derrubada de vetos do projeto que culminou na Lei 14.701, que trata, dentre outros temas, da demarcação de terras indígenas.
Meta incompatível com orçamento
A meta do MDA é o assentamento de 20.490 famílias em 2025, segundo a nota, enquanto o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o MST, demanda 60 mil famílias assentadas até o final do governo, em 2026.
Em abril de 2024, o governo Lula lançou o programa Terra da Gente, apresentado como “uma nova estratégia para ampliar e dar agilidade à reforma agrária”. Por meio dele, havia a estimativa de incluir 295 mil famílias agricultoras no PNRA.
Questionado pelo Intercept, o MDA respondeu que, desde 2023, foram homologados mais de 38 mil novos lotes para famílias sem terra em todo o Brasil, dos quais 15 mil em assentamentos convencionais. A meta até o fim de 2025 é chegar a 30.290, número ainda maior do que o que a nota traz, além de 60 mil novos lotes convencionais até dezembro de 2026.
O MDA também afirmou que, considerando-se assentamentos, reconhecimento e regularização, serão contempladas 326 mil famílias até o final do terceiro mandato do presidente Lula.
Para Maurício Correia, integrante do grupo de trabalho fundiário da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e um dos autores da nota técnica, a meta do governo é muito ambiciosa e incompatível com os meios disponíveis para cumpri-la.
“Houve um desmonte das estruturas, perda de pessoal e a dissolução da diretoria responsável pela obtenção de terras no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra. E, ao nosso ver, houve uma demora do governo em retomar essa direção”, afirma.
Correia questiona também a falta de operacionalidade trazida pelo baixo orçamento para a questão agrária. A nota técnica aponta que, mesmo com a recriação do MDA, não houve alterações significativas no valor efetivamente executado.
Para justificar isso, o relatório menciona que o orçamento previsto era de R$ 7,8 bilhões, mas apenas R$ 3,2 bilhões foram executados – ou seja, 42% do orçamento previsto para ações de reforma agrária.
Outra fragilidade apontada é que, de acordo com o estudo, apenas 11% do orçamento do MDA no ano passado foi de investimentos diretos para que a política pública fosse colocada em prática, ou seja, em ações que viabilizam transporte, combustível, diárias e equipamentos das equipes que vão a campo.
A verba aprovada do orçamento público para reforma agrária pelo Incra prevista para 2023 foi de R$ 256 milhões, a menor em 20 anos, e, ainda assim, não teve a maior parte executada. Em 2023 e 2024, o orçamento do órgão não recuperou o padrão pré-pandemia, diz a nota, antes em torno de R$ 4 bilhões anuais. Em 2024, o valor aprovado foi de R$ 567 milhões, o menor de todas as gestões petistas e também distante dos valores efetivamente executados.
“Não tem como executar a política de reforma agrária e de titulação de territórios tradicionais sem que essas ações sejam financiadas de maneira robusta e estável com recursos do orçamento público. E essa não é a realidade que a gente tem visto”, acrescentou André Sacramento, advogado da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais, a AATR, e integrante da Campanha em Defesa do Cerrado.
Criativos, mas tardios e desorganizados
Apesar de reconhecer a criatividade diante do cenário adverso, que conta ainda com um Congresso mais ruralista em relação às gestões anteriores de Lula, os movimentos sociais afirmam que o programa Terra da Gente teve um lançamento tardio e uma regulamentação lenta. Isso torna seu alcance limitado, ainda mais considerando as vedações legais em 2026, um ano eleitoral.
O programa Terra da Gente estabelece uma prateleira de terras disponíveis no país para assentar famílias: terras já adquiridas, em aquisição, passíveis de adjudicação por dívidas com a União, imóveis improdutivos, imóveis de bancos e empresas públicas, áreas de ilícitos, terras públicas federais, terras doadas e imóveis estaduais que podem ser usados como pagamento de dívidas com a União.
‘Devido a essa falta de fiscalização pública e de regularização dos territórios, os povos são retirados de seus lugares, acabam com o modo de vida das pessoas’
“Há uma superestimação da capacidade do programa Terra da Gente. O programa é acertado, mas não significa que não existam burocracias e etapas a serem cumpridas na escolha das áreas e na transformação delas em um assentamento”, destaca Correia.
A nota critica a ausência nessa lista de possíveis áreas os terrenos de marinha, ilhas, manguezais e terrenos marginais e terras da União sob responsabilidade da Secretaria de Patrimônio da União, a SPU. Essas terras são importantes, sobretudo, pois são muito ocupadas por indígenas, comunidades ribeirinhas, quilombolas, pesqueiras, vazanteiras e outros povos tradicionais.
Essa ausência deixa vulnerável essas comunidades, bem como compromete o equilíbrio ecológico e a contenção da degradação de rios como Araguaia, Paraná, Parnaíba ou São Francisco, afirma a nota técnica. Entre as ameaças recentes a esses territórios, está uma proposta de emenda à Constituição, PEC, proposta em 2022 pelo senador Flávio Bolsonaro, do PL do Rio de Janeiro, conhecida como PEC das Praias, em estágio avançado de tramitação no Senado.
“Devido a essa falta de fiscalização pública e de regularização dos territórios, os povos são retirados de seus lugares, acabam com o modo de vida das pessoas”, diz Ana Ilda, pescadora artesanal e liderança do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil, o MPP.
Na região onde ela mora, em Santa Helena, no Maranhão, os caminhos que levam aos rios já estão cercados. “Em outras comunidades, há o desmatamento, os rios têm sido assoreados, diminuindo o pescado. Tem também lixo, e isso vai acabando com as nascentes”, conta. As comunidades pesqueiras também enfrentam o avanço da carcinicultura – a criação de camarões em viveiros – sob os territórios tradicionais.
Outra crítica dos movimentos é à base de dados que o governo federal utiliza para estabelecer as políticas, que desconhece o estoque de terras públicas do próprio estado brasileiro, segundo Correia. O Brasil precisa, diz ele, de um sistema nacional de gestão fundiária que limite o uso de dados auto declaratórios e integre os sistemas de cadastros de terras.
“A propriedade da terra no Brasil se tornou uma questão absolutamente nebulosa. Tudo o que se faz em torno da regulação ou da desregulação a respeito dessa questão é meio que para tapar um remendo”, ressalta.
No Brasil, atualmente, parte dos territórios tradicionalmente ocupados está sobreposta por cadastros de entes privados nas plataformas de cadastros digitais de terras. Isso se torna visível por meio dos conflitos fundiários.
“Você precisa combater a grilagem e aí já exige uma coragem política de fazer enfrentamentos. Quando você vai estabelecer esse tipo de política, você vai contrariar interesses. Muitas terras são públicas e estão registradas ilegalmente”, lembra Correia.
Falta ainda, segundo a nota, articulação entre os governos nacional e locais, bem como entre os três poderes. “Existem diversas iniciativas paralelas sendo tomadas no governo. Muitas delas bastante meritórias mesmo, que apontam na direção correta, mas elas não estão dialogando entre si”, analise ele.
Hiperfoco na Amazônia gera problemas
A nota mostra ainda que as ações do governo, como a criação do Grupo de Trabalho para Assuntos Federativos coordenado pelo MDA e pelo Ministério da Gestão, acabam em soluções que dão ênfase excessiva na Amazônia Legal – o que, para as entidades, “prejudica uma visão de conjunto do país”.
“Não é descuidar da Amazônia, a gente entende que ali você inclusive pode gestar políticas que possam ser usadas mesmo em contextos diferentes”, avalia Correia.
Esse hiperfoco deixa de lado realidades como o aumento no número de assassinatos de indígenas no sul da Bahia e os ataques aos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul e no oeste do Paraná, bem como o avanço do desmatamento na região Matopiba — fronteira agrícola formada pelo estado do Tocantins e partes dos Maranhão, Piauí e Bahia.
O documento ainda defende que o governo acelere os processos de titulação de territórios indígenas e comunidades quilombolas e capitaneie as diretrizes para estados e municípios, ajudando a mapear as terras públicas estaduais.
‘A vida dessas pessoas precisa estar à frente da política nesse momento’
Fora da Amazônia legal, as terras públicas, via de regra, são dos estados. “Especialmente fora da Amazônia Legal, em biomas como Cerrado e Caatinga, a gente tem o problema das terras devolutas estaduais, ou seja, aquelas terras públicas que pertencem ao patrimônio dos estados, mas que os próprios estados ainda não identificaram”, diz Sacramento, advogado da AATR.
Segundo ele, “os estados, via de regra, não têm vontade política de resolver esse problema” para não enfrentar o agronegócio, e só o fazem diante da pressão dos movimentos sociais — que, por sua vez, ficam dependentes das ações estaduais.
É o que acontece por exemplo no território onde vive Raimunda Nonata, liderança do Quilombo Cocalinho, no município de Parnarama, no Cerrado do Maranhão. Sem a titulação da terra, a comunidade costuma esbarrar nos argumentos de falta de verba na regularização fundiária estadual.
No ano passado, a comunidade ocupou a sede do Incra e solicitou a presença de representantes de Brasília. Assim, conseguiu articular para a realização do relatório antropológico necessário para a titulação. O documento começará a ser feito em junho.
Enquanto isso, a comunidade sofre com ameaças e conflitos. Nonata está sob proteção do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas.
“Espero que essa titulação nos territórios avance, que possa ter a indenização desses latifúndios. Porque a gente sabe que, mesmo eles grilando as terras, para eles saírem é preciso o governo pagar. Então, que o governo indenize e retire eles das nossas áreas, para a gente poder plantar, colher e ir e vir sem nenhuma preocupação”, afirma Nonata.
A nota técnica feita pelas organizações da sociedade civil integrantes da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e da Via Campesina será apresentada em seminário nesta quinta-feira, 22, e entregue a representantes do governo Lula.
O documento traz mais de 70 recomendações ao governo para romper as travas e acelerar as políticas de reforma agrária. “A vida dessas pessoas precisa estar à frente da política nesse momento”, conclui Correia.
O post Organizações criticam governo Lula por fracasso em metas de reforma agrária apareceu primeiro em Intercept Brasil.