Um país cada vez mais viciado em tigrinhos, bets – e agiotas

Eu estava estudando para o vestibular, no meu quarto, quando ouvi as vozes. Primeiro, uma mulher e o companheiro da minha mãe. Ele parecia nervoso. Se explicava e dizia que ainda não tinha conseguido o dinheiro, mas que no outro dia teria.

Ela pressionava e falava que não poderia mais esperar. Ameaçava sem levantar a voz, dizendo que era “melhor evitar que algo ruim acontecesse”. Então, identifiquei a voz da minha mãe chegando na conversa. Ela e seu marido estavam dentro da casa, enquanto a mulher estava na rua, à porta. Somente uma grade os separava.

“Eu estou dizendo ao seu marido que se ele não me pagar hoje, não serei mais eu que virei aqui cobrar”. A voz da minha mãe mudou: ficou trêmula, vacilante. Logo, eram três pessoas falando ao mesmo tempo. Um clima tenso que eu já conhecia.

Eu não aguentei ouvir a minha mãe daquele jeito: passava de novo por um constrangimento que ela não tinha provocado. Saí do quarto e fui até a porta. “Vá embora. Vá embora ou vou chamar a polícia”, eu disse.

Conhecia aquela senhora, pequena e bem magra, que passava parte do dia circulando entre os prédios de Marcos Freire, um conjunto habitacional feito para a população de baixa renda, em Jaboatão dos Guararapes, vizinha a Recife.

Carminha, vamos chamá-la assim, era agiota.

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Emprestava dinheiro a juros altos no bairro pobre. Diziam que seus filhos podiam espancar ou mesmo matar quem não pagasse o valor mais os juros abusivos. Não sei se isso realmente acontecia. Mas era justamente o medo a maior ferramenta de gestão que a família possuía.

Naquele dia, mais surpresa do que assustada, ela atenuou a voz e disse que o companheiro da minha mãe estava lhe devendo dinheiro. “Não volte aqui, não ameace a minha mãe ou denuncio você”, enfatizei. Ela foi embora. Como o dinheiro foi pago, eu não sei. O fato é que ela não voltou. Eu tinha 17 anos e um dos meus sonhos era falar inglês e ter uma casa com janelas, e não plástico.

A explosão da agiotagem online

Naquele momento – fim dos anos 1990 – a agiotagem era algo feito sob algum sigilo: a palavra carregava o seu devido peso contraventor e consequente pouca estima social.

Bem, as coisas mudaram. Em redes sociais como Facebook e Instagram, são dezenas de perfis e grupos que se dispõem a emprestar dinheiro de maneira fácil e descomplicada – e a chegada da instituição Pix é outra grande questão facilitadora.

A prática é especialmente comum no primeiro, onde pululam ofertas de dinheiro. Se apresentar como agiota não é um problema, como vemos nos prints abaixo:

Mais do que ofertas, encontramos também nas redes pessoas desesperadas em busca de empréstimos. “Preciso de 7 mil, mas estou sem dinheiro nenhum para taxa, e o dinheiro que tinha, perdi com esses falsos agiotas, preciso de um empréstimo, e começo a pagar na próxima semana”, lemos em uma postagem escrita há um mês. Em outra, abaixo, uma pessoa dá o índice da quantidade de golpes sobre quem busca esse financiamento de regras obscuras:

atenção

A questão é que a busca por esse dinheiro baseado em um sistema informal se dá justamente por grupos mais vulneráveis. Gente que, muitas vezes, precisa de dinheiro não para investir em algo a longo prazo, e sim para comprar comida e pagar contas básicas de água e energia elétrica, como mostra essa reportagem, e como acontecia na casa na qual eu vivia.

Uma pesquisa divulgada pelo Serasa em 2022 mostrava que 70% dos endividados do país estavam pendurados justamente por terem comprado alimentos com a grana de agiotas.

Professora do Insper e advogada em direito criminal, Ilana Martins afirma que, em regra, pessoas que fazem uso desses recursos não conseguiram obter empréstimos no sistema financeiro tradicional, seja por não possuírem renda comprovada ou por já terem extrapolado os limites estabelecidos pelas instituições financeiras.

Ela explica quando o empréstimo de dinheiro com a cobrança de juros pode ser considerado criminoso. “Quando se tratar de empréstimo de recursos próprios, a aplicação de uma taxa de juros superior ao limite legal (12% ao ano) pode configurar o delito do artigo 4º da Lei n. 1.521/51″. 

O artigo afirma que é crime:

  • 1. Cobrar juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro superiores à taxa permitida por lei;
  • 2. Cobrar ágio superior à taxa oficial de câmbio sobre quantia permutada por moeda estrangeira; 
  • 3. Emprestar sob penhor que seja privativo de instituição oficial de crédito (Lei nº 1.807, de 1953). A pena é de detenção de seis meses a dois anos e multa de R$ 5 mil a R$ 20 mil.  

“Caso o empréstimo seja realizado com recursos de terceiros, pode vir a ser enquadrado como crime contra o sistema financeiro nacional, em especial o delito de operar, indevidamente, instituição financeira, com pena de um a quatro anos”, complementa Martins.

A dívida não é, em muitos casos, a questão mais séria com a qual pessoas endividadas precisam lidar: a informalidade da prática, já higienizada como um “empreendedorismo” qualquer, faz com os métodos de cobrança sejam completamente ao sabor do financiador. A violência, é claro, é um deles.

No artigo Métodos de fiscalização da secretaria da Receita Federal do Brasil  não alcançam os agiotas, Matheus Sobrinho Guimarães e Tatiane de Souza Maia escrevem: “Configurando-se crime, o agiota que não consegue receber o empréstimo realizado, não recorre à justiça e órgãos competentes para realizar a cobrança e acaba cometendo outros tipos de crime, tais como: ameaça, extorsão, exercício arbitrário das próprias razões, tudo em detrimento do pagamento do empréstimo que foi realizado e que deve ser pago, ainda que o empréstimo tenha sido realizado de forma ilícita através da agiotagem.”

Em 2023, a vendedora Erika Cardoso, 40 anos, foi assassinada na garagem de casa, em Franca (SP) – o seu filho de 12 anos estava no local e ouviu a mãe ser morta. Uma quadrilha que atuava na cobrança dos empréstimos foi presa.

Vale comentar que questões de gênero muitas vezes perpassam o problema.

Este ano, um caso chocante mostrou que quem empresta também corre riscos: um casal matou com requintes de crueldade mãe e filho para não pagar a ela uma dívida de R$ 10 mil. O menino tinha quatro anos.

Os melhores amigos do agiota: as bets e os jogos do tigrinho

É preciso dizer que, no contexto de um país no qual as bets e os jogos do tigrinho viraram febre, os empréstimos aparentemente facilitados se tornaram ainda mais sedutores. 

Os crimes relacionados a esse entrecruzamento já aparecem no noticiário: em julho deste ano, o corpo do mecânico Marcos Roberto Machado foi encontrado numa rodovia próxima da cidade de Diamantino (MT). Segundo a família da vítima, Marcos, adepto do jogo do tigrinho, havia contraído uma dívida de R$ 200 mil com um agiota.

“Atualmente, as redes sociais são o lugar privilegiado para o estabelecimento e desenvolvimento das relações em sociedade. Para cada aspecto da vida, parece existir um aplicativo, site, rede, etc.  Consequentemente, a internet tornou-se o lugar em que direitos são preferencialmente exercidos (ex. liberdade de expressão) e frequentemente violados (ex. cometimento de crimes como calúnia, injúria, ameaça). O grande problema é que as autoridades públicas demoraram a perceber o protagonismo que o ‘virtual’ ganhou e, a princípio, tratavam as redes e aplicativos como âmbito exclusivamente privado, o que favoreceu o crescimento desenfreado e descontrolado desse ambiente”, diz a advogada criminalista Maira Scavuzzi.

A lerdeza jurídico-institucional tornou, assim, o ambiente virtual uma terra muito mais propícia a esse tipo de crime.

“A criminalidade, oportunística como é, viu aí uma chance de se renovar e se expandir: agiotas conseguem se instalar e se disseminar muito mais facilmente do que jamais conseguiriam no mundo físico, com muito menos risco, já que, na realidade virtual, a fiscalização e a repreensão é mais difícil. Uma outra vantagem existe: conseguem se ‘propagandear’ abertamente sem temer ações enérgicas imediatas, o que retira a pecha da ‘clandestinidade’ que costuma afastar potenciais vítimas”, disse a advogada.

Vale comentar que questões de gênero muitas vezes perpassam o problema, como vimos nos casos dos assassinatos citados acima: muitas vezes, são as mulheres as preferencialmente ameaçadas por agiotas que tentam reaver o dinheiro investido e seus juros.

Os altos índices de golpes e crimes violentos são subnotificados: geralmente, as vítimas têm medo de denunciar.

Clarice Mendes (nome fictício) não sabia de uma dívida de R$ 3 mil contraída pelo marido até ser avisada por vizinhos que um homem estava ameaçando queimar a casa de sua sogra. Ela o conhecia e o procurou para conversar.

A situação parecia controlada quando, dias depois, o cobrador voltou – desta vez, com outro homem, que a ameaçou. “Eu estava com meu filho ainda bebê nos braços.” A família toda se reuniu para pagar a dívida. O companheiro de Clarice é viciado em jogos há anos, e agora engrossa a fileira daqueles que apostam em jogos do tigrinho.

“No cenário pulverizado das redes sociais, é difícil reprimir todas as condutas ilegais expostas”, afirma Ilana Martins. Ela lembra que, de acordo com o Banco Central, a difusão das bets e jogos nos últimos anos pode ter contribuído para o aumento do endividamento das famílias.

Como consequência, esse endividamento pode contribuir para que as pessoas busquem recursos a qualquer custo, inclusive com pessoas que atuam ilegalmente, seja por necessitarem quitar dívidas, seja para alimentar vício.

Como se trata de uma atividade ilegal, os altos índices de golpes e crimes violentos são subnotificados: geralmente, as vítimas têm medo de denunciar. Como diz Maira Scavuzzi, forma-se uma lacuna entre a criminalidade real e a criminalidade estatística, o que a criminologia chama de “cifra/zona obscura”.

“Falta um olhar atento para o crescimento da agiotagem em redes sociais e a criação de uma política criminal eficiente – com feitura de leis e criação de órgãos especializados se necessário for – para combatê-la”.

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