Dentista cita ‘imprudência’ de mulher que fez curso online de 4h para aplicar lentes; jovem sofreu necrose


Advogado da acusada afirma que ela é considerada “hábil” para prestar o serviço. Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CROSP) alega que o procedimento deve ser realizado apenas por um cirurgião-dentista. Jovem sofreu com desgaste, necrose pulpar e perda óssea ao aplicar lentes com mulher que não é dentista
Arquivo Pessoal
A aplicação de lentes de resina nos dentes de uma adolescente, feita por uma mulher que não é dentista, foi “invasivo” ao ponto de provocar trauma. As informações são do cirurgião-dentista Nívio Fernandes Dias, que analisou o caso da jovem que sofreu necrose pulpar [morte da polpa dentária] e perda óssea.
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A adolescente de 17 anos, que preferiu não se identificar, contou ter feito a aplicação com Andreza Aline Gasparini Lima. O advogado da acusada afirmou que a cliente é considerada “hábil” para prestar o serviço, uma vez que fez um curso online com 4h de duração, e em nenhum momento se passou por dentista (veja o posicionamento completo adiante).
Ao g1, Nívio Fernandes Dias considerou “óbvio” o fato que “só quem pode mexer na boca das pessoas é o dentista”. A afirmação vai de encontro com o Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CROSP), que declarou, com base na Lei Federal 5.081/66, que compete ao cirurgião-dentista, habilitado e com inscrição ativa, praticar os atos pertinentes à odontologia.
“Isso chama exercício ilegal da profissão, isso dá cadeia […]. É como se eu, como dentista, fosse fazer uma cirurgia cardíaca num paciente, não posso fazer isso”, disse o cirurgião-dentista.
Nívio acrescentou que, em casos como o da adolescente, é possível afirmar que a polpa “morreu” e ficou necrosada dentro do canal dentário, causando a infecção. “É um absurdo dos absurdos uma necrose pulpar na confecção de facetas, ou seja, quem fez errou demais. Foi muito imprudente”, comentou ele.
Situação da paciente
Mulher que aplicou lentes em adolescente fez curso online com 4h de duração
Reprodução
De acordo com o cirurgião-dentista, o quadro infeccioso periodontal é quando o periodonto [o que está em volta do dente, como gengiva e osso] está infectado. No caso da adolescente, segundo ele, isto teria sido causado pela má adaptação das facetas [lentes de resina].
“Imagina que tem uma tampa maior do que a panela, você coloca a tampa sobre a panela e fica aquela sobra, aquele excesso de tampa ao redor”, explicou Nívio, sobre a má adaptação das facetas.
Ele afirmou que muitas aplicações de facetas são feitas com profissionais que não possuem habilidade, deixando excesso. “Ali acumula bactéria e o paciente não tem como limpar, não tem como fazer higienização e essas bactérias vão se reproduzindo, provocando uma infecção periodontal”, disse.
Nívio explicou também que, inicialmente, a infecção periodontal acomete a gengiva, causando a gengivite [doença superficial que, não sendo tratada, pode atingir o osso]. De acordo com o cirurgião-dentista, o termo “necrose óssea” é incorreto, sendo a forma certa dizer que houve perda óssea.
Nívio pontuou que o termo “necrose pulpar”, por sua vez, é correto. “Quando você desgasta demais o dente para fazer a faceta, muitas vezes esse desgaste é tão invasivo que você chega muito próximo dessa polpa e, por geração de algum trauma, esse dente entra em necrose”.
Curso online de 4h
Mulher que aplicou lentes em adolescente fez curso online com 4h de duração
Arquivo Pessoal
O certificado do curso online feito por Andreza Lima, que teve 4h de duração, foi enviado ao g1 pelo advogado dela.
A Optical, empresa que administrou o curso, afirmou que as atividades livres com curta duração não conferem habilidades clínicas nem equivalem a formações profissionais, tendo como único objetivo promover a expansão do conhecimento técnico-acadêmico.
Em nota, o advogado João Victor Sampaio, que representa a Optical, informou que apenas a graduação em odontologia, reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC), habilita o exercício legal da prática odontológica.
O advogado acrescentou que o curso de “Resina Composta” é ministrado gratuitamente, em curta duração, com carga horária de 4 horas, de caráter informativo e com escopo restrito.
“Não abrange ensinamentos sobre clareamento dental ou reconstrução e não capacita os participantes para a realização de procedimentos clínicos”, complementou Sampaio.
Por meio do advogado, a Optical repudiou “veementemente qualquer prática de procedimentos odontológicos realizados sem a devida formação e registro profissional”, já que se trata de uma prática ilegal.
Questionada pelo g1 se o certificado apresentado pela defesa de Andreza é original, a Optical informou que, em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), foi impedida de divulgar informações sensíveis ou dados pessoais dos clientes e participantes de cursos.
Jovem ficou com os dentes desgastados e escuros após aplicação de lentes de resina fora de consultório odontológico, em São Vicente (SP)
Arquivo Pessoal
O caso
De acordo com a adolescente, Andreza Aline Gasparini Lima teria cobrado R$ 1,2 mil pelo serviço, mas fez por R$ 1 mil para o pai dela – sendo que metade do valor seria descontado do serviço a ser realizado por ele e outra parte pago pela mãe via Pix.
Ela e a mãe foram até a casa de Andreza, onde o procedimento foi realizado. Três dias depois, ela retornou ao local porque três lentes haviam caído. Na ocasião, a mulher informou que a adolescente não estava tendo os cuidados necessários e cobraria das próximas vezes.
Após o procedimento, a adolescente chegou a questionar a mulher em relação às lentes estarem coladas uma na outra impedindo o uso do fio dental. Na ocasião, ela passou uma broca nos dentes dela e orientou tentasse novamente, mas continuou sem conseguir.
Foto mostra os dentes de adolescente durante a remoção das lentes colocadas por mulher que não é dentista
Arquivo Pessoal
Outras lentes caíram, mas a adolescente não retornou na residência da mulher para que não fosse cobrada. Ela passou a sentir incômodo na gengiva e percebeu que o dente estava ficando escuro embaixo da lente e encaminhou uma foto para a irmã, que é estudante de odontologia.
A irmã da adolescente recomendou que ela procurasse uma clínica odontológica com urgência para remover as lentes, pois estava com infiltração nos dentes e com a gengiva inflamada. Após a remoção, ela iniciou um tratamento caseiro antes de seguir com o odontológico.
“Eu comprei um enxaguante bucal próprio pra gengivite, que a dentista me recomendou, e estou tomando um remédio também […]. [Me sinto] bem triste, né? Porque com 17 anos estou com dente assim escuro e feio. É horrível”, disse.
Ela entrou em contato com Andreza, mas ela negou que o serviço realizado teria causado esses problemas. “Ela mentiu bastante. Falou que eu fiz muito mais coisa lá do que as lentes e resina, que ela fez mais trabalhos na minha boca, só que o que a gente tinha combinado era só as lentes”.
Advogado de Andreza
Gabriel Ferreira Lacerda, o advogado de defesa de Andreza Aline Gasparini Lima, informou que a cliente pode para prestar o serviço de aplicação de lentes.
De acordo com o advogado, o serviço foi realizado “sem custos”, em um acordo baseado nos serviços do pai da adolescente na casa de Andreza Aline. As obras, ainda segundo a defesa da mulher, não foram feitas pelo pedreiro.
CROSP
O Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CROSP) declarou, com base na Lei Federal 5.081/66, que compete ao cirurgião-dentista, habilitado e com inscrição ativa, praticar os atos pertinentes à odontologia, inclusive o procedimento mencionado.
“Diante das normas vigentes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e Vigilâncias Sanitárias, a assistência odontológica deve ocorrer em ambiente estruturado e licenciado como estabelecimento odontológico”, afirmou o CROSP.
Em nota, o conselho acrescentou que, em pesquisas feitas junto ao banco de dados dos profissionais inscritos do Conselho Federal e Regional de Odontologia (CFO e CROSP), não foi possível localizar registro profissional em nome de Andreza Aline Gasparini Lima.
Jovem ficou com os dentes desgastados e escuros após aplicação de lentes de resina fora de consultório odontológico, em São Vicente (SP)
Arquivo Pessoal
O CROSP informou que “adota providências à apuração de infrações às normas éticas praticadas pelos respectivos inscritos, respeitado o direito de defesa, o sigilo legal dos procedimentos internos”.
Além disso, se for necessário, o CROSP também pode notificar outros órgãos pertinentes, como Polícia Militar e Vigilância Sanitária, para que sejam adotadas outras medidas condizentes com a infração identificada.
A família da jovem registrou um boletim de ocorrência pela internet. O g1 entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), em busca de mais informações, mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem.
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